Os muçulmanos que Portugal expulsou e esqueceu
Lei que confere a nacionalidade portuguesa a descendentes de judeus sefarditas ignora “mouros” também expulsos em 1496
MARTA VIDAL / EXPRESSO
Brafame Gordo e o seu irmão Galebo
partiram do Alentejo tão contrariados que chegaram mesmo a pedir autorização ao
rei para os deixar regressar. Numa petição dirigida à coroa portuguesa (hoje guardada na Torre do
Tombo) dão o nome de três cristãos seus vizinhos em Elvas, que poderiam
fornecer recomendações, e pedem para voltar para Portugal e para lá viver com
as suas famílias “assim mouros como sempre foram.” Como os irmãos Gordo, outros
muçulmanos tentaram regressar para as suas terras de origem, de onde foram
expulsos.
Em Dezembro de 1496, um édito do
rei D. Manuel I, denominado “Que os Judeus e Mouros forros se saiam destes
Reinos e não morem nem estejam neles,” decretou que as minorias religiosas deveriam
partir no prazo de dez meses. Os judeus e muçulmanos que não o fizessem seriam
condenados à morte e os seus bens seriam confiscados.
Não se sabe ao certo quantos judeus e muçulmanos foram expulsos de
Portugal no final do século XV, nem quantos foram obrigados a
converter-se. Estima-se que na época viveriam no reino entre 20 a 100
mil judeus. Dos muçulmanos, uma comunidade menos numerosa que vivia nas
mourarias de várias cidades portuguesas, sabe-se pouco.
Tão pouco, que, quando a lei da
nacionalidade foi alterada por proposta do PS e do CDS-PP para que os descendentes
de judeus expulsos pudessem naturalizar-se em Portugal, nada se disse sobre os
muçulmanos que foram expulsos pelo mesmo édito.
“Fala-se da expulsão dos judeus mas não da
expulsão dos muçulmanos,” diz Filomena Barros, professora de História na
Universidade de Évora. Especializada na minoria muçulmana, a historiadora
considera que o passado islâmico tem sido esquecido em Portugal. “Não temos
noção de que os muçulmanos também fizeram parte da nossa história e da nossa
identidade,” afirma.
Em 2015, um decreto-lei concedeu
aos descendentes de judeus expulsos ou perseguidos pela Inquisição a possibilidade
de pedirem a nacionalidade portuguesa. Desde que entrou em vigor já foram
apresentados mais de 33 mil pedidos. Mas porque é que esta restituição
histórica não foi estendida aos muçulmanos, que também foram expulsos quando Portugal se tornou
num reino exclusivamente cristão no final do século XV?
Para José Ribeiro e Castro, um
dos responsáveis pela lei enquanto deputado do CDS-PP, a expulsão das duas minorias
aconteceu por razões diferentes.
“A expulsão dos muçulmanos esteve
mais relacionada com conquistas e batalhas do que com intolerância religiosa,”
diz ao Expresso numa entrevista por telefone. “Os muçulmanos estavam na
Península Ibérica por via da invasão. Houve uma conquista islâmica e depois uma
reconquista.”
Filomena Barros contesta esta
ideia. O édito de expulsão foi publicado quase 250 anos depois da derrota do
último rei mouro no Algarve, e por isso numa altura em que a minoria muçulmana
não era vista como uma ameaça. Pelo contrário, afirma que os muçulmanos serviam
o rei.
“A Península Ibérica sempre foi
conquistada. Não falamos da conquista romana ou da conquista visigoda, mas
falamos sempre da conquista muçulmana,” diz a historiadora. A conquista
muçulmana e a reconquista cristã vão ter um papel central na formação da identidade
portuguesa em oposição ao mouro.
“Mas os muçulmanos não eram estrangeiros,” defende
Filomena Barros, que acrescenta que grande parte da população da Península Ibérica
se converteu ao Islão a partir do século X. “O facto de haver uma reconquista
cristã não implica que os muçulmanos vão para a sua terra, porque a sua terra
era esta.”
