Aisha: a primeira e a última mulher do Islão




Foi protagonista activa do nascimento do islão e do cisma que dividiu a comunidade de crentes entre sunitas e xiitas. Esposa favorita do profeta Maomé, foi uma mulher de poucos consensos e muita controvérsia, como provou o recente episódio à volta de um romance sobre a sua vida. O seu legado tem sido alvo de disputa acesa. Controlar o significado da sua vida é definir o papel das mulheres na religião que ajudou a moldar.

AISHA: A PRIMEIRA E ÚLTIMA MULHER DO ISLÃO


SOFIA LORENA / PÚBLICO

Nasceu já muçulmana quando o islão ainda estava a nascer. Casou no ano 1 do calendário islâmico (622 da era cristã), o da hégira. Aos 18 anos era viúva mas viveu até aos 66. Foi filha e esposa. Não teve filhos, mas foi "mãe dos crentes". Foi fonte de lei e de tradição. Foi líder na religião e na guerra. Teve ciúmes, inveja. Amou. Teve remorsos. Viveu há 14 séculos mas tudo o que lhe é atribuído molda uma parte importante da visão moderna das mulheres muçulmanas e do islão. Tudo o que julgamos saber sobre ela foi filtrado pela história e pela cultura, mas ainda hoje é a ela que recorre quem quer definir o papel das mulheres no islão. Islamistas e ortodoxos utilizam os textos sagrados e as tradições para justificar o islão que professam.

Hoje, feministas como Amina Wadud ou Asma Barlas, que desafiam a ordem masculina e publicam releituras do Corão e das suas interpretações, recorrem às mesmas fontes para concluir que há neles mais provas de igualdade de géneros do que provas do seu contrário. Nesta batalha, o papel principal cabe à vida e à palavra de Maomé e dos que com ele partilharam o advento do islão. Os primeiros crentes, os melhores entre todos, aqueles cujo exemplo todos os muçulmanos ambicionam seguir.

Aisha foi a primeira mulher do islão, sustenta Leila Ahmed (Women and Gender in Islam, 1992). Não a primeira esposa do último profeta, mas a primeira a nascer, crescer, casar e morrer na nova comunidade de crentes. Filha de muçulmanos e prometida ao líder dos crentes. A história fixou uma mulher que foi filha - de Abu Bakr, um dos primeiros companheiros de Maomé, o mais fiel - e esposa - a preferida entre as muitas que Maomé desposou. Todas as suas virtudes (quase) incontestadas relevam da condição de filha e de esposa de dois homens excepcionais.

Mas a "mãe dos crentes" não foi mãe nem foi perfeita. Não se limitou a ser filha e esposa. Foi objecto de desejo e, como outras antes dela e no seu tempo, foi guerreira. São dois os momentos em que a comunidade de fiéis é descrita como prestes a desmoronar-se nesses primeiros anos e Aisha é protagonista de ambos - aos 14 anos, quando é acusada de adultério, e aos 33, quando avança no campo de batalha contra Ali, o quarto sucessor político do seu marido, travando e perdendo a guerra em que, primeira vez, muçulmanos matam muçulmanos.

Aisha é a mais controversa das figuras femininas da história do islão. E isso faz dela um trunfo de peso na guerra pela definição do verdadeiro islão.

Casamentos infantis

No Iémen, o mais pobre dos países da Arábia, 13.º na lista daqueles em que há mais casamentos infantis, o seu exemplo é ainda referido por quem se opõe à imposição de uma idade mínima para o casamento. Aisha teria seis ou sete anos quando foi dada a Maomé em casamento; nove ou dez quando a união foi consumada. Como se naquele país de desertos e oásis e arranha-céus de lama o tempo tivesse parado no século VII. Noutros países da mesma região, o Corão é por vezes lembrado por prescrever a boa forma física a homens e mulheres e assim usado para defender que as muçulmanas podem praticar desporto de competição. Maomé, lembram essas jovens, desafiava Aisha para corridas e chegou a ser vencido por ela.

Há poucos meses, a Random House desistiu de lançar um livro inspirado na vida de Aisha que começou por promover como "um retrato fascinante da noiva criança do profeta Maomé, que ultrapassou grandes obstáculos para realizar o seu potencial como mulher e líder".

