Arabismos e traduções árabes em meios luso-moçárabes

Houve em Portugal alguns notáveis tradutores e estudiosos da filosofia e da ciência trazida pelos árabes, hoje esquecidos ou simplesmente desconhecidos, ainda “por redimir” pela historiografia portuguesa, ao contrário do que já sucede há muito tempo em Espanha. “A cultura “moçárabe” lusa não foi tão indigente como até aqui parecia”, escreve o investigador Adel Sidarus neste ensaio. “Talvez tivesse sido apenas abafada pela corrente franco-romana que se conseguiu impor em toda a linha. Resta tentar desencantá-la e dar-lhe o lugar que merece, inclusive no quadro geral do movimento de traduções medievais do legado científico-filosófico árabe”. Os mais conhecidos viveram entre os sécs XII e XIV e serão João de Sevilha e de Lima (cujas traduções de vários tratados científicos árabes foram patrocinadas por D. Teresa, mãe de Afonso Henriques, o primeiro rei português); Frei Gil de Santarém, que traduziu várias obras medicinais e farmacológicas, entre as quais o célebre tratado do médico árabe-persa Ar-Razi (“De secretis in medicina” ou “Aforismi Rasis”) ou Afonso Diniz de Lisboa, Bispo de Évora, que estudou e traduziu obras de Avicenna e Averróis. Entre os menos conhecidos estudiosos desse legado árabe estão Santo António de Lisboa ou São Teutónio, prior do mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, fundado no tempo de D. Afonso Henriques, que defendia os cativos moçárabes e teria livros árabes na sua biblioteca, que usava na prática da medicina e farmacologia. Uma das mais importantes obras de geografia e história da Península Ibérica na Idade Média, a “História dos emires de Espanha”, de Ahmad ibn Muhammad al-Razi (887-955 d.C.), terá sido traduzida para o português do árabe pelo clérigo Gil Peres (destacado membro da corte de D. Dinis), e titulada “Crónica do Mouro Rasis”. Esta importante obra encontra-se perdida, mas foi utilizada como base de um capítulo da "Crónica Geral de Espanha de 1344", escrita por Pedro Afonso, conde de Barcelos, sobre a geografia e história da península sob domínio muçulmano (https://pt.wikipedia.org/wiki/Crónica_do_Mouro_Rasis). Esse capítulo foi incorporado à refundição da mesma crónica em 1400 e às traduções castelhanas, de maneira que assim se pode saber algo da primitiva versão portuguesa. Também se conservam fragmentos da crónica derivados de uma tradução ao castelhano realizada no século XV, a partir da versão de Gil Peres.

Arabismos e traduções árabes em meios luso-moçárabes

ADEL SIDARUS 

Tem surgido ultimamente uma panóplia de estudos nacionais respeitantes aos “moçárabes” do território hoje português, sem contudo a visibilidade suficiente para uma projecção fora do país. Foi assim que, num colóquio internacional realizado em Madrid, há pouco mais de um ano, os investigadores lusos tenham sido preteridos, não fosse uma retractação de última hora, na sequênciade uma chamada de atenção transmitida a um dos organizadores. Para obviar àquele lapso, combinou-se que enviaríamos uma brevenota a ser eventualmente lida por um colega francês, que convidáramos, havia uns anos, a orientar a sua investigação para essa vertente da história luso-andaluza, devendo precisamente apresentar nesse simpósio mais umas achegas resultantes da sua pesquisa.

É o conteúdo desta nota singela, revista e aprofundada minimamente, que pretendemos proporcionar aos leitores da presenterevista, contando com a sua indulgência, pois que os nossos presentes compromissos não nos permitem aprofundar mais as diferentes questões. Sabemos que o melhor é inimigo do bem, pelo que julgamos conveniente divulgar como tais esses apontamentos despretensiosos, na esperança de que outros colegas levem por diante o projecto que acalentávamos há algum tempo. Até porque uma consulta rápida da bibliografia “moçarabista” anexa mostraa ausência de títulos relacionados com a dimensão literária aqui tratada. Evidentemente, por mera conveniência, usamos o termo“moçárabe” no sentido lato de cristãos peninsulares arabizados ou com capacidades linguísticas correspondentes, chegando até ao sé-culo XIV. Mas antes de passar aos três tradutores que conseguimos identificar como representantes do legado luso de traduções árabo-latinas medievais, alinhemos de modo lapidar alguns testemunhos da erudição arabística existente em meios cristãos ou moçárabes portugueses:

D. Paterno, bispo de Coimbra entre 1080 e 1090, tinha ocupado vários cargos eclesiásticos e diplomáticos (!) em territórios andaluzes antes de aceitar este último, cedendo ao repetido convite do conhecido governador moçárabe Sisnando Davidiz. Doou à Sé, em1087, um lote de livros que incluía um “liber canonicum arabicescriptum et alios Spalenses”. Tudo indica que esse liber  é a versão árabe da Collectio Consiliorum, de que um exemplar se encontrana Biblioteca de El Escorial (no 1623), assim como um fragmentode quatro páginas de fólios em pergaminho, recuperados da encadernação de um códice da antiga Livraria de Santa Cruz – quiçá tirados do próprio codex de D. Paterno.

