O orgulho "gay" e a propaganda israelita, de São Paulo a Telavive
Israel busca, através de campanhas midiáticas e de relações públicas, combater sua crescente reputação agressiva e colonialista no cenário internacional
Da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo à de Tel Aviv: precisamos falar sobre propaganda israelense e interseccionalidade de lutas
Por Júlia Azevedo, Alexandre Martins e Lucas Alonso
Diversos manifestantes denunciaram os esforços de propaganda do
Estado de Israel na 22ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo que ocorreu
no dia 3 de junho de 2018. O Consulado Geral de Israel em São Paulo, a
Câmara de Comércio e Turismo LGBT do Brasil e a Accor Hotels promoveram o
bloco de Tel Aviv na Avenida Paulista, com a distribuição de camisetas criadas pelo estilista Alexandre Herchcovitch e a presença do DJ israelense Micky Friedman.
O Consulado Geral de Israel divulgou a iniciativa com a seguinte
mensagem: “Israel é um país aberto, diverso, plural, que aceita todas as
pessoas, independentemente de sua religião, orientação sexual ou
orientação política.”
O massacre em curso na Faixa de Gaza, onde estão sendo mortos
impunemente centenas de palestinos e palestinas em manifestações não
violentas, incluindo jornalistas, médicos e crianças, contrasta à
declaração do Consulado. Não à toa, ativistas e organizações defensoras
dos direitos humanos e da justiça e liberdade na Palestina têm alertado
sobre essa estratégia de marketing oficial de Israel de se autopromover
como um Estado protetor de Direitos Humanos e amigável à população LGBT+
enquanto viola sistematicamente os direitos humanos da população palestina há 70 anos.
O Estado de Israel busca, através de campanhas midiáticas e de
relações públicas, combater sua crescente reputação agressiva e
colonialista no cenário internacional e evitar seu crescente isolamento.
Em 2010, o país estava entre os 10 países com pior percepção
internacional de acordo com pesquisa da East West Communications.
Neste contexto, Israel utiliza deliberadamente de eventos como
festivais de cinema LGBT+ e Paradas do Orgulho LGBT+ em várias partes do
mundo para promover sua imagem como um Estado moderno e progressista.
Este uso da pauta LGBT+ é denominado por ativistas dos direitos
humanos e pesquisadores no mundo todo como “pinkwashing’, isto é,
“lavagem rosa”. O objetivo do “pinkwashing” é duplo: por um lado
propagar a ideia de que Israel é um Estado civilizado e mascarar as
violações de direitos humanos perpetradas por seu regime de apartheid,
colonização e ocupação; por outro, promover a noção colonial e racista
de que palestinos – ou, de modo ainda mais leviano, todos os “árabes” –
seriam bárbaros e hostis à população LGBT+.
É importante lembrar que a sociedade palestina não é homogênea:
há pessoas de diversas religiões e com posições mais ou menos
progressistas, como qualquer outra sociedade do mundo. É fundamental
também ressaltar que, diferentemente do que esforços pinkwashing
querem fazer parecer, a homossexualidade se tornou ilegal na região não
por determinação religiosa, mas por imposição do Código Penal do
Mandato Britânico de 1936. Essa lei se manteve em vigor após a criação
do Estado de Israel, tanto no território israelense quanto no palestino.
Na Cisjordânia, a homossexualidade foi descriminalizada já em
1951, o que só aconteceu em Israel em 1977. Na Faixa de Gaza,
infelizmente, o código britânico que criminaliza a homossexualidade
continua válido, com pena prevista de até 10 anos de prisão.
Lamentavelmente, os esforços de pinkwashing
ao invés de dar voz às pessoas LGBT+ palestinas que lutam contra esta
situação e que se contrapõem ao conservadorismo em setores da sociedade
palestina de modo geral, optam por propagar falsas informações de que,
por exemplo, LGBT+ seriam assassinados ou apedrejados na Palestina.
Há que se defender veementemente a liberdade sexual e de gênero
na sociedade palestina, assim como em todos os lugares do mundo –
inclusive dentro de Israel, onde também há opressão LGBTfóbica e retrocessos conservadores.
Ao mesmo tempo, não se pode ignorar as ilegalidades da opressão e da
colonização israelense aos palestinos e palestinas. Como aponta a
organização LGBT+ palestina Al Qaws,
não existe uma porta cor-de-rosa no Muro de apartheid construído por
Israel. LGBT+ palestinos da Cisjordânia, Faixa de Gaza ou refugiados
pelo mundo, não podem ir a Israel por impedimentos jurídicos e físicos
que restringem o seu livre movimento, independentemente de sua
identidade de gênero ou orientação sexual.
