Amin Maalouf: “Caminhamos para um mundo da lei da selva e não para uma nova ordem mundial”

 

Garante que ficou “profundamente feliz” por receber o Prémio Gulbenkian, porque “não se parece muito com outros prémios”, preocupando-se por “valores mais essenciais”. Amin Maalouf, libano-francês, é um escritor reconhecido e um intelectual de renome que lançou em Março o ensaio Le naufrage des civilisations.​

Amin Maalouf: “Caminhamos para um mundo da lei da selva e não para uma nova ordem mundial”

António Rodrigues / Foto de Daniel Rocha (PÚBLICO)



Está habituado a receber prémios, o que pensa deste prémio Gulbenkian?
 
Fiquei profundamente feliz de receber este prémio que não se parece muito com os outros prémios. É um prémio que vai para lá do aspecto literário ou do estilo, que se interessa por preocupações mais essenciais, que são os valores pelos quais escrevo. Desse ponto de vista é um prémio especial.

Conhecia a figura de Calouste Gulbenkian?
 
Interessei-me por ele, mas não conheço verdadeiramente em profundidade. Sou sensível ao facto de ser alguém que vem da minha região natal, que foi acolhido de uma forma que manifestamente o tocou e que o levou a retribuir e há qualquer coisa de belo nessa generosidade mútua.

O júri do prémio refere que é “um incansável construtor de pontes, procurando mostrar o caminho das reformas necessárias para construir um mundo em paz”, é isso que sempre procurou ser?
 
É o que espero fazer, não é uma coisa simples e está a tornar-se cada vez mais difícil. Um dos paradoxos do mundo actual é que as pessoas estão muito mais próximas umas das outras e estão constantemente em contacto, ao mesmo tempo essa proximidade cria tensões, rejeições, irritações. São estes dois movimentos contraditórios que estão em prática. De um lado, um movimento que agrupa, conduzido de forma inconsciente pela evolução tecnológica que nos aproxima, que facilita a comunicação. Por outro, temos o movimento contrário, um movimento de afirmação identitária. O conflito entre estas duas forças é uma das consequências importantes da nossa época.

Se for a reconciliação a triunfar, a humanidade terá superado um estádio da sua história e direi mesmo que entrará plenamente na história. Porque todo este período de conflito, de guerra que aparece como história, para mim é a pré-história. A história começará quando os homens sentirem que pertencem à mesma nação humana, e tiverem ambições à dimensão dessa nação humana. E que a primeira pátria para todos seja a Terra e que as outras pátrias, embora importantes, não lhes façam perder de vista o essencial. Estamos longe disso, infelizmente, mas é em direcção isso que devemos ir se quisermos evitar desastres.

Acredita que a humanidade de hoje é humanista?
 
Acho que há uma crise do humanismo e um recuo do universalismo. É algo que me inquieta muito, mas não penso que seja irreversível. Há forças objectivas que acabarão por levar ao triunfo do universalismo. Mas daqui até lá vamos passar por períodos difíceis.

Temos tudo para sermos sábios, temos o acesso a todo o conhecimento humano, mas continuamos sempre a defender a nossa rua, o nosso bairro. Por que razão o cosmopolitismo parece estar a perder esta luta?
 
É o mesmo movimento que provoca aspectos positivos e negativos. A forma da civilização global põe em dificuldades cada uma das civilizações em particular. Depois, a civilização global não é neutra, nem anódina, tem mais marcas de umas civilizações que de outras, não é fácil para toda a gente reconhecer-se nessa civilização. Uma das coisas importantes a fazer no mundo actual é conseguir que a civilização global seja realmente global, ou seja, assente em valores universais e, ao mesmo tempo, que tenha em conta a diversidade cultural do mundo. Porque a tecnologia moderna nos permite, que seja em todas as línguas, que cada um sinta que a sua cultura, a sua história, a sua literatura, o seu conhecimento são respeitados no mundo. Há um combate a travar por isso, um combate pelo respeito da dignidade de cada um e para que a universalidade instalada não venha abolir aquilo que o homem tem de mais profundo. É um combate que exige muita vontade, lucidez, também subtileza e perseverança.

Houve ingenuidade ao não antecipar que o globalismo iria criar um movimento contrário?
 
A globalização não chegou com instruções de utilização. É um fenómeno novo que vimos chegar e não sabíamos realmente como iria evoluir. Portanto, é a partir de agora que temos de utilizar a globalização da melhor maneira. Comparei-a num livro a um marinheiro e ao vento que sopra, o marinheiro não pode controlar o vento, pode controlar a vela da sua embarcação para chegar ao melhor lugar ou, se não souber, ao pior.

