Os escravos vindos da Ásia



Indianos, chineses, javaneses, birmaness e naturais de outras regiões asiáticas faziam parte da paisagem humana de Portugal entre os séculos XVI e XVIII

OS ESCRAVOS VINDOS DA ÁSIA

ARLINDO MANUEL CALDEIRA / VISÃO

De todos os escravizados vindos da Ásia e entrados em Portugal, o mais famoso ficou conhecido simplesmente como Jau. É nome de rua na freguesia de Alcântara, em Lisboa: Rua Jau. Trata-se de uma homenagem um pouco irrisória, pois a identificação da pessoa homenageada não ultrapassa a sua proveniência geográfica: jau é o mesmo que javanês, isto é, natural da ilha indonésia de Java.

Este javanês que passou à toponímia lisboeta terá recebido o nome cristão de António e a sua celebridade deve-se ao facto de ter sido escravo dedicado de Luís de Camões, tão dedicado que, segundo a lenda, nos últimos tempos de vida do poeta, era o escravo que sustentava o amo com o pouco que conseguia mendigar.

Ser escravo a oriente

O abnegado jau António foi apenas um das centenas de escravos asiáticos trazidos para Portugal entre os séculos XVI e XVIII. Vindos das mais diversas origens: Índia, Japão, Timor e arquipélago indonésio, China, Sião (Tailândia), Pegu (Myanmar), Bengala (Bangladesh)...

Na maioria dessas regiões, a escravidão e o tráfico de escravos eram conhecidos antes da chegada dos portugueses e continuariam activos independentemente deles. Segundo o historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, "em todas as grandes cidades do Índico -de Áden a Colombo e de Madrasta a Jacarta - havia nos séculos XVI, XVII e XVIII um mercado de escravos que abastecia as casas ricas destas cidades". Os portugueses mais não fizeram do que inserir-se nas redes comerciais pré-existentes.

No Extremo Oriente, nomeadamente na China e no Japão, apesar da existência de formas diversas de dependência pessoal, a compra e a venda de seres humanos estava menos generalizada. Na China, a situação mais parecida com a do escravizado, como era entendida na Europa, era a das "mui-tsai", raparigas que, ainda pequenas, eram vendidas pelos pais a famílias ricas, a quem deviam servir durante determinado período, em geral 40 anos, ou mesmo toda a vida, mas sendo, quase sempre, tratadas pelas famílias de acolhimento como se a elas pertencessem. 

Foi essencialmente a partir dessa instituição, embora já completamente desfigurada, que se implantou em Macau um activo comércio de escravos, passando a figurar ao lado das "mui-tsai" crianças e adolescentes do sexo masculino. E logo dispararam os mecanismos de mercado: a uma maior procura correspondeu uma maior oferta, em alguns casos de pais carenciados mas sobrotudo de comerciantes e aventureiros que não se importavam de recorrer ao rapto e a todas as formas de violência, trazendo crianças da China rural, sobretudo da província de Kwangtung (Cantão), até Macau.

Com o argumento de que, se não comprassem as crianças, elas acabariam mortas pelos traficantes, os portugueses estimularam em Macau um crescimento exponencial da escravatura, quer de forma declarada quer encapotada. Foi assim que, durante mais de dois séculos, chineses escravizados foram espalhados pelosportos do Pacifico e do Índico, sendo embarcados também para Cochim e Goa, de onde uma parte atingiria Portugal.

De início, muitos chineses estranhavam o interesse dos portugueses pela compra de crianças e adolescentes e, como não tinham grande opinião sobre esses bizarros estrangeiros vindos do cabo do mundo, suspeitavam que na origem da procura estivessem práticas de canibalismo.

Quanto ao Japão, não era raro que, entre os grupos sociais mais carenciados, os pais vendessem alguns dos seus filhos para pagar dívidas ou para assegurar a sobrevivência desses filhos e restante família em situações de dificuldades mais prementes. Foi nesses meios desprotegidos que os portugueses começaram a comprar os escravos que eram depois levados até Macau ou Malaca, e daí para os portos portugueses na Índia, de onde alguns eram enviados para a Europa.

