Leilat Al-Qadr: a Noite do Destino



“Ao meu filho muito querido, sempre comigo por mais distante que esteja, lembro que hoje é a noite de Leilat al-Qadr”, escreveu a minha mãe em mensagem que me enviou por celular, muitos anos atrás. “Nesta noite, os anjos descem à terra e Deus ouvirá todas as tuas preces. Vou rezar para que Alá nunca saia do teu lado e te dê toda a felicidade do mundo”. Depois de chorar um pouquinho, sentado num eléctrico que atravessava ruas cobertas de neve e sal nesta cidade na América do Norte onde então eu vivia, acho que estava a rir ao lembrar da primeira noite de Leilat al-Qadr, ou “Noite do Destino” de que tinha memória, aí por 1978. Uma noite em que eu quis ficar sentado a rezar na sala até ao amanhecer, qual proeza.

Eu teria uns oito anos, os meus dois irmãos um pouco mais novos. Foi na segunda casa em que vivemos desde que chegámos a Portugal, um pequeno apartamento de dois quartos na Praça Pasteur, em Lisboa, num bloco de edifícios projectado por Cassiano Branco nos anos 50. A minha mãe é oriunda de uma família de tradição ismaelita, onde nunca foi muito comum, creio, as pessoas aprenderem a ler o Alcorão em árabe, nem antes nem agora. Para a família do meu pai, muçulmanos indianos de Moçambique, muito liberais e já com uma matriz sunita-xiita muito peculiar, ela sempre pareceu deliciosamente herética. A minha avó gabava-se de a ter “ensinado a rezar”. “A pobre coitada rezava qualquer coisa junto a uma fotografia do Aga Khan”, contava. “E dizia: Aga Khan, Moula Bápa, ora por nós! Onde já se viu? Como é que o Aga Khan a podia ouvir? E quando eu lho explicava, ela nem sabia o que dizer, ficava só a olhar para mim, como uma estátua”. E riam as duas incontrolavelmente. Na verdade, essas diferenças entre nós sempre foram prezadas, respeitadas na minha família, ela própria muito “herética”, onde foram entrando, ao longo dos anos, cristãos, hindus, e gente de diferentes etnias. Onde a diferença nunca foi receada, se havia amor.

Leilat al-Qadr é o nome uma celebração islâmica que comemora a revelação do Alcorão a Maomé, em Meca, e acontece nos últimos dias do mês do jejum do Ramadão. Os devotos dedicam-se à oração, fazem súplicas e recitam versículos do Alcorão, onde ela é descrita como “melhor do que mil meses”. “Nela descem os anjos e o espírito (anjo Gabriel), com a anuência do seu Senhor, para executar todas as suas ordens. Ela é paz até ao romper da aurora!” (Al-Qadr, Sura 97).

A minha mãe descreveu-nos o que aconteceu assim: “O nosso profeta, que nem sabia ler nem escrever, ia meditar para o deserto, onde passava longas temporadas sozinho. E um dia, de repente, apareceu-lhe um anjo, chamado Jibreel (Gabriel), assim do nada, com o barulho de um trovão! Podem imaginar o terror do profeta! E ordenou-lhe que ouvisse o que ele lhe ia dizer: Lê! Em nome do teu Senhor! Que criou os homens de uma gota de sangue! Lê, porque o teu Senhor é o mais Generoso! Ensinou aos homens o que eles não sabiam!”. E assim teria começado a revelação do Alcorão a Maomé, que se prolongaria por muitos anos. E nascido uma religião que ensinava a amar, a ser bondoso e generoso, que nos incentivava a sermos dignos e honrados, como todas as religiões. Não a religião das bombas, do terror, das decapitações, dos assassinos.

Julgo que herdei da minha mãe um certo pragmatismo em questões de fé, um espírito crítico e um distanciamento dos dogmas que julgo encontrar nos muçulmanos ismaelitas. Só perceberia isso anos depois. Naquela noite, depois de o meu pai e irmãos se deitarem, ela pediu-me que lesse do Alcorão, em árabe - que, graças a um idoso amigo dos meus pais que foi nosso professor, eu já sabia ler. Ela nunca chegou a aprender. Sentámo-nos sobre o tapete da sala, encostados a duas almofadas junto à parede. Quando eu rezava a minha voz reconfortava-a, disse-me. “Vou te rezar a sura mais bonita do Alcorão”, disse-lhe. “Chama-se Ya Sin. Não sei o que diz, mas se a ouvires, todos os teus desejos vão se realizar!” (assim mo dissera o professor de árabe). Enquanto escutava, ela dedilhava um terço e pronunciava algo devagarinho. A meio da noite adormeceu encostada ao sofá. Não a acordei. Fiquei a folhear aquele gigantesco Alcorão, que parecia feito para crianças, tal o tamanho dos caracteres na página. Vi o nascer do sol por entre o arvoredo frente à janela da sala, e entretanto adormeci. Uma das coisas que pedi a Alá nesse ano foi uma nave espacial igual às da série Espaço:1999, que, de facto, chegou algum tempo depois.

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