Filomena Barros encontrou um bom exemplo
da perceção de pertença dos muçulmanos ao reino português num texto do início
do século XVII, que fala dos mouros de Loulé. Expulsos pelo édito de D. Manuel
I, refugiaram-se no norte de África mas não se adaptaram às terras mouras. “Não
podendo lá viver”, lê-se, optaram por converter-se ao cristianismo e voltar para
Portugal.
Os historiadores pensam que, ao
contrário dos mouros de Loulé, a maioria dos muçulmanos expulsos de Portugal se
terá refugiado no Norte de África e assimilado às populações locais.
Para Michael Rothwell,
representante da comunidade judaica do Porto, é este facto que justifica o
diferente tratamento de descendentes de judeus e muçulmanos expulsos. A lei da
nacionalidade só faz sentido, diz, para quem tenha mantido traços da “identidade
portuguesa,” como ritos tradicionais ou o ladino, a língua falada pelos judeus
da Península Ibérica, e que se considerem portugueses.
“Não vejo como se possa criar uma lei
semelhante para os muçulmanos, porque não é meramente uma lei para
descendentes,” explica. “É uma lei para as pessoas com tradição de pertença a
uma comunidade de origem portuguesa. Para os judeus, ainda é possível pedir
desculpa 500 anos depois porque muitas pessoas mantiveram a identidade
portuguesa. Desconheço algo semelhante no mundo islâmico.”
Desde pequena que Fatima Sahli
ouve o pai dizer-lhe que a família tem origens em Portugal. Não sabe precisar
onde, mas a história sobre as suas raízes portuguesas tem sido contada de
geração em geração. É de Bizerte, no norte da Tunísia. Uma região que diz ter
recebido várias vagas de refugiados muçulmanos expulsos de Portugal e Espanha.
“Ainda temos nomes de família
ibéricos, arquitetura influenciada pelo estilo Andalus, palavras e pratos que
vêm de lá,” diz Fatima, estudante na Universidade de Túnis, referindo-se a Andalus
como o período de presença islâmica na Península Ibérica, que influenciou a
arte e arquitetura portuguesa e espanhola, mas também vários países no norte de
África onde os muçulmanos expulsos se instalaram.
“Não me agrada o facto de a lei ter excluído os muçulmanos. Não tenciono pedir a nacionalidade portuguesa, mas se a lei existe então deveria ser para todos os descendentes de pessoas que foram expulsas na altura,” afirma Fatima.
Restam muito poucos documentos
que provem as ligações de muçulmanos expulsos a Portugal. Por se terem
assimilado mais facilmente às populações locais em África, é muito mais difícil
saber quem são os descendentes dos muçulmanos que D. Manuel I quis fora do
reino.
Entre os judeus, que continuaram
durante séculos a ser uma minoria sujeita a perseguição, a memória foi preservada
com muito mais cuidado. Várias famílias judaicas conservaram não só os apelidos,
mas também objetos e documentos que comprovam as origens portuguesas. Michael
Rothwell conta que há até quem tenha guardado as chaves de casas abandonadas em
Portugal há mais de 500 anos.
“Os judeus dedicaram-se ao trabalho
da memória de uma forma que não se encontra entre os muçulmanos,” diz Filomena
Barros. “Para a sobrevivência do povo judeu a memória foi fundamental.”
Mesmo que seja praticamente
impossível para os descendentes de muçulmanos provar as suas ligações a
Portugal por falta de documentos, a historiadora considera que deveriam ser incluídos
na lei da nacionalidade, ainda que apenas de forma simbólica. “É uma questão de
equidade e de justiça relativamente ao nosso passado e à nossa memória,” diz.
Em entrevista
à Lusa, o reitor da maior universidade islâmica do Mundo, Ahmed Mohamed
Al-Tayyeb, defendeu que Portugal deveria dar aos descendentes de muçulmanos os
mesmos direitos de acesso à nacionalidade que concede aos judeus.
“Os muçulmanos que são
descendentes de famílias muçulmanas daquela época também têm o direito de
recorrer às entidades para terem os seus direitos,” disse o grande imã da
Mesquita de Al-Azhar no Cairo, quando esteve em Lisboa em 2018.
