Mouraria, um bairro multicultural também na morte?

Mouraria, um bairro multicultural também na morte?
Era muito grande, foi usado durante mais de um século e nele foram enterradas pessoas de vários credos e origens geográficas, o que parece indicar que o cemitério da Mouraria, em Lisboa, espelhou na morte a realidade da vida: um bairro onde conviveram diferentes comunidades lado a lado. Os arqueólogos identificaram, primeiro, 71 sepulturas muçulmanas, provavelmente datadas do fim do século XV e início do XVI. Por baixo havia outra necrópole, bastante maior, com 259 túmulos que podem ter origem cristã ou judaica. Que haja enterramentos cristãos e/ou judaicos datados do século XV é relativamente expectável, embora também eles levantem muitas interrogações. Que haja enterramentos islâmicos depois disso é mais surpreendente. “É uma necrópole muçulmana num país absolutamente cristão”, sublinha Miguel Lago, da Era Arqueologia, empresa responsável pelos trabalhos. Nessa necrópole, há ainda “alguns indícios que remetem para a presença de africanos da África subsariana”, acrescenta ainda. Trata-se de “uma série de indivíduos que se destacam pela enorme robustez do esqueleto e características morfológicas do crânio” e que apresentam também “inúmeras modificações dentárias”, esclarece Lucy Evangelista. “Este grupo contém alguns adolescentes que são absolutamente gigantescos”, sublinha. Quem seriam?João Pedro Pincha / Público
Era muito grande, foi usado durante mais de
um século e nele foram enterradas pessoas de vários credos e origens
geográficas, o que parece indicar que o cemitério da Mouraria espelhou
na morte a realidade da vida: um bairro onde conviveram diferentes
comunidades lado a lado.
O que há, para já, são hipóteses de trabalho, ainda a requerer muito
estudo, mas a descoberta de sepulturas islâmicas e judaico-cristãs
exactamente no mesmo local, praticamente contemporâneas, aponta para uma “evidente multiculturalidade” na Mouraria durante o século XV, à semelhança do que hoje acontece.
Já se sabia que na encosta da Graça houve em tempos uma grande
necrópole, aqui e ali entrevista através de sondagens e escavações
arqueológicas. A construção de um condomínio na esquina entre a Rua dos Lagares e a Calçada do Monte permitiu uma escavação de maiores dimensões.
Os arqueólogos identificaram, primeiro, 71 sepulturas muçulmanas,
provavelmente datadas do fim do século XV e início do XVI. Por baixo
havia outra necrópole, bastante maior, com 259 túmulos que podem ter
origem cristã ou judaica.
Que haja enterramentos cristãos e/ou
judaicos datados do século XV é relativamente expectável, embora também
eles levantem muitas interrogações. Que haja enterramentos islâmicos
depois disso é mais surpreendente. “É uma necrópole muçulmana num país
absolutamente cristão”, sublinha Miguel Lago, da Era Arqueologia,
empresa responsável pelos trabalhos.
Os enterros islâmicos são
fáceis de identificar porque os cadáveres são depositados de lado,
virados para Meca, ao contrário dos de tradição judaico-cristã, em que
os indivíduos recolhem ao eterno descanso de barriga para cima. As
sepulturas cristãs assumiam ainda, muitas vezes, uma forma
antropomórfica “para garantir que a cabeça do morto não virava para
Meca”, explica a antropóloga e arqueóloga Lucy Evangelista.
Não foi ainda possível determinar com exactidão os períodos em que
ambas as necrópoles foram criadas e estiveram em uso. O que está bem
datado são as lixeiras em que elas assentavam. Naquela zona havia uma
intensa actividade de oleiros, memória que ainda hoje persiste na
toponímia. Todo aquele terreno foi usado inúmeras vezes como depósito do
lixo originado pelas olarias e a sua datação permite balizar
temporalmente as necrópoles.
Começando pela islâmica. “A
Inquisição instala-se na década de 1530, por isso é pouco provável que
seja posterior a esse período”, diz Marina Pinto, coordenadora
científica da escavação. Nessa necrópole, há ainda “alguns indícios que
remetem para a presença de africanos da África subsariana”, acrescenta
ainda.
Trata-se de “uma série de indivíduos que se destacam pela enorme
robustez do esqueleto e características morfológicas do crânio” e que
apresentam também “inúmeras modificações dentárias”, esclarece Lucy
Evangelista. “Este grupo contém alguns adolescentes que são
absolutamente gigantescos”, sublinha. Quem seriam? “Podem não ser
escravos”, opina Hermenegildo Fernandes, investigador de História
Medieval na Universidade de Lisboa. “Estão integrados num cemitério
civil, normal, não me parece que fossem escravos”, sustenta Lucy.
Joalharia é chave
“Há
uma continuidade de enterramentos na zona. O facto de haver
enterramentos islâmicos não implica que não houvesse enterramentos
judaicos e cristãos”, afirma Hermenegildo Fernandes, destacando que a
área escavada “não corresponde à totalidade do cemitério” e que só
futuras escavações poderão deitar mais luz sobre o assunto. “Ainda não
pensámos o suficiente sobre tudo o que estas coisas querem dizer”,
alerta o historiador, que ainda assim deixa algumas pistas: “A ideia de
segregação das comunidades é relativamente tardia. A separação física é
uma coisa do século XV.”
Segundo os relatos da época, quando D. Afonso Henriques tomou Lisboa, em 1147,
haveria na cidade tantos muçulmanos como cristãos, e depois disso muita
população islâmica por cá ficou, instalando-se sobretudo nos arrabaldes
– como a Mouraria, que deve o seu nome precisamente a isso.
“Há uma fluidez de culturas”, diz Lucy Evangelista, que noutra
escavação encontrou enterros islâmicos com brincos e colares, algo
proibido na religião muçulmana, e que atesta a aculturação das
populações. “Do ponto de vista cultural as coisas não são estanques. Há
muitos cristãos que usam loiça muçulmana. A corte usa panos de seda
feitos em Granada”, exemplifica Hermenegildo Fernandes. “Há marcas
identitárias, mas isso não quer dizer que não houvesse coisas que se
partilhavam no quotidiano. Existe uma permeabilidade entre universos
religiosos e culturais.”
Se isso é verdade na vida, sê-lo-á também
na morte. E o mesmo se aplica à necrópole maior, a mais antiga. “Será
só cristã ou só judaica? Será que há cristãos e judeus ao mesmo tempo?”,
questiona Miguel Lago. A dúvida advém sobretudo da “multiplicidade de
características comuns aos dois preceitos”, mas também porque foi
encontrado “um conjunto de jóias absolutamente inacreditável”, nas
palavras de Lucy, que parece apontar para alguma presença de judeus.
“Temos indivíduos enterrados com brincos, colares e anéis”, diz. Há
ainda objectos que se prestam a mais do que uma interpretação, como o
pendente em forma de mão, que está associado à religião judaica (mão de
Miriam) como à religião islâmica (mão de Fátima). “A joalharia é um
quebra-cabeças. São poucas coisas, pode ser que sejam judaicas, mas
precisam de ser estudadas”, diz Hermenegildo Fernandes. Esse é um dos
desafios imediatos para a Era.
O objectivo do historiador é levar
adiante um projecto de estudo das necrópoles e sua comparação com outras
congéneres, em Portugal e no estrangeiro. Há ainda, no seu entender,
três questões por responder: qual era a dimensão total do cemitério; de
que forma é que estava relacionado com as olarias; quem é que lá está
enterrado.
Fonte: https://www.publico.pt/2019/11/16/local/noticia/necropole-mouraria-1893957
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