Dentro de Israel, 20% da população é palestina. Estas pessoas,
LGBT+ ou não, vivem sob preconceito e sem plena cidadania. Convivendo
com o racismo em interações cotidianas, pessoas palestinas LGBT+ chegam a
ser barradas na entrada de bares ou baladas LGBT+ israelenses por serem
consideradas “árabes” demais. Além disto, palestinos e palestinas
dentro de Israel não têm os mesmos direitos que os israelenses judeus,
discriminado por dezenas de leis.
Cabe então a reflexão sobre a importância do papel da
interseccionalidade de lutas nos movimentos minorizados. Ninguém é
apenas lido como LGBT+, há um contexto mais amplo de opressões – de
cunho étnico, cultural, de classe, entre outros – que também deve ser
considerado. De modo geral, urge aos movimentos LGBT+ no mundo depositar
maior esforço em se conectar com pautas feministas, do movimento negro,
indígena, campesino, e pautas anti-coloniais como a palestina.
A artista Linn da Quebrada
é um exemplo recente de união de forças entre o movimento negro e
periférico LGBT+ com a causa palestina. O documentário sobre a vida de
Linn, “Bixa travesti” concorria à premiação do Festival Internacional
de Cinema LGBT de Tel Aviv (TLVFest), para o qual a artista também foi
convidada a fazer uma performance. Ao se aprofundar nas questões
políticas envolvidas e dados os vínculos institucionais e cumplicidade
do TLVFest com as violações de direitos humanos do Estado de Israel,
Linn decidiu cancelar sua participação no Festival, aderindo assim ao
chamado palestino por solidariedade efetiva através de Boicotes,
Desinvestimento e Sanções (BDS). Trata-se de um dos 11 cancelamentos que abalaram o TLVFest esse ano.
Foi por todas essa razões que movimentos diversos, espontâneos e
independentes uniram suas forças para denunciar, na Parada do Orgulho
LGBT de São Paulo, as violações de direitos humanos contra os palestinos
e o uso das pautas LGBT+ como forma de propaganda institucional do
Estado de Israel. É importante ressaltar que de forma alguma a
mobilização se colocou contra indivíduos, como possíveis turistas
israelenses ou judeus e judias de qualquer outra nacionalidade. O
chamado de boicote cultural é se posiciona contra vínculos
institucionais com qualquer agente que cometa violações de direitos
humanos.
É igualmente fundamental combater as acusações infundadas de
que a reação ao “pinkwashing” seria algum tipo de propagação de
antissemitismo. O regime de apartheid, colonização e ocupação de Israel
não tem nenhuma relação com a religião judaica e o movimento BDS se opõe
a toda forma de discriminação, inclusive o antissemitismo. Parcela
considerável dos ativistas pró-Palestina e apoiadores do BDS no Brasil e no mundo são judeus e/ou israelenses. Muitos deles também têm denunciado dentro de Israel, e contra a própria parada LGBT de Tel Aviv hoje, o uso indevido da pauta LGBT+ e de suas identidades.
Em um país extremamente desigual e racista como o Brasil, líder
de assassinatos de LGBTs em todo o mundo, é de extrema importância que
os movimentos LGBTs compreendam a necessidade da interseccionalidade
para o avanço da luta pela liberdade plena de nossos corpos. Como nos
lembra Angela Davis,
“nossas lutas LGBT e feministas não existem no vácuo. Das favelas
brasileiras à Faixa de Gaza; da luta de negros e negras nos EUA, ao
movimento anti-apartheid da África do Sul: estamos juntas lutando pela
liberdade, justiça e igualdade de nossos corpos”.
Júlia Azevedo é formada em Relações Internacionais, pós graduada em Gestão Pública e membro da FFIPP Brasil. Alexandre Martins é formado em Ciências Sociais, mestrando em Sociologia e membro da FFIPP Brasil. Lucas Alonso é formado em Ciências Econômicas, estuda Psicanálise e é membro da FFIPP Brasil.
Foto do bloco de Tel Aviv na 22ª Parada LGBT em São Paulo.
Organização afirma que 600 pessoas marcharam atrás do trio do Governo do
Estado de SP
Fonte: https://blogs.operamundi.uol.com.br/quebrandomuros/da-parada-do-orgulho-lgbt-de-sao-paulo-a-de-tel-aviv-precisamos-falar-sobre-propaganda-israelense-e-interseccionalidade-de-lutas/
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