O líder da Mesquita de Lisboa, o
sheikh David Munir, diz que a questão não foi ainda debatida entre a comunidade
islâmica portuguesa, que vem maioritariamente de ex-colónias portuguesas como
Moçambique e a Guiné. “Mas se houver uma comunidade muçulmana que tenha
documentos que provem que descende de portugueses expulsos, então deveria ter o
mesmo direito,” afirma.
Em Espanha, onde uma lei
semelhante à lei portuguesa para os descendentes de judeus sefarditas foi
aprovada em 2015, as reivindicações dos muçulmanos geraram um intenso debate. Um
grupo de ativistas marroquinos com origens mouriscas chegou mesmo a enviar
uma carta ao rei Juan Carlos a pedir que o governo espanhol também reconheça os
direitos dos descendentes de muçulmanos expulsos. Historicamente, a presença
muçulmana foi mais significativa em Espanha, que continua a dominar o imaginário
dos muçulmanos com ligações à Península Ibérica.
“Entre famílias andaluzes
Portugal não é normalmente associado [ao passado muçulmano],” diz a
historiadora Filomena Barros. “Estamos com um problema de memória em Portugal,
mas também entre países muçulmanos.”
Curiosamente, há quase 200 anos, deputados portugueses não se
esqueceram dos muçulmanos quando aboliram a Inquisição. Parlamentares
recém-eleitos reunidos em Fevereiro de 1821 lamentaram a crueldade da
perseguição de minorias religiosas e revogaram o édito de expulsão de
1496. Declararam
que podiam regressar a Portugal “sem o menor receio” os descendentes
dos judeus expulsos, bem como “os mouros descendentes das famílias que,
com tanto descrédito de nossos maiores, foram igualmente expulsos deste
reino na mesma desgraçada época.”
As Cortes Geraes, e Extraordinarias da Nação Portugueza, bem informadas, e capacitadas dos gravissimos damnos, e prejuisos que resultarão a este Reino da iniqua expulsão dos Judeos, decretada pelo Senhor D. Manoel em Dezembro de 1496, e executada no principio da Quaresma no anno de 1497 com a barbaridade de se lhes arrancarem do patrio poder seus filhos, e filhas menores de 14 annos, para se criarem, e educarem como orphãos, repartidos pelas villas, e lugares do Reyno; faltando-se-lhes á promessa de os levarem, e suas mulheres, e seus bens; adiantando-se a barbara execução muito antes do dia assignado em segredo para lhos extorquiram; determinando-se-lhes semente o porto de Lisboa para o embarque; tendo-se-lhes promettido tres portos no Reyno; não lhes mandando dar embarcações, que se lhes assegurarão, para lhes passar o praso, e ficarem captivos; alem de outras mais crueldades, que constão da Chronica: Decretão o seguinte.
1. Ficão da data deste em diante renovados, confirmados, e postos em todo o seu vigor todos os direitos, faculdades, liberdades, e privilegios, que os primeiros Reys deste Reino concedêrão aos Judeos foragidos, e que constão dos Artigos 65, e 66 Ord. Affons., L.º 2.º n.° 7.
2. Da mesma, sorte, e em toda a sua extensão ficão renovados, e postos em vigor os que de novo lhes concedeo o senhor D. João I.°, quando confirmou os anteriores em 17 de Julho de 1392, e todos os outros, com que os honrou em 1422.
3. Podem em consequencia regressar para Portugal, sem o menor receio, antes sim com toda a segurança, não só os descendentes das familias expulsas, mas todos os Judeos que habitão em qualquer parte do globo terão neste Reino as mesmas contemplações, se para elle quizerem vir.
4. Esta mesma legislação comprehenderá os Mouros descendentes das familias que, com tanto descredito de nossos Mayores, forão igualmente expulsos deste Reyno na mesma desgraçada épocha; estendendo-se por a dicta maneira a todos os que quizerem vir estabelecer-se em Portugal, e Algarves.
A Regencia do Reyno, etc."
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Fonte: página da jornalista Marta Vidal - https://martavidalmedia.com/os-muculmanos-que-portugal-expulsou-e-esqueceu/
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