A lenda de Gaia (ou do Rei Ramiro)

 


A existir um grande elemento que caracteriza as lendas portuguesas de Mouros e Cristãos é o de um amor que tende a surgir entre eles, terminando quase sempre com o casamento - e conversão - de uma bela princesa moura. A lenda de Gaia (a cidade ao pé do Porto), também conhecida como lenda do Rei Ramiro em virtude do seu herói, transporta-nos para esse mesmo imaginário popular, mas com algumas especificidades curiosas, como podemos ver através de um breve resumo:

A lenda de Gaia diz então que Ramiro foi o segundo rei desse nome em Leão e viveu na primeira metade do século X. Apesar de já ser casado - algumas versões dizem que o nome da esposa era Aldora, outras chamam-lhe Gaia - apaixonou-se por um bela princesa moura, mas o irmão desta, um tal Alboazer, não a quis dar em casamento. Então Ramiro raptou-a, levou-a para Leão, converteu-a ao Cristianismo e deu-lhe o nome de Artiga.

Porém, face a este rapto Alboazer não se manteve impávido e sereno. Em vez disso, raptou Aldora e parte da sua corte, levando-os para o castelo de Gaia (hoje desaparecido). Ramiro foi ao local com o seu exército e pediu-lhes que aguardassem por um sinal. Depois introduziu-se no castelo, disfarçado de mendigo, e procurou a sua (primeira) esposa, mas esta denunciou-o ao rei mouro.

Capturado, o herói pediu ao monarca árabe um último favor, o de tocar a sua corneta. Quando o fez, o exército próximo entendeu o sinal, atacou a cidade e matou todos os inimigos da fé cristã. Voltando a casa, o rei Ramiro colocou uma mó no pescoço de Aldora e atirou-a ao mar (presume-se que pela sua traição, e não apenas para se livrar dela...), antes de ir viver muito feliz com a sua nova amada, Artiga.

Face a tantas outras lendas nacionais de amores de Cristãos por Mouras, de que já cá fomos falando antes, esta lenda de Gaia, ou do Rei Ramiro, é quase um pequeno épico novelesco em três actos. Como é possível, essa profundidade da trama tão incomum em lendas antigas? Na verdade, toda esta história, como é normalmente contada hoje e como a recontámos acima, resulta da fusão de duas lendas medievais com temas muito semelhantes, que se parecem ter confundido ao longo do tempo. Ao consultarem-se essas duas fontes literárias são reveladas algumas curiosas nuances da história. Por exemplo, originalmente a rainha foi atirada ao mar não por ter traído o marido, mas porque tinha tido relações sexuais com Alboazer e agora, sabendo-o morto, no navio chorou e sentiu a falta dele - por isso, nessa versão Ramiro acaba por casar com uma aia da rainha, estando a princesa moura totalmente ausente. Ela só aparece na outra versão, numa espécie de prólogo de toda a história, sendo raptada com o auxílio de um feiticeiro, e depois a história prossegue como acima.

É provável que, originalmente, tenham existido duas lendas orais distintas associadas ao Rei Ramiro, e que pela passagem do tempo se tenham começado a confundir-se, gerando uma história como a que temos hoje, e que seria bem apropriada para um filme nacional. Não existe nenhum sobre o tema, tanto quanto conseguimos apurar, mas foi motivo de um filme animado em 1931, A Lenda de Miragaia, que se encontra perdido com excepção de algumas imagens. É pena, porque nos parece, verdadeiramente, uma história digna de nota entre as muitas lendas nacionais de Mouros e Cristãos!

 A lenda de Gaia (ou do Rei Ramiro)

Fonte: Mitologia em Português - https://www.mitologia.pt/a-lenda-de-gaia-ou-do-rei-ramiro-476183Foto: imagem do filme de animação "A lenda de Miragaia" (1931) - https://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/2378/A+Lenda+de+Miragaia

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Na página da Wikipedia sobre Miragaia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Miragaia_(Porto) a história é contada assim:

A lenda de Gaia

Uma lenda popular alude à origem do nome da freguesia:

No ano de 932, o rei D. Ramiro II de Leão e das Astúrias viajou de Viseu, onde residia para raptar Zahara, a bela irmã do xeque Alboazar. Este por sua vez, como vingança, raptou a não menos bela esposa de Ramiro, a rainha Gaia, tendo ambos vindo a apaixonar-se um pelo outro. Ramiro, ignorando este amor, vem com o filho e as suas gentes de armas até ao castelo do rei mouro que se erguia na margem esquerda do rio Douro, a caminho da foz. Ramiro escondeu as suas gentes numa encosta, sob a folhagem e, vestido de romeiro, subiu a mesma postando-se junto a uma fonte, no aguardo de novidades. Uma criada veio buscar água fresca à fonte para a sua nova ama – a cristã. Num átimo, Ramiro escondeu o seu próprio anel na bilha de água da moura e continuou a aguardar.

