"Vivências cristãs em Contexto Islâmico", por Adel Sidarus


A Universidade Católica Editora acaba de publicar "Vivências Cristãs em Contexto Islâmico", uma colectânea de ensaios e estudos do historiador Adel Sidarus. Publica-se aqui o prefácio à obra de Guilherme D'Oliveira Martins.

ENTRE CULTURAS E RELIGIÕES


Não basta falar de diálogo entre culturas e religiões, é preciso que o mesmo seja informado e conhecedor, o que exige um «convívio tolerante, uma abertura à memória histórica do Outro». A presente obra trata deste momentoso problema – a propósito das vivências cristãs em contexto islâmico. Há, pois, que nos colocarmos, tanto quanto possível, no lugar do outro, a fim de tornar o diálogo uma verdadeira troca ou partilha de experiências. Muitas vezes fala-se de diálogo puramente formal, mas não podemos satisfazer-nos com essa perspetiva pobre e redutora. Olhamos em volta e verificamos que há uma multiplicação de monólogos que não se encontram e que não envolvem uma autêntica troca de experiências e de argumentos. As identidades fechadas sobre si mesmas constituem exemplos perigosos de monólogos autossuficientes, que não se enriquecem mutuamente e que tendem para o empobrecimento e a decadência. Veja-se o Mediterrâneo com a sua extraordinária riqueza histórica (e ligação ao Oriente), onde hoje há conflitos insanáveis baseados na incompreensão, no egoísmo, na superioridade, na indiferença e na recusa da valorização da riqueza das diferenças e das complementaridades.

Como afirma o autor desta obra, Adel Sidarus: «quem estuda o Islão sem preconceitos e em toda a espessura da sua história notará facilmente, apesar das aparências do momento, quanto ele não é nada estranho à realidade europeia. Pois ele emerge, com toda a clareza, como o segundo herdeiro da civilização greco-romana, logo depois de Bizâncio e, de longe, antes da cristandade ocidental, seja ela medieval, moderna ou contemporânea.» De facto, o mundo árabo-islâmico foi uma civilização intermédia pela sua implantação geográfica, articulando realidades diferentes, desde os confins da China até às margens do Atlântico. Daí a extraordinária propagação de conhecimentos, de técnicas, de práticas que alimenta a ligação entre a Antiguidade Clássica greco-latina, o Renascimento e a modernidade. Foi indiscutível o papel dos árabes como transmissores da ciência e da filosofia gregas ou dos conheci‑mentos orientais – de Aristóteles (redescoberto por Averróis, Ibn Rushd) ao papel (essencial para a difusão da escrita), da álgebra aos algarismos…

Temos de entender que a identidade mediterrânica é multiforme e complexa, pressupondo uma partilha e uma construção comum, a partir de diferenças religiosas, culturais e étnicas. Nesse sentido, há um desafio a que todos são chamados: de compreensão mútua, de justiça distributiva, de cooperação para o desenvolvimento e de abertura de espírito para o diálogo. Os textos que constituem o presente volume, ricos pela capacidade do seu autor, Adel Sidarus, para ligar e compreender as diferenças culturais, apontam pistas históricas e reflexivas que contribuirão por certo para um autêntico encontro de culturas. Esse intercâmbio islamo-cristão obriga a que, em lugar do proselitismo, haja compreensão das raízes comuns, das diferenças e das virtualidades de uma convergência – segundo um «acréscimo de espírito», para usarmos as palavras de Karl Jaspers. Os cristãos do Médio Oriente merecem, assim, um reconhecimento especial, inerente à liberdade religiosa, à riqueza cultural e histórica e ao papel que desempenham na própria renovação árabe. Deste modo, o desafio da presença cristã no mundo árabe, designadamente dos coptas, não se circunscreve à componente religiosa, abrange necessariamente o combate social, solidário e político no sentido da laicidade e da cidadania. O diálogo moderno das religiões do Mediterrâneo Oriental merece cuidada atenção, não podendo esquecer-se a influência das ramificações cristãs, anteriores ao surgimento do Islão, reveladora da riqueza e diversidade das culturas árabes. Mais do que uma comunidade cristã estruturada, encontramos gente cristã, vinda de diversos horizontes (nestorianos, jacobitas, nabateus, sírio-caldeus, coptas…), escravos, aventureiros e mercadores que deixam as suas impressões indeléveis…

A personalidade de S. João Damasceno merece especial atenção, como figura de contacto entre a perceção cristã e a vivência muçulmana – com as duas culturas a manifestarem-se em encontros e desencontros. A presença dos cristãos na medicina árabe também nos permite entender a riqueza de uma sociedade complexa, com extraordinária riqueza no domínio do conhecimento. Tem ainda muito interesse o estudo sobre o arabismo e as tradições nos meios luso-moçárabes – ou seja, entre os cristãos arabizados no território hoje português. Vejam-se alguns exemplos de ligação moçárabe: o bispo de Coimbra D. Paterno (1080-90); o célebre governador Sesnando Davidiz; o facto de S. Teotónio, primeiro prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, possuir obras em língua árabe na sua livraria e ter defendido os direitos dos moçárabes cativos; a circunstância de Santo António de Lisboa, Fernando Martins, ser originário de uma família moçárabe, conhecendo a língua árabe; podendo ainda referir-se Pedro Hispano, o futuro Papa João XXI, o tradutor João de Sevilha ou S. Frei Gil de Santarém. É muito rica a reflexão sobre a idade de ouro da literatura copta-árabe (séculos xiii e xiv) ou sobre as influências de outras tradições recebidas pelo pensamento islâmico, nas cidades de Damasco, Bagdade, Cairo e Córdova, bem como sobre a participação dos cristãos, a partir do Egipto e da Síria, no movimento de Renascimento e Res‑surgimento árabe (Nahda) do século xix.

Estamos perante um conjunto muito fecundo e cativante de textos sobre temas pouco conhecidos, mas da maior importância e atualidade, que põem a tónica não só na tradição cristã copta, que o autor bem conhece, mas também no diálogo mais amplo entre o Cristianismo e o Islão (como no caso do jesuíta Jerónimo Xavier), num tempo de novos desafios no tocante ao diálogo entre culturas. Várias são, pois, as pistas aqui lançadas – no sentido do encontro das múltiplas raízes e manifestações das culturas árabes e de lembrança de um invejável papel de mediação e de renovação social e cultural, no sentido da abertura, da troca e do intercâmbio.

Guilherme D'Oliveira Martins

Adel Yussef Sidarus  no Cairo em 12/10/1941. Vive em Portugal desde 1975. Professor jubilado da Universidade de Évora, foi investigador convidado no Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1999-2007. Membro do Instituto de Estudos Orientais da Universidade Católica Portuguesa desde a sua criação em 2002, faz parte da Accademia Ambrosiana, Milão, desde 2014. Estudou Filosofia e Estudos cristãos e orientais em várias universidades árabes e europeias. Doutor em Estudos Orientais, Universidade de Munique, 1973. Publicou amplamente nas áreas dos Estudos luso-árabes e dos Estudos árabo-cristãos.

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