Nida Ibrahim: “Onde está a fúria dos jornalistas de todo o mundo?”


 Os repórteres de fora estão impedidos de entrar em Gaza e os jornalistas locais vivem “o desafio impossível de relatar a história enquanto são mortos à fome, deslocados e bombardeados”, escreve Alexandra Lucas Coelho, no Público. Conta Nida Ibrahim, correspondente da Al Jazeera: "O que me incomoda mais é que a história está a ser reescrita para começar a 7 de Outubro. O ponto é: precisamos de entender porque isto acontece para que seja parado. Se alguém está interessado em parar isto, devia ver como Israel está a apropriar-se de terra palestiniana e ninguém fez nada. Como as pessoas estão a ser mortas a sangue frio. Como um jornalista, Muath Amarneh, perdeu um olho enquanto cobria um protesto e foi baleado. E ainda foi preso depois de 7 de Outubro. Isso ajudaria o mundo a entender a dor, a raiva dos palestinianos. Mas acho que o mundo não quer ouvir. Quer ficar na ideia dos selvagens, terroristas. E os israelitas estão na sua bolha. Não nos vêem. Puseram-nos atrás de um muro por alguma razão. Simplesmente não querem lidar connosco. Até terem de. E o mundo também não quer lidar connosco."

A palestiniana Nida Ibrahim, 37 anos, é correspondente da Al Jazeera na Cisjordânia. Vi-a na cobertura do Natal em Belém (onde nasceu, numa família cristã), entrevistei-a a 31 de Dezembro em Ramallah (onde mora e está a redacção). Ambas as cidades são território ocupado, uma a sul de Jerusalém, a outra a norte, cercadas pelo muro e com vários checkpoints entre elas.

Mais jornalistas palestinianos foram mortos desde a entrevista, incluindo Mustafa Tharya e Hamza Dahdouh (filho mais velho do chefe da Al Jazeera em Gaza, que já perdera parte da família e fora ele mesmo ferido). Voltei a falar com Nida ontem para actualizar a conversa.

Ao longo dos últimos anos, os jornalistas que cobrem os territórios palestinianos têm sido cada vez mais alvo de ataques. Nida fala do padrão de lançar gás lacrimogéneo para dispersar a imprensa. Pude verificá-lo de novo a 5 de Janeiro, durante as orações de sexta-feira, no mesmo ponto de Jerusalém onde semanas antes a polícia israelita agredira violentamente um fotógrafo (Ben-Gvir, o colono de extrema-direita que é ministro da Segurança Nacional, solidarizou-se com os agressores). Em 2022, Shireen Abu Akleh, repórter veterana da Al Jazeera, foi morta por uma bala israelita em Jenin (Norte da Cisjordânia), quando estava claramente identificada como jornalista.

E os últimos três meses foram os mais letais. Os ataques israelitas a Gaza mataram pelo menos 79 jornalistas palestinianos, os únicos que cobrem o território desde 7 de Outubro, em condições sem precedentes, eles mesmo deslocados, com as famílias feridas, doentes, por vezes mortas. Quando se iniciou a invasão terrestre, alguns media estrangeiros aceitaram entrar e sair inseridos nas tropas israelitas, mediante censura prévia. Toda a restante imprensa mundial continua impedida de entrar no território.

“A história tornou-se cada vez mais dolorosa. Comunidades da Cisjordânia forçadas a sair das suas terras por causa de ataques de colonos. Gente morta em ataques de colonos, em raides israelitas. Multipliquem isso por dez e é o que estamos a fazer agora. Antes de 7 de Outubro acontecia o mesmo, só que mais lentamente, e por isso ficava invisível. A intensidade do que se passa é que fez o mundo olhar. E agora o conhecimento anterior permite-nos explicar o contexto a uma audiência internacional. Nós conhecemos isto, é a história que temos estado a contar. Nasci e cresci em Belém. Vi muita televisão durante a Segunda Intifada (2000-2005), e a Al Jazeera era ‘o’ canal. Eu ainda não tinha consciência de que o jornalismo seria a minha paixão, mas ver repórteres na linha da frente como Givara Budairi e Shireen Abu Akleh — que Deus abençoe a sua alma —, mulheres a contar a história, e recebendo tanto respeito, isso abriu o caminho a pessoas como eu. Que viviam a história. Por exemplo, o cerco em Belém [quando combatentes palestinianos ocuparam a Basílica da Natividade e ficaram cercados por tropas e tanques, que impuseram recolher obrigatório na cidade]. Eu tinha 16 anos.