Nos Estados Unidos, outra editora, a Beaufort Books, já publicou entretanto o romance de estreia de Sherry Jones, A Jóia de Medina. No Reino Unido, onde a publicação estava prevista para Outubro, o lançamento foi adiado depois de um ataque à casa do editor. A Random desistiu porque uma historiadora norte-americana avisou que o romance era ofensivo para os muçulmanos e garantiu que seria polémico. A historiadora é Denise A. Spellberg, ela própria autora de um livro sobre Aisha (Politics, Gender, and the Islamic Past - The legacy of Aisha bin Abi Bakr, 1994) que tem como ponto de partida precisamente o carácter controverso desta figura.

Ao contrário de outros autores, que enumeram os acontecimentos na vida de Aisha como eles foram relatados, muitas vezes pela sua própria voz mas registados sempre anos mais tarde e pela mão de homens, Spellberg questiona a forma como os muçulmanos têm usado esta figura da sua história para definir áreas de ambiguidade e conflito nessa mesma história.

Sublinhando que o seu objecto de estudo não é a vida de Aisha mas o seu legado, a historiadora norte-americana argumenta que esse legado "demonstra o poder da interpretação na formação do significado histórico". O poder coube a um grupo de homens muçulmanos medievais - os seus primeiros biógrafos, que registaram as primeiras linhas 150 anos depois do seu nascimento. Ao fazê-lo, reflectiram a imagem que tinham de si próprios, usando o exemplo de Aisha para redefinir o "seu próprio passado", o passado de uma comunidade que sempre procurou seguir o precedente do profeta Maomé e dos seus primeiros seguidores, homens e mulheres.

A mulher favorita

Aisha casou com Maomé no ano 1 da hégira. Depois de anos ao lado de uma só mulher, Khadija, o profeta viúvo decide desposar mulheres e concubinas. Terão sido 9, 12 ou 13. Em todo o caso, mais do que as quatro que permitia aos outros homens da comunidade. Aisha foi a terceira, mas torna-se na favorita. Acusada de adultério, no ano 5 (627 da era cristã), é vingada com uma revelação divina, recebida por Maomé e inscrita no Corão.

Com a morte de Maomé, que não tinha filhos varões nem designara um sucessor, será o pai de Aisha o primeiro líder político da comunidade islâmica. Vinte e cinco anos depois, Aisha irá opor-se ao quarto chefe político, Ali, primo de Maomé e genro a quem o dera a filha Fátima em casamento. De Fátima Aisha terá sempre tido inveja. A Ali nunca terá perdoado ter-se posto contra si no episódio da acusação de adultério. O confronto entre ambos é a primeira guerra civil islâmica.

Derrotada e poupada, Aisha viveu o resto da vida em Medina, transmitindo aos homens e às mulheres os pormenores do que Maomé dissera e fizera em vida, tornando-se numa fonte fundamental da preservação do passado.

"Nenhuma outra mulher teve uma vida assim; nenhuma outra mulher poderia ter gerado tal legado", escreve Spellberg.

Mesmo a mais sucinta biografia de Aisha dá lugar ao debate, com os factos mais simples a serem objecto de disputa. Antes de mais, entre sunitas - os partidários da suna, ou da tradição - e xiitas - os partidários de Ali, da linha legitimista, da sucessão de sangue na comunidade, que se opuseram desde logo à chefia de Abu Bakr e, por isso, à sua filha.

Para as duas principais tradições, Aisha foi a mulher favorita e foi amada pelo profeta. Mas é só. Para os xiitas, e em certa medida até para os sunitas, Aisha nunca poderia ultrapassar em exemplo Kadhija - primeira mulher de Maomé e mãe de Fátima, que o profeta deu em casamento a Ali - nem Fátima, a filha que lhe sobreviveu e que lhe deu os dois únicos netos homens, Hassan e Hussein. Como acontece com Aisha, também Fátima é descrita antes de mais pela sua ligação a Maomé e depois pela união a Ali. Aisha e Fátima disputam a distinção de estarem presentes quando Maomé morreu. Como Abu Bakr e Ali disputam o título de primeiro convertido ao islão.

Fonte de tradição

Para os sunitas, maioritários no mundo muçulmano actual, tudo o que em Aisha está relacionado com o facto de ter sido mulher de Maomé e filha de Abu Bakr será exaltado. Será essa dupla ligação aos primeiros e mais excepcionais homens que lhe confere legitimidade como fonte de tradição. Entre os vários compiladores dos hadith - o registo das palavras e das acções do profeta e dos seus companheiros, a segunda fonte de lei islâmica mais importante depois do Corão -, são atribuídas a Aisha mais de 2000 hadith. E, enquanto foi viva, era a ela que a comunidade mais recorria para apurar exactamente como Maomé rezava ou realizava as abluções, para arbitrar disputas sobre palavras da mensagem divina ou discórdias legais sobre dotes e heranças.

