Tignous: a liberdade (e a coragem) de ilustrar o mundo



É a primeira vez que os desenhos do cartoonista Tignous, assassinado em 2015 na redacção do Charlie Hebdo, são expostos fora de França. Podem ser vistos em Setúbal, na Festa da Ilustração, até 30 de Junho, no Museu do Trabalho Michel Giacometti e na Escola Superior de Educação

RITA PIMENTA / PÙBLICO

O atentado terrorista ao jornal francês Charlie Hebdo foi uma das causas da realização da primeira Festa da Ilustração de Setúbal, logo em 2015, como necessidade de valorizar a importância e coragem de quem desenha o mundo. Por isso, o designer José Teófilo Duarte, um dos directores do projecto, agarrou a oportunidade de trazer a Portugal os trabalhos de um dos cartoonistas mortos a 7 de Janeiro de 2015 e assim homenagear também todos os outros.

Ilustrar a Liberdade é o título de um conjunto representativo e expressivo do trabalho de Tignous (Bernard Verlhac), que pode ser visitado no Museu do Trabalho Michel Giacometti e na Escola Superior de Educação de Setúbal. A exposição foi inaugurada por Chloé Verlhac, a sua companheira na altura da sua morte, com quem teve dois filhos. A ajudar na apresentação esteve Cristina Sampaio, cartoonista do PÚBLICO, convidada principal desta 5.ª edição da festa e amiga de ambos.

Nas palavras de Chloé Verlhac, o cartoonista “teria muito orgulho em ver os seus desenhos expostos num museu do trabalho”, isto porque vinha de “um meio humilde: a mãe era secretária e o pai distribuía correio à noite”. Tignous nunca terá esquecido o esforço deles para lhe dar um bom futuro. Dizia mesmo sentir-se “um impostor”, já que não se interessava nada pelos estudos. No entanto, houve um professor que percebeu que o jovem desenhava bem e o encaminhou para explorar esse talento.
Numa apresentação comovida, Chloé Verlhac deu-nos conta de que o ilustrador “era um homem bom” e que, nestes anos após a sua morte, falou apenas do seu trabalho. No entanto, pensa “ser agora o momento de falar no homem que era e em como isso se espelhou no desenhador”.

Por isso, contou e repetiu algumas ideias que constam do seu prefácio ao livro Tignous, Éditions du Chêne, 2015. Entre elas, a de que “gostava de dizer que um desenhador desenha o seu ser interior e que ele, no interior, era um ‘boneco de nariz grande’ — um homem comum, de certo modo”. Apreciava que lhe dissessem ser “um tipo normal, com uma hipoteca, um carro e um cão”. E tinha uma espécie de lema: “Nunca julgar antes de conhecer.” E era sem julgamentos que desenhava.

Sobre o seu sentido de humor, recordou um episódio numa das prisões onde fez reportagem. “Cruzou-se no corredor com um recluso muito grande e forte, que vinha apenas com uma toalha enrolada à cintura, mas trazia uma bolsa transparente com uma esponja cor-de-rosa.” Tignous soltou uma gargalhada. “O guarda prisional temeu o pior.” No entanto, a genuinidade do seu riso e a atitude sincera de o olhar nos olhos, sem preconceito, fez com que o recluso voltasse atrás, lhe desse um abraço, se divertisse também e ainda lhe dissesse “obrigado”. Segundo Chloé, ele sentia-se “muito orgulhoso desse momento de liberdade”.
Outra faceta que quis destacar foi o interesse que demonstrava pelos trabalhos dos jovens que chegavam à redacção do Charlie Hebdo. “Era o único que olhava para aqueles desenhos e aplicava tempo em responder-lhes”, conta. E justifica: “Não se esquecia como tinha começado. Se tinha conseguido ser desenhador, isso devia-se ao facto de alguém habilitado ter olhado para os seus desenhos e o ter incentivado. Queria fazer o mesmo a outros.” E também ia a todos os encontros e festivais para que o convidavam, “às vezes em locais que nem sabia que existiam”.

Tignous formou-se na escola Boulle, em Arquitectura de Interiores, mas acabaria por não exercer a profissão, para grande alívio de Chloé, que lembra divertida: “Um dos seus projectos envolvia caixas de cartão e vivemos no meio delas durante algum tempo… por toda a casa.”

O cartoonista fez parte da equipa fundadora da Grosse Bertha, que viria a transformar-se em Charlie Hebdo, em 1992. Inventou um estilo gráfico com a “BD-documentaire-récit” com Le Procès Colonna, tendo por isso recebido o Prémio France Info de Banda Desenhada da Actualidade e de Reportagem em 2009.
Quando Chloé lhe dizia que os desenhos dele eram “duros”, nomeadamente em trabalhos que fez sobre “pedofilia em escolas corânicas”, respondia-lhe: “Dura é a realidade, não os meus desenhos.”

Rir de tudo mas não com todos

Também costumava dizer que se pode “rir de tudo, mas não com toda a gente”. Sempre fez por desenhar “o lado humano das pessoas, mesmo o mais desagradável”. E tinha uma espécie de hierarquia sobre o valor das imagens: “Se um desenho faz rir, é um bom desenho. Se faz rir e reflectir, é um desenho muito bom. Se nos faz rir, reflectir e termos vergonha de rir, então é um desenho excelente.”

Chloé continua a achar incrível como, “cinco anos depois da sua morte, alguns desenhos podiam ter sido feitos hoje”. É a prova em como “sabia retratar a nossa humanidade”.
Foi com bastante emoção, já no final, que recordou que na última reunião de redacção em que Tignous participou, no dia do atentado, tinha questionado os colegas: “Qual é a nossa quota-parte de responsabilidade no sofrimento desses jovens que partem para a jihad… para chegarem a esse ponto?”

Para concluir, Chloé Verlhac afirmou que “estas exposições e a possibilidade de dar a conhecer os seus trabalhos são a nossa vingança pacífica”. O prefácio ao livro termina assim: “Eles mataram um homem bom. Mostrar os seus desenhos é a nossa mais bela vingança. A inteligência contra a cretinice, o riso contra o obscurantismo e a vida mais forte do que a morte. Nós damos-te continuidade. Nós dar-te-emos continuidade.” Seja.

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