Reinterpretar a nossa fé para vencer os terroristas



O Islão, como qualquer outra fé, é sobre como sermos melhores seres humanos. É mostrar amor, empatia e solidariedade para com os outros. É minha opinião que, como muçulmanos, devemos ter a coragem de desafiar a ideia de que o Alcorão ou a Suna são infalíveis. Claro que isso choca aqueles entre nós que fomos educados a ver o Alcorão como a própria palavra de Deus, incontestável e perfeita. Enquanto não admitirmos que o Alcorão pode bem ser divinamente inspirado, mas foi escrito pela mão de um homem, continuaremos a ser peões no jogo dos fundamentalistas, e não estaremos a usar a única arma de que dispomos e que os pode derrotar - a razão. Só então libertaremos o Islão das amarras do dogmatismo em que o encerrámos.

Reinterpretar a nossa fé para vencer os terroristas

HASSAN RADWAN

Falamos muito sobre reformar e reinterpretar o Islão nestes dias, de modo a combater as ideias extremistas de grupos terroristas como o ISIS.

Interpretações mais liberais e progressistas da fé islâmica dependem muito de leituras menos rígidas que fazemos do Alcorão ou da Suna [a recolha dos “Ditos" e Tradições do Profeta], procurando encontrar neles novos sentidos. Permitir que esses textos possam ser reinterpretados enceta sempre, é verdade, o risco de cairmos numa ratoeira dos extremistas, que fazem o mesmo, mas à sua maneira.

É minha opinião que, como muçulmanos, devemos ter a coragem de desafiar a ideia de que o Alcorão ou a Suna são infalíveis. Claro que isso choca aqueles entre nós que fomos educados a ver o Alcorão como a própria palavra de Deus, incontestável e perfeita, mas é o que muitos muçulmanos estão a fazer. Filósofos como Abdul Karim Soroush, no Irão, Sayyed Ahmad Al-Qabbanji no Iraque, ou Saeed Nasheed, em Marrocos, têm questionado essa visão tradicional do Alcorão.

Num dos seus livros mais recentes, “A Modernidade e o Alcorão”, Saeed Nasheed escreve: “O Alcorão não é a palavra de Deus, do mesmo modo que uma cesta de pão não foi criada pelo agricultor. Deus foi a inspiração, providenciou a matéria prima, tal como o agricultor cultivou o trigo. Foi o padeiro que transformou a farinha em pão, usando o seu conhecimento, mestria e criatividade. Foi assim que o Profeta fez, usou essa inspiração e, com o seu talento único, criou frases, compôs versos”. 

Porque é que fazer isto é tão importante? Porque a partir do momento que deixamos de dizer que foi “Deus que disse”, “Deus que mandou”, podemos confrontar todas as ideias, boas e más, num mesmo patamar. E é a razão que determina quais dessas ideias vencerão ou serão rejeitadas, ao invés do “É assim que está escrito e é assim que tem que ser!”. Não haverá mais necessidade de andarmos às voltas dos textos sagrados, procurando reinterpretar, amenizar ou justificar coisas com as quais nos sentimos claramente desconfortáveis.

Enquanto não admitirmos que o Alcorão pode bem ser divinamente inspirado, mas foi escrito pela mão de um homem, continuaremos a ser peões no jogo dos fundamentalistas, e não estaremos a usar a única arma de que dispomos e que os pode derrotar - a razão. Só quando reconhecermos que o Alcorão e a Suna podem ser falíveis libertaremos o Islão das amarras do dogmatismo em que o encerrámos.

O Islão não á apenas o Alcorão ou a Sunna. Como qualquer outra religião, é o somatório do conhecimento acumulado, da sabedoria e das diferentes práticas de milhões de seres humanos ao longo dos séculos. A religião foi desde sempre essa tentativa do homem alcançar o desconhecido, de procurar conforto e obter força e um sentido para a vida, num mundo duro e cruel em que se sentia sozinho. Ela é importante nesse aspecto, mas não deve substituir a razão.

Vejam a maior parte dos muçulmanos - ou mesmo a maior parte dos seguidores de qualquer outra religião: a grande maioria não sabe o que dizem os seus “textos sagrados”. A maior parte não faz ideia da complexidade dos debates teológicos. Para eles, o Islão é o que aprenderam com os seus pais - aquelas ideias universais que conhecemos: a caridade, o amor ao próximo, a importância da oração, os dias importantes ou festivos do calendário religioso. Isto é o Islão para o muçulmano comum. E é este o Islão que os fundamentalistas, literalistas, dos dias de hoje, querem a todo o custo destruir. Querem reduzir o Islão a meia dúzia de textos religiosos e dele apagar todo o seu progresso, racionalismo e humanismo.

Os fundamentalistas querem apagar do Islão precisamente aquilo que o sustentou ao longo de séculos e fez dele a fonte de amparo que sempre foi para a vida. Querem destruir a sua antiga capacidade de se adaptar e fornecer respostas a novos desafios de séculos diferentes. Querem nos arrastar 1400 anos para o passado e para um lugar sem a menor relevância no séc. XXI, e reduzir o Islão a uma série pregações e castigos. Isto não é religião nenhuma.

O Islão, como qualquer outra fé, é sobre como sermos melhores seres humanos. É mostrar amor, empatia e solidariedade para com os outros. É procurar força na meditação e na vida em comum com outros homens. É olhar mais além no universo em busca das respostas que nos ajudam numa existência difícil. É isto que o Islão sempre foi para o homem comum, e pelo qual devemos nos bater contra os fundamentalistas que o estão a destruir.

Dizer que o Alcorão é falível não vai destruir o Islão. Vai destruir, isso sim, os fundamentalistas literalistas. É algo que nos libertará, para que usemos a nossa razão e possamos escolher o que é bom e útil na nossa fé, e ignorar o que não é. O Islão não surgiu para substituir a mente que Deus nos deu e fazer de nós simples autómatos. Sei que muitos dirão que o Islão é um conhecimento perfeito, a “Verdade” - uma verdade imutável, que permanece a mesma ao longo dos tempos -, mas a eles eu direi que, se essa verdade existe, na perspectiva humana, dependendo do contexto em que vivemos e das nossas experiências de vida, que mudam com os tempos, ela será sempre uma verdade relativa.

É por isso que a religião deve evoluir e adaptar-se aos novos desafios. Se não o fizer não é religião nenhuma. É apenas ignorância. Uma ignorância que nos manterá reféns no passado e nos privará da razão e da nossa humanidade.

Hassan Radwan é um escritor, jornalista e docente universitário britânico. Define-se como muçulmano agnóstico. Este artigo foi originalmente publicado no “Guardian” em 16/12/2015. Na foto Radwan com a filha, Marwa.

Fonte:  https://www.theguardian.com/commentisfree/2015/dec/16/muslims-faith-isis-religion-islam?CMP=share_btn_fb&fbclid=IwAR32vPhzkqPiM_nzKJmHXwWftisj8fQrsK42q8L0fTQ-qdJxFYZFNDGYQJQ

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