Entre o que em Aisha se pode considerar consensual, pelo menos na linha sunita e maioritária, está o seu papel como fonte de tradição e por isso de lei. Quando a professora de Estudos Islâmicos Amina Waduh dirigiu uma oração perante mulheres e homens em 2005, muitos lembraram que Aisha liderara orações e ensinara o Corão e que homens e mulheres a ouviam. A própria Waded nota que no período que se seguiu à morte do profeta, as mulheres, incluindo Aisha, tiveram "papéis fundamentais na preservação das tradições, disseminando conhecimento e desafiando a autoridade quando esta ia contra o que entendiam ser o Corão ou o legado profético".

"Quantas das principais religiões do mundo incorporam relatos de mulheres nos seus textos centrais ou permitem que o testemunho de uma mulher na definição da leitura correcta de uma só palavra de um texto sagrado influencie as decisões?", pergunta Leila Ahmed em Women and Gender in Islam.

"Eu era a mais amada"

De todos os casamentos de Maomé se diz que tiveram motivos políticos. Mas da sua união com Aisha, a única virgem com quem casou, também se diz que teve intimidade e desejo. Há descrições da paciência que Maomé tinha com a sua mais jovem mulher, relatos de como comiam do mesmo prato ou se lavavam no mesmo vasilhame. O "episódio do colar" ou da acusação de infidelidade - Aisha terá sido deixada para trás no deserto enquanto procurava um colar perdido, regressando a Medina escoltada por um jovem - terá perturbado tanto o profeta que as revelações cessaram. E a primeira que teve depois da suspeita foi a que a ilibou de adultério.

Essa não seria a primeira revelação a dar a este casamento outra singularidade - a intervenção divina. O anjo Gabriel e através de si Deus terá ordenado a Maomé que se casasse com a filha de Abu Bakr. Aisha via Gabriel e mais nenhuma mulher o via. Maomé rezava e recebia revelações na sua presença e não na presença de mais nenhuma mulher. "Eu era a mais amada das suas mulheres. O meu pai era o mais amado dos seus companheiros."

Apesar de ser "a mais amada" das mulheres de Maomé, Aisha não será para os muçulmanos o principal exemplo de excelência. A pureza e a maternidade viriam a prevalecer como as principais categorias do ideal feminino corânico. São estas duas categorias que promovem a exaltação de Khadija e de Fátima, escreve Spellberg. Uma exaltação muitas vezes feita através da evocação de outras duas mulheres: Maryam (Maria, a mãe de Jesus), a única mulher referida pelo nome no Corão, e Asiya, a mulher do faraó, que salvou Moisés.

Uma tradição com muitas variantes coloca Khadija e Fátima ao nível das duas mulheres "perfeitas". "Há muitos homens perfeitos, mas não há mulheres perfeitas, excepto Maryam e Asiya, a mulher do faraó, e Khadija e Fátima. E a superioridade de Aisha sobre as outras mulheres é como a superioridade do tharid sobre o resto da comida." Aisha não é "perfeita", mas é superior e essa superioridade é estabelecida com referência ao prato preferido de Maomé - pão desfeito em caldo de vegetais ou de carne. Spellberg nota que os termos desta preferência colocam Aisha na categoria do desejo sexual, "uma descrição em marcado contraste com os retratos mais etéreos de Khadija e de Fátima".

Os dois episódios de maior controvérsia na vida de Aisha viriam a ser inscritos de forma diferente pelos que a partir do século X se chamariam a si próprios sunitas e pelos partidários de Ali (xiitas). Mas, enquanto na acusação de adultério, a sua defesa por parte dos primeiros é absoluta, o mesmo não acontecerá com o seu papel de instigadora de uma parte da comunidade contra a outra depois da morte de Maomé e de Abu Bakr.