“Já era claro antes da morte de Shireen que os jornalistas não eram desejados no terreno. As forças israelitas focam-se primeiro nos jornalistas quando querem dispersar um protesto. Se começarem a lançar gás lacrimogéneo, os jornalistas irão embora e eles poderão ficar à vontade. É um padrão que começámos a ver há muito. Desde que me lembro. Então, sabíamos [que não éramos desejados]. Porque estávamos lá, a documentar. Com a ascensão das redes sociais a narrativa das instituições israelitas ficou em dúvida, o que antes não acontecia. Mas conseguiram implantar o padrão de tal forma que pensaram que o assassinato de Shireen não seria, para eles, o pesadelo de relações públicas que foi. Shireen foi um alvo. Não sei se a queriam matar a ela ou se não se importavam com o facto de ser Shireen. Acho que não nos vêem como humanos. Era uma jornalista, claramente identificada, com um colete de imprensa, um capacete. Foi fogo de sniper.

“Depois do 7 de Outubro a pressão aumentou. Nas primeiras três semanas não saí de Ramallah. Era um grande risco. E Joseph Handal, o cameraman com quem trabalho e mora em Belém, foi espancado por colonos ao vir para o trabalho, em Novembro. Nas primeiras três semanas ele não saíra de Belém. Depois começou a vir para Ramallah no seu carro. Foi atacado duas vezes. A primeira, pelo exército, levaram a identidade dele, o colete à prova de balas, humilharam-no. Depois de um telefonema nosso, recuperou o colete e carteira. Mas na semana seguinte foi parado por três ou quatro colonos armados, perto de um checkpoint. Grafitaram o carro com coisas hebraicas. Bateram-lhe. Foi muito traumatizante. Ele não voltou mais à redacção. Trabalha a partir de Belém. E não é só o receio da estrada. Está abalado. Pergunta-se o que poderia acontecer se o tivessem baleado. O que os impediria de dizer que ele os atacara?

“Quando enfim tirei uns dias [depois de 7 de Outubro] e fui visitar a minha família a Belém foi muito stressante. Falei com uma colega para irmos juntas, em dois carros, uma colada à outra. É irónico... A minha mãe diz que de Belém a Ramallah eram 15 minutos de carro, através de Jerusalém.

“Eu costumava ir por um checkpoint que fechou depois de 7 de Outubro. Então tenho de ir por Qalandia [o maior checkpoint que separa Ramallah de Jerusalém] e continuar à volta [de Jerusalém], passando mais dois checkpoints, e depois pela ‘estrada do apartheid’, como muitos activistas lhe chamam, que está dividida ao meio, metade para colonos e metade para palestinianos. Depois passo perto de mais um checkpoint, na zona de Abu Dis. Outro checkpoint e chego a Beit Sahour e Belém [tendo contornado Jerusalém de norte para sul da Cisjordânia].

“Para irmos a Jerusalém, precisamos de uma autorização, mas desde 7 de Outubro muitas deixaram de funcionar. A minha acabou em Agosto. Fiz um pedido de renovação mas está congelado.

“Sinto falta da liberdade de movimento. De não passar metade do meu dia no checkpoint. De poder ver o mar. De deambular na Cidade Velha de Jerusalém. Lembro-me que Jerusalém era inacessível para nós na Segunda Intifada. Tão perto mas tão longe. Então, depois disso, fiz questão de ir sempre que era possível, para trás e para a frente nos checkpoints.

É isso. Jerusalém e o mar.

“O mar não vejo desde Julho. Lembro-me de estar a passear lá, em Jaffa [ao lado de Telavive], e pensar como a vida é tão normal em Israel. E como os israelitas nem querem saber. Estava com uma pessoa amiga, comentávamos: olha para eles, tudo é tão normal, não sabem que a Cisjordânia é uma zona de guerra. E ao voltar, comecei a ouvir as notícias, as forças israelitas a invadirem Jenin. Uma invasão gigante [12 mortos, 100 feridos, centenas de pessoas tiveram de deixar as casas]. Liguei para a redacção, estive a acompanhar toda a noite. Não podia ir porque as tropas estavam lá, e depois do que tinha acontecido a Shireen [que fora morta lá, no ano anterior]... De manhã mandámos uma equipa.

“O que me incomoda mais é que a história está a ser reescrita para começar a 7 de Outubro. Não vou entrar em justificações [sobre o que aconteceu a 7 de Outubro]. O ponto é: precisamos de entender porque isto acontece para que seja parado. Se alguém está interessado em parar isto, devia ver como Israel está a apropriar-se de terra palestiniana e ninguém fez nada. Como as pessoas estão a ser mortas a sangue frio. Como um jornalista, Muath Amarneh, perdeu um olho enquanto cobria um protesto e foi baleado. E ainda foi preso depois de 7 de Outubro. Isso ajudaria o mundo a entender a dor, a raiva dos palestinianos. Mas acho que o mundo não quer ouvir. Quer ficar na ideia dos selvagens, terroristas. E os israelitas estão na sua bolha. Não nos vêem. Puseram-nos atrás de um muro por alguma razão. Simplesmente não querem lidar connosco. Até terem de. E o mundo também não quer lidar connosco.

