Acabar com os cartoons é ter o New York Times "a fazer o jogo" de Trump

 

António e André Carrilho não duvidam de que é uma forma de censura a decisão do diário norte-americano de acabar com os cartoons nas suas edições. É o vírus Trump na democracia, concordam os caricaturistas portugueses

Acabar com os cartoons é ter o New York Times "a fazer o jogo" de Trump

 DAVID MANDIM / DN

O "vírus Trump está a tornar a democracia cada vez mais próxima da ditadura". É a reação de António, o caricaturista português que viu um seu desenho ser retirado das páginas do The New York Times (NYT) por, na opinião da direção do jornal americano, ser antissemita e ofensivo, após o diário ter anunciado que iria deixar de publicar cartoons editoriais. André Carrilho, outro dos grandes cartoonistas portugueses, que publica nas páginas do DN, diz que "é um decisão lamentável" e critica o jornal por "capitular perante as redes sociais" e acabar "a fazer o jogo de quem o critica", referindo-se a Donald Trump.

"É uma má notícia para a liberdade de expressão e é preocupante que democracias comecem a conviver mal com o cartoon", reage António, em declarações ao DN, admitindo que a decisão do jornal norte-americano o "surpreende claramente". Na sua página de Facebook, o cartoonista português partilhou já uma mensagem apresentada pelo desenhador francês Marc Large. Sob um fundo negro, surge a frase "Je Ne Suis Pas New York Times", recuperando a ideia do "Je Suis Charlie Hebdo", em modo inverso. "Acho que está bem conseguido, por isso partilhei."

Convicto de que o cartoon "está ligado à democracia", à liberdade de expressão, António entende que, em casos como este, "a censura está a ser aplicada". Critica o NYT por tomar esta decisão. "É resultado de uma campanha orquestrada pelo filho do Trump e por uma vaga na redes sociais. O desenho não é nada antissemita. Invoca-se isso para censurar um desenho que é crítico do Estado de Israel, da política do governo de Netanyahu. Pode ser antissionista mas não é antissemita."

António diz que a reação é agora fundamental, sendo necessário mostrar ao NYT que a decisão é errada. Os leitores devem ter uma palavra a dizer, considera. Já houve quem tomasse posição. A associação americana de cartoonistas criticou a opção editorial do diário, considerando que é motivo para alarme em todo o mundo a censura dos cartoons das páginas do jornal.

O desenho de António foi publicado no jornal americano, tendo ali chegado através de um consórcio internacional a que o cartoonista português está ligado, depois de uma primeira publicação no Expresso a 19 de abril, sem polémica. Com as críticas, o NYT acabou por retirar o desenho da sua página online, depois de ter sido publicado na edição impressa internacional, por considerar que era ofensivo. "Foi um erro publicá-lo", salientou o jornal em comunicado no final de abril, para depois acabar com o acordo com o consórcio. O desenho mostrava um homem cego, Donald Trump, a ser levado por um cão-guia com o rosto do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, com uma coleira com a estrela de David.

Agora, a decisão de deixar de publicar cartoons levou o desenhador Patrick Chappatte, até aqui o principal cartoonista do NYT, a escrever um texto em que deu conta da notícia e em que deixa uma crítica ao desenho de António: "Estou a pousar o meu lápis, com um suspiro: são muitos anos de trabalho desfeito por um único cartoon - nem sequer meu - que nunca devia ter sido publicado no melhor jornal do mundo."

"O Chapatte entrou num espaço que não devia. Ele não tem de aprovar o cartoon, os editores é que decidiram meter lá um desenho meu que foi feito para os leitores do Expresso. Mas percebo que está num estado emocional difícil, acabou de perder o emprego", comenta António, para quem o texto que o colega desenhador publicou a propósito desta decisão editorial comete o erro de dar o exemplo de Erdogan, que não pode ser caricaturado na Turquia, como um dos casos em que agora no NYT também não poderá ser motivo de um cartoon. "E em relação ao Netanyahu? Se fala em Erdogan, e bem, devia pensar o mesmo em relação ao primeiro-ministro de Israel. Não se pode caricaturá-lo? É a mesma coisa, não se pode ter dois pesos e duas medidas. Nem os judeus podem achar que não podem ser criticados. O cartoon em causa não é contra os judeus, não tenho nada contra eles, é contra o governo de Israel."

Com Trump "não se indignam"

André Carrilho é crítico da decisão e circunscreve a situação aos EUA e mesmo ao NYT. "Nunca gostaram muito de publicar cartoons, apesar de haver muitos caricaturistas nos EUA. Para mim o pior é um jornal de referência deixar de ter uma das vertentes do jornalismo. Um jornal deve ter tudo, de artigos de opinião a cartoons. Parece haver um receio de ofender suscetibilidades, não percebo", aponta um dos mais premiados caricaturistas portugueses.

Com elogios a António - "Não é antissemita nem o cartoon é" - e a Patrick Chapatte - "Um dos melhores do mundo que não vai ter problemas em arranjar emprego" -, André Carrilho diz que a caricatura é "a forma em que a liberdade de expressão mais se exerce de forma plena". Por isso, os autoritários, como Trump, Erdogan ou Netanyahu, "têm todos os mesmo desejo: acabar com o pluralismo". Para o português, esta decisão do NYT é estranha. "Interiorizam as críticas de Trump e reagem de acordo como se fossem aquilo que o Trump diz que são. Não se percebe." Ainda mais incompreensível é preocuparem-se com cartoons alegadamente racistas como foi o caso com a caricatura de Serena Williams. "Já nessa altura se levantaram ondas de indignação. Mas do presidente não se indignam. Têm um homem que é supremacista branco, que permite manifestações neonazis, e o problema são os cartoons", diz André Carrilho.

Esta censura é, por enquanto, muito americana, sinal dos tempos de Trump, concorda António. "Não sei avaliar bem o que se passa nos EUA. Na Europa creio que não há esse perigo, ainda se vê a caricatura como uma forma de expressão, de liberdade." Em Portugal, a situação é diferente e o problema é outro: "O mundo dos cartoons já é tão restrito. Há uns cinco autores a publicar regularmente. Vamos morrendo porque morrem os jornais e há uma lógica economicista que leva sempre a cortar primeiro no desenho", diz o caricaturista que há décadas publica no Expresso.

O que vale hoje um cartoon na imprensa? "Costumo dizer que é um oásis no meio de um mar de letras. É um olhar diferente, descomprometido. Esteticamente é interessante, divertido. Numa época em que a cultura é muito imagem, é terrível apagar os cartoons", responde António.

É isso que irá fazer o NYT. No comunicado em que anunciou a medida a vigorar a partir de 1 de julho, o jornal não refere o cartoon de António. Escreve que já há um ano pensava em aproximar a edição internacional da edição nacional no que diz respeito aos cartoons políticos. "Planeamos continuar a investir em forças de jornalismo de opinião, incluindo jornalismo visual, que expresse nuances, complexidade e uma voz forte de uma diversidade de pontos de vista em todas as nossas plataformas", segundo o texto assinado pelo editor da página editorial, James Bennet.

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