Quando morre Uthman, o terceiro califa, terá sido Aisha a instigar a comunidade contra Ali, acusando-o de estar envolvido no assassínio. Algumas versões envolvem-na na morte de Uthman. Outras envolvem Ali. Certo é que a eleição de Uthman não agrada nem a Ali, o viúvo de Fátima (que morrera poucos meses depois do pai), nem à viúva de Maomé. Na verdade, agrada a tão poucos que de quase todos se pode dizer que terão conspirado na sua morte. Indiscutível é também que Aisha participa na Batalha do Camelo, a grande confrontação militar dessa primeira guerra, assim chamada por ser numa liteira assente no dorso de um camelo que Aisha terá comandado as tropas contra Ali. E certo é que a batalha termina quando este manda cortar as pernas do animal da rival.

Uma ameaça à ordem política

Os autores xiitas irão descrever Aisha como determinada e independente politicamente. Dirão que o profeta previra a sua desgraça e que ela é responsável e culpada pelo derramar de sangue das suas forças e das forças de Ali. Já os autores sunitas, escreve Spellberg, acabarão por fazer evoluir o papel de Aisha, transformando-a de sujeito activo a participante passivo. De instigadora, Aisha passará nestas versões a mulher usada pelos homens que a acompanharam e a enganaram para a obrigar a seguir para Bassorá mesmo quando ela quis recuar.

Uns e outros tiram lições da Batalha do Camelo. Todos tiram lições da batalha de Aisha. "Acusações que a oposição fizera desde o início - de que ao partir para a batalha Aisha violava o isolamento imposto por Maomé, que ordenada que as suas mulheres permanecessem em casa - pareceram confirmadas pela sua derrota", escreve Leila Ahmed.

A professora turca Nabia Abbott (Aishah The Beloved of Mohammed, 1942) sugere que a derrota de Aisha vai excluir todas as mulheres muçulmanas da participação na vida política islâmica. Abbott não é a única a registar que, na reclusão em que prossegue a sua vida, Aisha chora sempre que lê o versículo do Corão "Ó mulheres do profeta [...] permaneçam em vossas casas". Spellberg considera pouco provável que a derrota de Aisha tenha por si só bloqueado o acesso de todas as mulheres à participação política e à vida pública, mas refere como a descrição póstuma de Aisha por xiitas e sunitas transforma a sua derrota no objecto de uma lição sobre "os inevitáveis desastres da participação feminina na política".
 
"O seu exemplo seria consistentemente usado pelos autores masculinos do registo comum medieval para provar a sua norma retrospectiva: todas as mulheres, por definição do seu género, eram uma ameaça à ordem política."

Na Arábia de Aisha, as mulheres eram pastoras, como a sua irmã, Asma, ou comerciantes de sucesso, como Khadija, a primeira mulher de Maomé. Aisha, escreve Leila Ahmed, viveu num momento de transição e o que fez na vida reflecte tanto as práticas jahilia (período pré-islâmico) como islâmicas. Pouco tempo depois de se casar com o profeta, as mulheres do mensageiro de Alá passaram a cobrir-se e foi-lhes dito - apenas a elas e não a todas - que ficassem em casa. Aos poucos, depois da morte de Aisha, essas práticas generalizaram-se entre as muçulmanas, que cada vez menos participariam nas decisões da comunidade.

A vida de Aisha - e por isso o seu legado - foi fixado entre o século VIII e XI, no período em que todos os textos centrais do islão (excluindo o Corão, de que já havia registo) passaram a ter registo escrito. Spellberg diz do legado de Aisha que foi registado à luz do que esses homens quiseram guardar do passado e dizer aos muçulmanos do seu presente e do seu futuro. As feministas islâmicas dizem dos textos que codificaram a lei islâmica (Sharia) e assim condicionaram a criação de um corpo jurídico islâmico que têm de ser situados na estrutura patriarcal e dominada pelos homens em que foram produzidos. É por isso, dizem estas mulheres, que a historiografia muçulmana mainstream excluiu Aisha como modelo para as mulheres muçulmanas.

Spellberg escreve no seu livro dedicado à mulher de Maomé que os muçulmanos podem "nem sempre concordar com as implicações modernas da vida de Aisha, mas o seu legado é demasiado importante para permitir que sejam os eruditos ocidentais a ditar a última palavra". Para os muçulmanos, continua, as implicações do que Aisha fez ou disse são "mais do que um propósito académico" e deverá por isso caber aos muçulmanos "a última palavra na determinação do legado moderno de Aisha".

Fonte: Público, 23/11/2008 -  https://www.publico.pt/2008/11/23/jornal/aisha-a-primeira-e-a-ultima-mulher-do-islao-285315

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