São Teotónio, o primeiro prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, fundado no tempo de D. Afonso Henriques (1130/31), defendia os cativos moçárabes e teria livros árabes na sua biblioteca. De resto, praticando-se ali, muito cedo, medicina e farmacologia, é de supor a existência aí de material de estudo de origem árabe: alguns autores até pretendem que foi ali que Gil de Santarém teria iniciado as suas traduções médico-farmacológicas árabes. Observa-se também que em vários escritos saídos deste mosteiro, onde se elaborava a ideologia dos primórdios do reino português, encontramos palavras ou expressões árabes acompanhadas de explicações linguísticas.

Santo António de Lisboa/Pádua, aliás Fernando Martins (m.1231), é geralmente tido como oriundo de uma família moçárabe. Cónego regrante de Santo Agostinho em Lisboa, tendo passado por Santa Cruz de Coimbra, fez-se franciscano em 1220, aparentemente na senda da chegada das relíquias dos Cinco Mártires de Marrocos, os primeiros missionários franciscanos em terras muçulmanas. Poderá ser por causa do seu conhecimento do árabe que participou logo de seguida na segunda missão, cuja embarcação contudo veio parar às costas da Sicília, tendo o nosso missionário luso ficado pela Península itálica até à sua morte.

Pedro Hispano (Portugalense), magister artium, médico e filósofo, é tradicionalmente identificado com Pedro Julião de Lisboa, o futuro Papa João XXI (1276-1277), embora essa identificação tenha sido recentemente posta em causa. Foi antes deão em Lisboa, arcediago em Braga e prior em Guimarães, antes de ser eleito Arcebispo de Braga, pouco antes de, segundo diversos autores, ser chamado à cúria papal para médico do seu antecessor na cátedra pontifícia. A sua produção científica reflecte claramente o legado greco-árabe. Em que medida não teria levado com ele de Portugal, à semelhança do seu conterrâneo e contemporâneo Gil de Santarém, uma predisposição ou preparação arabística que lhe permitiu brilhar nos meios académicos europeus? Não é de subestimar o facto de ter apoiado com uma bula a famosa Escola de árabe de Miramar, fundada por Raimundo Lulo.

Caso análogo poderia representar João Hispano, bispo de Lisboa entre 1239 e 1241. Em 1224, era médico do papa Honório III (m. 1227)... Por volta de 1300, por ordem do D. Dinis, é traduzida para português, a célebre  "Crónica do Mouro Razi", levada a efeito pelo clérigo cristão Gil Peres, capelão de D. Pedro Eanes de Portel, em junção com o alarife muçulmano Mafamede, tendo esta versão conhecido um destino excepcional na historiografia ibérica posterior. Ao contrário do que se chegou a pensar, não deve ser obra de autor português a apologia chamada "Livro da Corte Enperial", datável do século XIV e que revela bons conhecimentos dos textos religiosos árabes e hebraicos. Trata-se muito provavelmente de uma mera tradução de um tratado catalão dos princípios desse mesmo século.

João de Sevilha e de Lima (m. 1157 ?)

Iohannes Hispalensis et Lim(i)ensis é um importante tradutor de filosofia e ciências árabes, cuja ligação a Portugal tem sido recentemente sugeridas por Charles Burnett. Terá nascido, ou passado longo tempo, em Sevilha, talvez até como bispo (moçárabe), antes de ir residir em Lim(i)a (hoje Ponte de Lima ?), noNorte de Portugal, quiçá na senda de perseguições almorávidas. Ali terão sido levadas a cabo algumas de entre a dezena de traduções de obras árabes que lhe são atribuídas. Entre elas, uma versão de parte substancial da célebre compilação de ciências naturais pseudo-aristotélica Secretum Secretorum, dedicada muito provavelmente à própria D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, a qual teria patrocinado parte da sua produção e mantido com ele alguns colóquios científicos. Outra obra importante é o tratado "De differentia spiritus et animaede Qus’â ibn Lûqâ" – tradução latina que teve um papel significativo no ensino universitário da época. Não se deveria confundir a nossa personagem com o astrónomoe tradutor João de Sevilha (alias Hispano), do mesmo século e meio“moçárabe”, nem com João Avendauth (alias Hispano, certamenteo filósofo de origem judia Abraão Ibn Dâwûd). Em sentido contrário, deve ser o “Iohannes Lunensis” (João de Luna) referido em certos manuscritos e fontes medievais, devido a uma má leitura ou grafia de “Lum(i)ensis”.1