Japões, chinas e índios

Os escravos de origem japonesa entrados em Lisboa não parecem ter sido muitos, mas não estão ausentes da vida e da documentação portuguesa do século XVI. Por exemplo, em 1596, D. Filipa da Guerra, religiosa no convento de Santos, em Lisboa, deixou livre, no seu testamento, uma escrava "japoa" que estava ao seu serviço há mais de vinte anos. E o viajante italiano Filippo Sassetti espantou-se com o número e a diversidade de escravos que por cá encontrou, comentando que os "japões" exerciam "qualquer ofício com habilidade". O mesmo viajante anotou capacidades semelhantes nos "escravos chinas", acrescentando que estes mostravam disposição "para aprender a cozinhar maravilhosamente". O número de escravos chineses em Portugal era muito maior do que o de japoneses, e há sinais deles por todo o país em actividades diversas. Em 1562, D. Maria Vilhena, rica proprietária de Évora, deixou em testamento, entre outros escravos de origens diversas, António, "china azemel" (com funções de almocreve). Na segunda metade do século XVIII ainda há memória deles; em 1771, Manuel Saldanha de Albuquerque, 1º conde de Ega, ex-vice-rei da Índia, mantinha ao seu serviço, entre vários cativos, um "escravo china".

Ao longo do tempo, as autoridades da China pressionaram os portugueses de Macau para que impedissem o tráfico de escravos para os portos asiáticos e para a Europa. Mas os vice-reis da Índia, de que Macau dependia, em vez de contrariarem esse comércio pediam aos governadores de Macau que lhes enviassem jovens chinesas. Algumas delas acabavam em Portugal como prendas dos vice-reis a amigos. Não parece haver dúvida de que era como bem sexual que eram valorizadas, e Caetano Lopes, um padre jesuíta com muitos anos vividos no Oriente, explicava que "eram as mais especiosas que tinham mais compradores e eram mais caras".

Os escravos japoneses e chineses chegavam a Portugal nas naus da "Carreira da Índia", que todos os anos faziam a ligação entre Goa e Lisboa. A soma desses escravizados era, porém, muito suplantada pela dos que eram provenientes das várias regiões da Índia e territórios limítrofes. Um exemplo. Valéria de Figueiredo tinha nascido em Lala, no Assam. Era "índia cativa" de António de Figueiredo, morador em Lisboa, e, em 1592, viu-se a braços com a Inquisição. Tinha casado, em 1580, "com um moço de casta china por nome Simão", quando este se ausentou, sem dar notícias, para a Índia, voltara a casar, desta vez com António da Costa, escravo indiano como ela. Só que o "moço chinês" reapareceu, e fê-lo na pior altura, pondo Valéria em apuros. Os inquisidores mandaram prendê-la e, provada a situação de bigamia, condenaram-na a açoites no cárcere e a várias penas espirituais. Impuseram-lhe também que fizesse vida marital com o legítimo esposo (o primeiro, claro) e que não coabitasse com o segundo "nem tratasse com ele por palavras ou obras".

Sonho de fuga

Alguns continuavam a sonhar com o regresso à sua terra. Em 1555, Gaspar Correia, um escravo natural do Guzerate, esteve envolvido numa tentativa de fuga para Marrocos, pois pensava poder, a partir dali, chegar a Meca e alcançar a Índia.

Os escravos indianos aparecem associados às profissões mais diversas. Em 1550, o Convento de Cristo, em Tomar, comprou um para aprender a alfaiate. Em 1564, D. Teodósio I, duque de Bragança, tinha ao seu serviço em Vila Viçosa oito "índios", dois deles tecelões. Em 1782, "dois índios malabares" eram criados domésticos na casa de Lisboa de Aires Saldanha de Albuquerque. Mas também surgem como marítimos, pescadores, palafreneiros, etc.

Apesar de algumas tentativas anteriores, será preciso esperar pelo Marquês de Pombal para ver proibida a escravização dos chineses (1758) e de indianos cristianizados (1761). Embora sem resultados imediatos, a compra e venda de japoneses tinha sido proibida por D. Sebastião logo em Setembro de 1570.

Artigo originalmente publicado na revista "Visão História" nº 49 ("Nos tempos da escravatura"), Outubro de 2018. Foto: Camões e Jau, quadro oitocentista de Francisco Metrass

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