A globalização é uma realidade irreversível, não foi votada por referendo [risos], apenas temos necessidade de saber como aproveitar as vantagens e reduzir os inconvenientes. É uma longa aprendizagem, por isso, na minha perspectiva, estamos numa época em que a cultura é essencial. Há pessoas que dizem que as prioridades são outras e não é assim, o verdadeiro problema actual é saber para onde vamos e a cultura pode ajudar-nos a perceber o caminho.

É, como Leão, o Africano, um homem do Oriente e do Ocidente. É difícil ser assim, num tempo turbulento como este em que nos pedem para escolher um lado?
 
É difícil, mas também tem vantagens. Temos necessidade hoje de conhecer esses dois mundos que se confrontam desde dentro, para poder reflectir sobre a maneira de os reconciliar. Podemos imaginar um mundo onde se pode assumir plenamente todas as pertenças sem nos sentirmos deslocados. Não é onde estamos hoje, mas podemos avançar nesta direcção. Não temos escolha. A questão de se podemos viver todos juntos não é opcional, não podemos chegar à conclusão de que não podemos viver juntos. A pergunta é como podemos viver todos juntos. Encontrar soluções. Se começamos a dizer que se trata de um conflito interminável será a destruição de tudo.

Fala no seu último ensaio, Le naufrage des civilisations, publicado em Março em França, de “derivas cada vez mais inquietantes” que ameaçam a civilização. Estamos a caminho de uma nova Idade das Trevas?
 
O que me inquieta é que a atmosfera de desconfiança e de hostilidade existente entre esses dois mundos e, de uma forma geral, o aumento da tensão identitária está a levar à alteração a natureza das novas tecnologias. As novas tecnologias, que tanto nos dão no domínio do conhecimento e da comunicação, neste mundo onde todos têm medo uns dos outros, estão a fazer-nos derrapar cada vez mais para o controlo, a protecção. Um controlo que pode tornar-se incontrolável: podemos ouvir tudo o que toda a gente diz, tudo o que toda a gente escreveu, para onde toda a gente vai. Estamos num mundo onde as novas tecnologias colidem cada vez mais com as nossas liberdades e, ainda por cima, concordamos com isso. Para mim isso é o mais inquietante.

Evoca a região do Levante, onde nasceu, como “um modelo eloquente de coexistência harmoniosa e de prosperidade”, que poderia servir de exemplo à humanidade.
 
Esse modelo foi sempre hipotético. Nunca houve uma experiência que o tenha concretizado e que possamos dar hoje como exemplo. Houve elementos encorajadores, promissores que poderiam ter produzido um modelo de valor universal. Nunca aconteceu, os elementos mais promissores desapareceram, os inquietantes tornaram-se ainda mais inquietantes e mais dominantes. No entanto, penso que é legítimo lamentá-lo porque havia nele qualquer coisa promissora e que nos poderia ter levado noutra direcção e ter repercussões noutras regiões do mundo.

O seu desaparecimento não demonstra que esse modelo de coexistência é uma excepção e não uma regra?
 
Efectivamente, sempre foi a excepção. No Líbano, em certas partes do país, havia uma coexistência de qualidade; no Egipto era mais ambíguo, porque apenas uma fracção da população beneficiava disso. Portanto, nos dois casos havia aspectos inquietantes: no Egipto, as comunidades estrangeiras tinham privilégios dificilmente aceitáveis para a população e que não podiam durar indefinidamente, havia que repensá-los; no Líbano, o sistema de comunidade não posso dizer que era bem gerido, mas havia nele certos elementos que poderiam produzir um modelo funcional.

Teríamos de evoluir de um modelo em que as pessoas se sentem primeiro como membros da sua comunidade para um modelo em que as pessoas, continuando a pertencer à sua comunidade, têm o sentimento de pertencer primeiro a uma grande comunidade nacional. Houve períodos em que se evoluiu um pouco nessa direcção, mas depois regrediu-se e hoje a ligação à comunidade nacional é muito mais fraca do que era há 40, 50 anos.

A guerra civil de 1975-76 não marcou o fim desse modelo de coexistência?
 
De grosso modo, sim. Quem lá vivia, como eu, notou os rangidos antes. Mas podemos dizer que quando a guerra rebentou em 1975 se tornou muito difícil restabelecer o equilíbrio e a situação não melhorou nos últimos 40 anos.
 
No livro fala de datas importantes para o estado actual do mundo, como 1967 e 1979.
 
Em 1967, é a derrota de Nasser e dos árabes na guerra contra Israel e é importante porque o mundo árabe nunca mais recuperou o equilíbrio. Todo o movimento nacionalista árabe que dominou o mundo político árabe durante décadas saiu derrotado, conduzindo à ascensão de um movimento nacionalista baseado na religião. E o mundo árabe nunca mais recuperou a autoconfiança, a capacidade de considerar o futuro com serenidade. É o princípio de um fenómeno, cujos efeitos ainda hoje se sentem, que é o do desespero do mundo árabe.

