Só a laicidade salvará o Islão


Só a laicidade salvará o Islão

LEVENT GULTEKIN

O instituto de sondagens KONDA, em Istambul, acaba de publicar os resultados de um inquérito à opinião pública sobre as mudanças registadas na sociedade turca nos últimos 10 anos. Olhemos para os números relativos à religião: a percentagem de inquiridos que se declaram “religiosos” desceu de 55 % para 51 %. A dos que se consideram ateus subiu de 1% para 3%, e a dos que se definem “sem crenças” cresceu de 1 para 2 por cento.

Estando em funções um governo que, desde há uma década, vem elevando a religião e os lugares sagrados ao primeiro plano em todas as esferas da sociedade, seria de esperar que a religiosidade da população aumentasse. No entanto, o que aconteceu foi o contrário. Porquê?

A análise que predomina é a de que “os religiosos no poder deram um mau exemplo e, com isso, afastaram as pessoas da religião”. É verdade, mas o problema é muito mais profundo, porque esta crise não é uma crise dos países muçulmanos. É uma crise do próprio Islão. É uma crise de uma concepção de religião sem qualquer ligação à vida objectiva dos crentes ou às mudanças culturais; uma religião feita de percepções e de interpretações que, em vez de darem respostas às pessoas, ainda dificultam mais as suas vidas.

Goste-se ou não, as pessoas mudam. E mudam os modos de vida, as culturas, os hábitos, o mundo. Uma interpretação invariável e fossilizada da religião pouco tem, pois, para oferecer às pessoas. A ortopraxia imposta aos crentes por estas interpretações priva-os de uma vida normal.

Corão histórico ou universal?

Por ainda não ter sido capaz de se reformar, o Islão não está em harmonia com a visão dos crentes. Consequentemente, as pessoas são obrigadas a uma escolha: ou continuam ligadas à religião e desligam-se do mundo ou optam por uma vida normal e humana, afastando-se da religião.

No Islão, há também aspectos que, nos nossos dias, são inaceitáveis, incompreensíveis e impraticáveis. No que diz respeito, por exemplo, à idade mínima para as raparigas se casarem [em 2018, dois directórios religiosos na Turquia consideraram que, segundo a lei islâmica, ou “sharia”, é permitido o casamento de meninas a partir dos 9 anos], ou ao estatuto jurídico e económico das mulheres ou à relação com outros monoteísmos.

É por os muçulmanos não terem sido capazes de encontrar remédios para estes males que o Islão mergulhou numa crise profunda. Na Turquia, esta crise é também do AKP [Partido da Justiça e Desenvolvimento, no poder], que se apoia na religião. O problema, para os muçulmanos no mundo inteiro, é ser quase impossível chegar a um acordo sobre um Islão moderno, novo e único. Vê-se isso, designadamente, no debate que tem vindo a agitar os teólogos, uns dizendo que o Corão tem um carácter  histórico e outros que tem um carácter universal. Para os primeiros, certos “hadiths” [palavras atribuídas ao profeta Maomé] são o resultado do período histórico em que foram redigidos, da cultura e das tradições da época, e hoje não devem ser legitimados. Para os segundos, todos os “hadiths” são válidos e comprometem os muçulmanos.

O teólogo Mustapha Ozturk, que defende a tese da “historicidade” do Corão, revelou recentemente ter recebido ameaças por causa das suas obras, e admite que se tornou impossível continuar a trabalhar na Turquia.

Baluarte do secularismo

A única maneira de sair destes impasses é, na minha opinião, a laicidade, porque a essência do secularismo é esta: acreditem no que quiserem, vivam como entenderem, mas não utilizem o Estado para impor as vossas ideias à sociedade.

Habitualmente, a laicidade é vista como um baluarte que protege os não crentes e os não praticantes, face a um Estado assente na religião. Mas tem outras vantagens. Ela permite proteger as pessoas dos que, depois de terem aprisionado a religião numa interpretação esclerosada para que apodreça, a tentam impor aos outros. Ela exclui frases como “O Islão é isto e é assim que deves viver”, o que contribui para afastar mais as pessoas da religião. Deste ponto de vista, a laicidade poderá beneficiar, em última instãncia, os que são religiosos.

Sem coragem para reformar o Islão com propostas de novas interpretações dos seus textos sagrados, os muçulmanos desvitalizaram o Islão e isolaram-no da existência humana. Um Islão desvitalizado desvitaliza, por seu turno, a existência dos muçulmanos, e os que querem manter um diálogo saudável com o resto da sociedade distanciam-se da religião. O AKP, ao destruir a laicidade, prejudica o Islão, deixando-o desamparado diantes das crises que o afligem.

Jornalista e escritor, Levent Gultekin abraçou o Islão aos 13 anos e, durante três décadas, dedicou-se “de alma e coração” ao que chamava “a causa”. Tentou, em vão, candidatar-se à chefia do Estado em 2014 e, no ano seguinte, publicou “Satafati Maglubyet” (A Gloriosa Derrota), o livro no qual conta como “reformatou” a vida aos 43 anos.

[Texto da página turca Diken (http://diken.com.tr), publicado na edição portuguesa do Courrier Internacional, Abril de 2019. Tradução de Maria Alves]

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