Viagem na Cisjordânia - Graça Castanheira

 











Durante a preparação da entrevista que fiz a Suad Amiry, que já aqui referi, viajei com a minha equipa pela Cisjordânia, guiados pela jornalista Enas M., palestiniana com passaporte judeu. Pedi-lhe que me fizesse ver, da forma mais detalhada possível, como é que se processava a ocupação de Israel no terreno e que impacto concreto tinha no quotidiano dos palestinianos. Do meu ponto de vista, enquanto realizadora, faltavam ao conflito israelo-palestiniano narrativas assentes na realidade vivida, sem explicações geopolíticas, sem histórias justificativas dos filhos de Abraão. Enas entende a minha ambição e leva-a a sério. Durante a viagem, fui tirando algumas notas, não tantas como as que desejaria hoje ler, mas as suficientes.

Como primeira paragem, Enas leva-nos à aldeia do irmão, de onde, ao longe, se avista a região onde antes era a casa do pai, em terrenos férteis, rodeada de árvores e com acesso direto a água abundante — hoje um expandido e vistoso colonato judeu. A família de Enas fez parte dos cerca 300 mil deslocados da Guerra dos Seis Dias (1967), na qual morreram 20 mil árabes e mil israelitas. A casa foi disputada por um grupo de civis armados acompanhados por militares e o pai de Enas, então muito jovem, opôs-se-lhes, discutiu, lutou com os punhos. Não foi morto no confronto, mas, pouco depois, é preso pelo Exército israelita, acusado de ser um elemento subversivo. É libertado ao fim de um ano, sem que qualquer tribunal o tenha julgado. Assim se terá estabelecido que a casa pertencia a uma família de subversivos e que foi tomada em nome da ordem e da paz local.

No meu caderno, escrevo: “É pena que estejamos aqui para fazer uma entrevista, com tudo o que há para filmar à nossa volta. Como é que se comunica esta situação tremenda? E mais importante ainda: porque é que o que aqui acontece não está a ser comunicado?”

Enas diz-nos que mais adiante se encontra a povoação onde vivia a tia, que antes era a cinco minutos de distância. Depois de percorrermos uma estrada aos esses ao longo do interminável muro, chegamos à aldeia, 40 minutos mais tarde. Enas diz-nos que o muro atomiza a Cisjordânia, que foi construído para segregar, mas também para separar os próprios palestinianos: o muro serpenteia porque corta a meio povoações, com uma exatidão calculada, que estilhaça as comunidades.

 


 


"Durante a viagem, fui tirando algumas notas, não tantas como as que desejaria hoje ler, mas as suficientes" DR

Escrevo: “O que se passa aqui é grave ao ponto de não o parecer: é uma repressão ao mesmo tempo muito evidente e muito camuflada. Mas o muro sobressai como coisa monstra. Que vergonha, um muro pontuado por torres de vigilância como as de Auschwitz — what the fuck? De que forma estranha é que esta gente, que aparentemente é a minha, está a superar o trauma do nazismo e dos campos de concentração? Será que não sabíamos e que Netanyahu descobriu que replicar as preferências estéticas e formais daqueles que nos oprimiram cura a dor?”

Ao fim do dia, depois de horas passadas nos postos de controlo israelitas, porque o carro de Enas tinha matrícula palestiniana e porque os jovens soldados nada sabiam sobre Portugal, Enas diz-nos que debaixo desta opressão não florescem elites políticas e sociais capazes de negociar a paz. Este é um ambiente onde só prosperam e se multiplicam o mal e a retaliação, em ambos os lados. E porque é que Enas ainda ali vivia? — quis saber um de nós. Porque era onde estava a família, de quem se sentia muito próxima. E “para poder estar aqui convosco a mostrar-vos o que acontece”, respondeu. No dia seguinte partimos para Hebron.

“É pena que estejamos aqui para fazer uma entrevista, com tudo o que há para filmar à nossa volta. Como é que se comunica esta situação tremenda?" 