O ano de 1979 é diferente, mais global. De um lado temos o acontecimento simbólico da revolução iraniana, a primeira vitória significativa do movimento nacionalista religioso. Não veio só, porque houve movimentos semelhantes noutros países, que mostram uma mudança de estado de espírito. Mas não é só isso, 1979 é também o ano da mudança da governança no Ocidente e que se expandiu ao mundo inteiro, que começou com Thatcher e Reagan e se tornou um pouco a norma. É também o fim da visão de um capitalismo social que tentava concorrer com o comunismo no plano social. O surgimento de uma política económica mais dura, sem desculpas.

A partir desse ano, há como que uma mudança na atmosfera global com forças conservadoras mais ofensivas, mais competitivas, mais seguras de si, e as forças que tradicionalmente representavam o progresso tornam-se mais defensivas, preocupadas, sobretudo, em defender o adquirido.

Na China tivemos uma, podemos chamar-lhe, revolução, eficaz, que retirou o país do subdesenvolvimento e se fez, na sua essência, contra a revolução maoísta. Entre essa orientação, que mudou a forma de governo, e a revolução iraniana, que marcou o princípio de uma tensão identitária muito mais forte, temos o quadro geral do mundo de hoje, um mundo de tensões identitárias, de tensões sociais (porque as pessoas se sentem abandonadas).

Escreve que “enquanto a utopia comunista ensombrecer os abismos, o triunfo do capitalismo vem acompanhado de um desencadear obsceno de desigualdades.”. Enquanto a sombra da União Soviética se mantiver gravada na memória, o capitalismo terá mãos livres para continuar a aumentar essas desigualdades?
 
Até hoje, o pêndulo vai nessa direcção. O sistema criado pelos soviéticos gerou tanta repulsa que no Ocidente se criou o sentimento de que se podia fazer de tudo porque o capitalismo é a única política possível. Como dizia Thatcher “there is no alternative”. Não estamos numa situação catastrófica no mundo Ocidental. Prevêem-se crises nos próximos anos, mas até agora as coisas vão bem. A tensão social aumenta, mas não a um nível que leve à explosão do sistema. Mas a dado momento, será preciso pensar num sistema que possa fazer sentir ao conjunto da população que é parte envolvida no progresso.

Desde há 40 anos, temos tendência a aceitar que alguns possam tornar-se muito ricos e os outros que se safem. É um quadro perigoso. Na França, tivemos um alerta com os “coletes amarelos”. Não sei em que momento poderá degenerar. Sente-se um mal-estar e isso poderá revelar-se explosivo.

A UE e a NATO deram-nos a paz durante 70 anos. Acha que a ideia da guerra voltou a ser possível na Europa?
 
Não acredito. Duvido que a Europa regresse aos nacionalismos e à guerra. Mas receio que não esteja a desempenhar o papel que poderia ter a nível global. E se não puder ter um papel global, arrisca-se a ser vítima das grandes agitações a nível mundial. Não estamos num mundo em que alguém que pareça fraco possa viver sem pagar pela sua fraqueza. É algo que se deve a falhas no projecto de construção europeu, mas não vejo um regresso à Europa de antes, dos conflitos entre a Alemanha, a França, a Itália.

O “Brexit” não é um sinal de naufrágio da integração europeia?
 
É um fracasso. Ainda não avaliámos todas as consequências desse fracasso. Ainda tenho esperança de que possamos evitá-lo. É cada vez mais improvável, mas continuo à espera que no último momento haja qualquer coisa que permita que a Inglaterra trave no último momento à beira do precipício e não caia. Talvez isso permita repensar a construção europeia. Há muita gente que tem consciência dos problemas na Europa, e que gostaria de dar um verdadeiro impulso à construção europeia.

Acredita que a América está a perder toda a autoridade moral. Que importância terá essa perda?
 
Não sei, mas este novo lugar dos Estados Unidos no mundo, a perda de credibilidade, a vontade de se retirar de algumas regiões, esta atitude de entrar em conflito comercial com toda a gente, terá certamente consequências. Se virmos o que aconteceu nestes dias com a Turquia, que é um pilar da NATO, que começou a armar-se com a Rússia e está em ruptura com os EUA, é uma grande reviravolta com consequências globais. O mundo sentia-se mais confortável com uma América mais razoável, que desempenhasse um papel de grande potência sábia. Tenho a impressão que vamos para um mundo da lei da selva e não para uma nova ordem mundial. Vamos passar por muita turbulência.

Fonte:  https://www.publico.pt/2019/07/19/mundo/entrevista/amin-malouf-caminhamos-mundo-lei-selva-nao-nova-ordem-mundial-1880608

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