“Não sei se isso me surpreendeu. Mas pensei que com a gravidade do que se passa em Gaza haveria algum embaraço do mundo. Ok, há padrões duplos, não nos vêem da mesma maneira. Mas não pensei que iam ficar em silêncio todo este tempo. Gaza está a ser arrasada. As pessoas a serem mortas. Crianças. Não há água e comida. É difícil até imaginar-me lá agora. Como será estar lá agora. Mas é uma mera coincidência não ser eu ou outra pessoa qualquer a ter nascido lá.

“O facto é que não querem ver os palestinianos como humanos. Tudo é: Hamas, Hamas, Hamas. Não digo que todo o mundo é mau, falo especificamente dos líderes. O que estão eles a dizer aos palestinianos? ‘As vossas vidas não interessam. As vossas mortes definitivamente não interessam. Vocês são colaterais.’ E radicalizam os jovens da próxima geração. Eles já tinham razões suficientes para isso, porque é que lhes damos ainda mais munição? E depois, se dizemos isto, somos terroristas. Simpatizantes do Hamas.

“Eu pensava que algumas coisas eram claras. E quando vemos as pessoas a dizerem: o Hamas começou a guerra. E mais de 23 mil pessoas foram entretanto mortas em Gaza — e é como se ainda estivéssemos a 7 de Outubro.

“Não é só que os jornalistas palestinianos estão a ser alvejados. É que o mundo não acredita neles. E podemos imaginar porque é que os jornalistas estrangeiros estão impedidos de entrar. Vemos algumas histórias de Gaza na imprensa ocidental, a partir das imagens de repórteres palestinianos freelancers, mas são muito insuficientes para todo o contexto. E se compararmos com a intensidade da cobertura das baixas israelitas... Vemos também que os israelitas ‘são assassinados’ e os palestinianos ‘​morrem’​. Os ucranianos são ‘mortos em ataques russos’, e as pessoas em Gaza são mortas em ‘ataques em Gaza’. O que significa isto? Evitar usar a palavra ‘matar’? O mundo não está habituado a humanizar palestinianos.

“Andam em círculos para não dizer que Israel os matou. Mudam a linguagem para agradar à audiência. Então, uma das razões porque a guerra continua com esta intensidade é não vermos jornalistas com cobertura imparcial. Se os media ocidentais forem a Gaza, verão por si mesmos, e isto é o que assusta Israel e os Estados Unidos. Não querem deixá-los entrar porque temem que a narrativa esteja a virar. As redes sociais ajudaram a expor alguma da realidade. Sabem que certos jornalistas, por mais que estejam habituados a ver histórias e perspectivas do lado israelita, serão capazes de dizer: espera, conheço esta família. Ou: vi isto acontecer diante dos meus olhos, são civis. Ou, ou, ou. E isso não beneficiará nem um pouco Israel. Creio que chegaremos a um ponto em que os jornalistas serão autorizados a entrar, mas será demasiado tarde. Será: oh sim, um genocídio aconteceu.

“Como no caso de Shireen. Primeiro, Israel disse que tinham sido os combatentes palestinianos a alvejarem-na. Depois, tinha sido uma troca de fogo. E nós tínhamos provas forenses, análises. Até que, ok, foram eles. A ONU disse que tinham sido. Mas a história já estava morta e, se tivesse sido mais cedo, eles teriam sido responsabilizados.

“Penso que o mundo prestará atenção a Gaza demasiado tarde. É agora que precisamos que o mundo veja o que se está a passar e actue. Não só em nome dos palestinianos, mas da justiça, das futuras gerações de palestinianos. Podemos imaginar o que lhes vai acontecer daqui a 15, 20 anos. Como convencê-los de que a paz é possível? Se alguma vez lá chegarmos.”

Ontem, depois de mais camaradas seus terem sido mortos em Gaza, Nida acrescentou:

“Aqui estamos nós de novo, não só a lamentar a morte de dois jornalistas, mas também o facto de um deles ser o filho mais velho de Wael Dadhouh, que já perdeu a mulher, o filho, a filha e o neto. Como não é permitida a entrada de jornalistas estrangeiros, os jornalistas palestinianos enfrentam o desafio impossível de relatar a história enquanto estão a ser mortos à fome, deslocados e bombardeados.

“Se tudo isto pode acontecer em Gaza enquanto as câmaras estão ligadas, o que acontecerá quando Israel conseguir — e é possível que consiga — silenciar a cobertura mediática?

“Para terminar, gostaria de perguntar: onde está a fúria dos jornalistas de todo o mundo? Ouvimos sussurros e precisamos dos vossos rugidos agora.”

ALEXANDRA LUCAS COELHO, PÚBLICO

https://www.publico.pt/2024/01/10/mundo/noticia/nida-ibrahim-onde-furia-jornalistas-mundo-2076310

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