 


 
II
 

Numa área de cerca de 400 quilómetros, existem cerca de 70 postos de controlo espalhados pela Cisjordânia. Cada carro, cada pessoa é uma novidade, mesmo que 30 quilómetros atrás se tenha identificado. É uma verificação constante, destinada a transmitir a certeza de que estamos a ser vigiados. Não nos ocorre sequer dizer a verdade — que viemos entrevistar uma arquiteta e autora que trabalha sobre a preservação da arquitetura palestiniana — na certeza, porém, de que seríamos logo barrados. Somos então um inocente grupo de turistas portugueses, que quer muito fotografar o túmulo de Abraão. E assim, de posto em posto, acabamos por chegar a Hebron.

Surpreendeu-nos no Túmulo dos Patriarcas a intrincada rede de caminhos que separam muçulmanos e judeus de modo a que nunca se cruzem. Mas foi o passeio a pé pela cidade o mais revelador. Enas diz-nos que Hebron é um microcosmo de toda a Cisjordânia. A Cidade Velha é fragmentada por barreiras, zonas militares e policiais, colonatos e encerramentos estratégicos de ruas. Enas não fala muito, deixa-nos espaço para olhar e ver o quanto está a Cidade Velha desencontrada de si própria. Nada bate certo: num curto perímetro, há zonas hipermodernas e zonas-fantasmas, como a Rua de Shuhada, a estrada principal que conduz ao Túmulo dos Patriarcas, que foi fechada aos palestinianos e encerradas todas as suas lojas e serviços. A estação central de autocarros é agora uma base do Exército israelita, e o mercado central de vegetais tornou-se zona interdita aos palestinianos, alegando a segurança do colonato que aí foi construído.

Em várias ruas não é permitido aos palestinianos caminhar no passeio principal. Devem, sim, andar numa espécie de ciclovia paralela. Sendo nós portugueses, caminhamos no passeio, mas, para os judeus ortodoxos, somos todos escuros e, por conseguinte, palestinianos e, logo, invisíveis. Não se desviam, nem nos oferecem passagem; se não somos nós a fazê-lo, embatem connosco de frente. Muito irritada, achei por bem fazer o mesmo, o que valeu vários choques e impropérios de parte a parte. Diz-me Enas: Oh, Graça, you would be so dead if you lived here... (Graça, estarias tão morta se aqui vivesses). Na Cisjordânia, o que se pede a cada palestiniano é que aceite passivamente as leis e as interdições que lhes são impostas e que permitem a Israel tomar a sua terra, enquanto a desfiguram. Quem, perante a injustiça de tudo isto, se revolta arrisca-se ao rótulo imediato de terrorista, a prisão por tempo indefinido ou mesmo a morte. Enas diz-nos que os judeus que lideraram o movimento de ocupação da Cisjordânia em 1967 não estavam ali para conviver, mas para tomar terra, numa variante hiperviolenta de um western, tardio e sangrento.

Entendemos agora por que é que a realidade quotidiana dos territórios ocupados não é tão conhecida como deveria: aqui não se filma o que se quer, mas o que é permitido – e nada o é, porque o encobrimento faz parte da natureza de qualquer crime.

A viagem de regresso a Ramalá é feita em silêncio. Escrevo no meu caderno: “Só depois de se corrigir esta ilegalidade persistente é que vale a pena discutir o terrorismo ou o fundamentalismo islâmico: gostaria de ver a influência do Hamas se os palestinianos não fossem humilhados desta forma. Políticas de expropriação e segregação são inaceitáveis em qualquer democracia que se assim se queira denominar. Se Israel é uma democracia, eu sou extraterrestre.”

É preciso, com toda a força e urgência, parar e reverter a ocupação israelita. Isso, ou a guerra para sempre, em toda a parte.
 
 Crónicas publicadas no jornal "Público". Maria da Graça Castanheira (Angola, 1962) é uma cineasta, argumentista, realizadora portuguesa da área do documentário.



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