A rainha Gaia, ao encontrar o anel na bilha da água, pressentiu a verdade e mandou chamar o romeiro à sua presença. Apaixonada pelo mouro, decidida a desfazer-se do marido cristão, embriagou-o e prendeu-o num quarto, que foi aberto à chegada de Alboazar. Ramiro tentou reagir mas em pouco tempo foi rendido pelas gentes do mouro que, sorrindo, perguntou-lhe o que ele, um rei cristão, faria se tivesse em suas mãos o seu inimigo. Tendo em mente o combinado com os seus homens, ainda ocultos na encosta, Ramiro respondeu que lhe faria comer um capão, beber um canjirão de vinho, e depois postá-lo-ia no topo de uma torre a tocar trompa até rebentar. Alboazar achou graça e garantiu-lhe que seria essa então a sua morte. Para maior gáudio, determinou abrir os portões do castelo convidando todos os moradores extramuros a assisti-la.

Ramiro comeu, bebeu, foi conduzido ao alto da torre e tocou a trompa até que as suas gentes, ao ouvir o sinal combinado, irromperam pelos portões abertos do castelo, chacinando as tropas do mouro desprevenidas. O próprio Ramiro matou Alboazar e, tomando a sua mulher, embarcou, seguido pelos seus homens. A bordo, encarou o pranto da esposa, que contemplava desolada as ruínas do castelo, e pergunta-lhe qual a razão, sendo respondido:

Armas do Porto
"Perguntas-me o que miro?
Traidor rei, que hei-de eu mirar?
As torres daquele Alcácer
Que ainda estão a fumegar!
Se eu fui ali tão ditosa,
Se ah soube o que era amar,
Se ah me fica a alma e a vida…
Traidor rei, que hei-de eu mirar?
Pois mira, Gaia! E, dizendo,
Da espada foi arrancar:
Mira Gaia, que esses olhos
Não terão mais que mirar!

Ainda de acordo com essa tradição, até os nossos dias, a encosta que o rei teria subido em Gaia denomina-se rua do Rei Ramiro, a fonte, fonte do Rei Ramiro; as armas da cidade de Vila Nova de Gaia figuram uma torre encimada por um cavaleiro tocando trompa, e a zona do Porto, diante do local onde a rainha foi morta, denomina-se Miragaia.

Contudo, o nome de Miragaia poderá ter uma explicação bem mais prosaica, resultando do simples facto de estar em frente a Gaia, ou seja, a estar a mirar (ver).

Quanto à Lenda de Gaia, ela própria, para lá de todo o folclore que ficou acima descrito, importa sobretudo atender a duas questões centrais: o texto original que consta no Livro Velho de Linhagens (século XIII) e a identificação do rei Ramiro que nele é protagonista. E só há duas alternativas: ou é D. Ramiro I, falecido em 850, ou seu trineto D. Ramiro II (931 - 951), sendo que de ambos o filho herdeiro se chamou Ordonho. E a resposta é bem fácil de dar, uma vez que é completamente impossível que as circunstâncias relatadas na lenda se tivessem passado entre 931 e 951, cronologia em que o Porto e Gaia estavam já sobre seguro domínio cristão, desde a conquista de Vimara Peres em 868. Assim, ou não damos qualquer crédito à lenda ou temos de a datar em meados do século IX, tendo D. Ramiro I e seu filho D. Ordonho I como protagonistas.

Para melhor se poder avaliar a lenda, transcreve-se aqui o texto original do Livro Velho: 

 

«Este rei D. Ramiro seve casado com uma rainha e fege nela rei D. Ordonho; e pois lha filhou rei Abencadão, que era mouro, e foi-lha filhar em Salvaterra, no lugar que chamam Mier. Então era rei Ramiro nas Asturias, e quando Abencadão tornou aduce-a para Gaia, que era seu castelo; e, quando veio, rei Ramiro não achou a sa mulher e pesou-lhe ende muito, e enviou por naves seu filho D. Ordonho e por seus vassalos e fretou sas naves e meteu-se em elas, e veio Sanhoane da Furada (hoje Afurada, na foz do Douro, do lado de Gaia); e pois que a nave entrou pela foz, cobriu-a de panos verdes, em tal guisa que cuidassem que eram ramos, ca entonce Douro era coberto de uma parte e de outra de arvores; e esse rei Ramiro vestiu-se em panos de veleto, e levou consigo sa espada e seu corno, e falou com seu filho e com seus vassalos que, quando ouvissem o seu corno, que todos lhe acorressem e que todos jouvessem pela ribeira per antre as arvores, fora poucos que ficassem na nave para mantê-la. 