São Frei Gil de Santarém (m. 1264/65)

Esses dados novos revestem-se de grande significado, porque sempre se interrogava sobre a curiosa figura desse frade dominicano, de clara estirpe moçárabe e, segundo alguns, da descendência do já referido Sisnando Davidiz. De facto, parecia difícil explicar este caso isolado de médico luso, tradutor e compilador de obras medicinais e farmacológicas árabes. Esta última faceta sequer tinha sido devidamente assinalada, tanto por causa das dimensões polémicas ou heterodoxas da misteriosa personagem, que chegou afinal a integrar o santoral católico romano, como pelo anonimato das edições de obras da sua autoria – já para não mencionar a faltade especialistas portugueses em ciências árabes que pudessem valorizar esse legado. O "De secretis in medicina", intitulado também "Aforismi Rasiseque" conheceu cerca de oito edições europeias (excluindo Portugale Espanha!), entre finais do século XV, nos primórdios da imprensa(!), e meados do século imediato, traduz um tratado do muito celebrado médico e filósofo árabo-persa Abû Bakr al-Râzî (o Rhazes dos latinos, 850-925?). O tratado, com cinco ou seis capítulos ou livros de acordo com os diferentes manuscritos ou edições, acaba com os "Secreta Hippocratis" e os "Aforismi Mesue" – trata-se aqui do grande médico cristão nestoriano de Bagdade, Yû?annâ ibn Mâsawayh (777-857). Inédita se encontra a sua compilação de ciências naturais árabes, escrita em latim e vertida em português noséculo XV.

Há que esclarecer melhor, na biografia da nossa personagem, a sua passagem e formação em S. Cruz de Coimbra, nomeadamente se será mesmo ali que iniciara as suas traduções. Também quais são os contornos concretos do propósito do superior dominicano D. Frei Sueiro Gomes de estabelecer em Santarém, sob a direcçãodo próprio Frei Gil, uma escola de tradutores semelhante à de Toledo. Ambas as questões reforçariam os indícios, atrás listados, da existência no país, e naquela época, de gente conhecedora do árabe ao ponto de poderem ler e traduzir obras científicas nesta língua.

Afonso Diniz de Lisboa, Bispo de Évora (m. 1352)

Trata-se de um bastardo da família real portuguesa, talvez filho ilegítimo de D. Dinis. Foi protegido por D. Afonso IV, de quechegou a ser secretário e médico pessoal. Cónego da Sé de Lisboaem 1342, tornou-se Bispo de Idanha-Egitaniaem 1346 e, um anomais tarde, Bispo de Évora.

Depois de estudos de letras e de medicina em Paris, ensina o "Canon de Avicena" em 1330, ainda antes de se licenciar em medicina em 1332. Estuda também teologia e ensina, de seguida, as fa-mosas "Sentenças de Pedro Lombardo", de que teria redigido um Comentário. Entretanto, traduzira em Valladolid, com a ajuda de um converso judeu – talvez o conhecido Abner de Burgos (1270-1350)– um tratado anti-aviceniano de Averróis com o título de "Tractatus Averoys de separatione primi principii", recentemente editado etraduzido.

Vemos afinal, ao contrário do que se poderia pensar, que a cultura “moçárabe” lusa não fora tão indigente que até aqui parecia. Talvez tivesse sido apenas abafada pela corrente franco-romana que se conseguiu impor em toda a linha e que a investigação nacional portuguesa não foi ainda capaz de a redimir à semelhança do que fez a sua congénere espanhola. Resta tentar desencantá-la e dar-lhe o lugar que merece, inclusive no quadro geral do movimento das traduções medievais do legado científico-filosófico árabe.

______

Este ensaio, anotado e com a bibliografia de estudo sugerida, pode ser baixado, em formato .PDF, nesta ligação: http://www.lusosofia.net/textos/sidarus_adel_arabismos_e_traducoes_mossarabes.pdf

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A vida incrível do pai de António e Ricardo Costa (ou Babush e Babuló)

Da origem árabe dos Senhores da Maia

Quinta do Relógio: um passeio pelo romântico e o oriental