E ele foi-se estar a uma fonte que estava perto do castelo; e Abencadão era fora do castelo e fora correr monte contra Alafão. E uma donzela que servia a rainha levantou-se pela manhã, que lhe fosse pela água para as mãos; e aquela donzela havia nome Ortiga; e ele pediu-lhe água pela arávia, e ela deu-lha por um autre, e ele meteu um camafeu na boca, o qual camafeu havia partido com sa mulher, a rainha, pela meiadade. Ele deu-se a beber e deitou a anel no autre, e a donzela foi-se e deu ágia à rainha, e caiu-lhe o anel na mão e conheceu-o ela logo. 

A rainha perguntou quem achara na fonte; ela respondeu-lhe nom era hi ningém; ela disse que mentia, e que lho nom negasse, ca lhe faria por ende bem e mercê; e a donzela lhe disse entom que achara um mouro doente e lazarado e que lhe pedira água que bebesse, e ela que lha dera; e entonce lhe disse a rainha que lhe fosse por ele, e se hi o achasse que lho aducesse. 

A donzela foi por ele e disse-lhe ca lhe mandava dizer a rainha que fosse a ela; e entonces rei Ramiro foi-se com ela; e ele, entrando pela porta do paço, conheceu a rainha e disse-lhe: - Rei Ramiro, quem te aduce aqui? E ele lhe respondeu: - Ca pequena maravilha! E ela disse à donzela que o metesse na câmara e que nom lhe desse que comesse nem que bebesse; e a donzela pensou dele sem mandado da rainha. 

E ele jazendo na câmara, chegou Abencadão e deram-lhe que jantasse, e despois de jantar, foi-se para a rainha, e dês que fizeram seu prazer, disse a rainha: 

- Se tu aqui tivesses rei Ramiro, que lhe farias? 

O mouro então respondeu: 

- O que ele a mim faria: matá-lo. 

Então a rainha chamou Ortiga que o aducesse da câmara, e ela assim o fez, e aduce o mouro, e o mouro lhe disse: 

- És tu rei Ramiro? 

E ele respondeu:

- Eu sou. 

E o mouro lhe perguntou: 

- A que vieste aqui? 

El-rei Ramiro lhe disse entom: 

-Vim ver minha mulher, que me filhaste a torto, ca tu havias comigo tréguas e nom me catava de ti. 

E o mouro lhe disse: 

- Vieste a morrer, mas quero-te perguntar: se me tivesses em Mier, que morte me darias? 

El-rei Ramiro era muito faminto, e respondeu-lhe assim: 

- Eu te daria um capão assado e uma regueifa e faria-te tudo comer e dar-te-ia em cima uma copa cheia de vinho que bebesses; em cima, abrira portas do meu curral e faria chamar todas as minhas gentes, que viessem ver como morrias, e faria-te subir a um padrão e faria-te tanger o corno até que te hi saisse o fôlego. 

Então respondeu-lhe Abencadão: 

-Essa morte te quero eu dar. 

E fez abrir os currais, e feze-o subir em um padrão que hi entom estava; e começou rei Ramiro entom seu corno tanger, e começou chamar sa gente pelo corno, que lhe acorressem, ca agora havia tempo. E o filho, como o ouviu, acorreu-lhe com seus vassalos, e meterom-se pela porta do castelo, e ele desceu-se do padrom adonde estava, e veio contra eles e tirou sa espada da bainha e descabeçando atá o menor mouro que havia em toda Gaia, andaram todos à espada, e nom ficou em essa vila de Gaia pedra sobre pedra que tudo não fosse em terra. 

E filhou rei Ramiro sa mulher com sas donzelas e quando haver hi achou e meteu na nave, e quando foram a foz de Ancora amarraram as barcas e comeram e folgaram, e D. Ramiro deitou-se a dormir no regaço da rainha e a rainha filhou-se a horar, e as lágrimas dela caeram a D. Ramiro pelo rosto, e ele espertou-se e disse porque chorava? E ela disse-lhe: 

- Choro por o mui bom mouro que ataste. 

E então o filho, que andava hi na nave, ouviu aquela palavra que sa madre dissera e disse ao padre: 

- Padre, não levemos connosco mais o demo. 

Entom rei Ramiro filhou uma mó que trazia na nave e ligou-lha na garganta e ancorou-a no mar, e des aquela hora chamaram hi Foz de Ancora. Este D. Ramiro foi-se a Mier e fez sa corte, e contou-lhe tudo como acaecera, e entom baptizou Ortiga e casou com ela e louvou-lhe toda sa corte muito, e pos-lhe nome D. Áldara, e fege nela um filho, e quando nasceu pos-lhe o padre o nome Alboazar, e disse entom o padre que lhe punha este nome porque seria padre e senhor de muito boa fidalguia

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