Estão fartos de jornalistas? Vão adorar os influencers
"No fim de semana do Natal, o meu amigo Luís Pedro Nunes escreveu um artigo, “O Reino Convida”, que merece uma reflexão política (ver https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2408/html/revista-e/vicios/ha-homem/O-Reino-convida). Sem que os seus anfitriões soubessem que ele era jornalista, o Luís Pedro foi convidado para participar numa viagem de instagramers e bloggers de viagens, carros, moda e lifestyle à Arábia Saudita, para assistir a uma prova de Fórmula E (os carros só usam energia elétrica) organizado pela Secretaria de Desporto do governo. Decidiu ir para fazer um trabalho que se tornou bastante útil para nós. O que ele conta é que miúdos de 20 anos “foram tratados como reizinhos, embora colocassem o ar enjoado de quem obviamente merece aquilo e muito mais”. E aquilo foi, por exemplo, um Boeing particular do rei até ao Mar Vermelho, onde foi construído “um oásis de luxo à beira-mar para receber 15 pessoas, em que tudo era tão novo que nem tiveram tempo de tirar os plásticos dos dez jipes ou das sanitas por estrear”.
O governo saudita está a viver um momento difícil. O bárbaro assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, em Istambul, criou uma tempestade diplomática nunca vista. Mohammed bin Salman, o monarca conhecido por MBS, vê todo o seu esforço de abertura a alguns direitos das mulheres a ir por água abaixo. Tendo em conta a vítima mais recente do seu regime, não tem grandes hipóteses junto dos jornalistas. A escolha de Khashoggi como um dos nomeados para figura do ano pela revista “Time” demonstra o empenho da comunicação social na denúncia da perseguição à liberdade de imprensa. Ninguém se prestaria a fretes neste momento.
Ninguém? Um grupo de miúdos para quem tudo isto é chinês prestou-se. Na viagem que o Luís Pedro fez e que serviu para o texto de denúncia deste novo mundo, fica bem explicado como as coisas funcionam. Jornalistas, só viu alguns especializados no desporto automóvel, no media center, no dia da corrida. E todos com uma liberdade de movimentos muitíssimo menor do que os instagramers.
Cito o Luís Pedro Nunes: “A Arábia Saudita está com um caso de ‘crise reputacional’, digamos eufemisticamente. Em vez de rebater nos jornais ou TV, chamam umas largas dezenas de instagramers que atingem milhões de jovens e adultos num só post, mas que no agregado valem muitas dezenas de milhões de posts nos quais a Arábia Saudita é enaltecida. E porquê? Porque é a natureza do médium. O instagramer quer-se autopromover estando num local extraordinário e inatingível a outros, assim atraindo likes. Nunca se irá colocar num sítio feio ou atrair polémicas políticas. Até evitará chatices e ainda embelezará mais o local onde se encontra. Cada instagramer é um ‘relações públicas formidável’ e controlável em tempo real por quem convida. O Dubai sabe-o há muito. Os sauditas replicaram.”
O mundo do jornalismo está cheio de manipulação. O mundo sem jornalismo é apenas manipulação. Porque os mediadores continuarão sempre a existir, já que a realidade nunca é toda alcançável por todos
Já várias vezes escrevi aqui sobre uma confusão que se instalou. Quando se defende as vantagens de haver jornalismo organizado não se está a defender o jornalismo que temos, assim como quando se defende as vantagens da democracia não se está a negar as enormes perversidades que podemos observar nas nossas democracias. Está a dizer-se que há um quadro, com regras e limites, que nos permite apontar o dedo a quem os viola. E que fora desse quadro nem sequer a censura social faz sentido.
Os jornalistas são um grupo de profissionais – que eu defendo que deve ser alargado, aberto ao acesso de todos e não corporativo – que estão obrigados a seguir um código deontológico. Muitos não o seguem mas esse código existe. O que permite aos mais sérios ter uma conduta determinada por mais do que a sua consciência pessoal. Permite que haja um certo e um errado. A maioria dos jornalistas trabalha para empresas. Isso limita a sua autonomia mas garante-lhes uma defesa de corpo perante os maiores poderes. Um jornalista sozinho é mais independente mas, por falta de meios, é muitas vezes menos livre. Criticar o jornalismo que temos, que é coisa que faço com tanta frequência, não pode corresponder a deitar o fora o bebé com a água do banho. O que distingue o jornalista dos novos influencers (instagramers, bloggers e tudo o que venha depois) não é a seriedade. É que uns estão cobertos por um código, mesmo quando o violam. Os outros nem sequer chegam a prevaricar, porque a sua única ética é a do entretenimento.
Sempre existiram empresas de relações públicas para fazer lóbi na comunicação social. Muitas das vezes são bem-sucedidas. Ainda assim, têm de passar pelos jornalistas. Com muitos resulta, com outros não. Com estes miúdos esse risco não existe. Resultará sempre. Porque essa é a lógica das coisas: não há filtro entre a imagem idílica que o relações públicas quer fazer passar para promover o seu cliente e a imagem idílica que o instagramer quer passar para se promover a si mesmo. O mundo do jornalismo está cheio de manipulação. O mundo sem jornalismo é apenas manipulação. Porque os mediadores continuarão sempre a existir, já que a realidade nunca é toda alcançável por todos. Estes não têm outra ética que não seja individual. A do seu interesse. Isto vale para o jornalismo e para quase todas as formas de intermediação que estamos a destruir. O que sucederá à democracia imperfeita e intermediada que temos não é uma democracia popular. É apenas o mercado em rede, único poder que sobra.
A revolta niilista contra tudo, que vê um mundo novo onde só planta o caos, vive num equívoco: o de que o desmantelamento de todas as formas de intermediação vai dar poder ao povo, numa democracia horizontal e em rede. É exatamente ao contrário. O fim dos partidos não trará a democracia participativa, mas o poder do mais forte e do demagogo. O fim das empresas de comunicação social não trará a informação de todos para todos, trará o algoritmo de uma multinacional e as fake news produzidas em série para quem tenha dinheiro para as espalhar depressa pelo WhatsApp. O fim dos sindicatos não trará comités de trabalhadores organizados e livres dos partidos, mas o corporativismo totalmente egoísta e até financiado por interesses estranhos aos trabalhadores. O fim dos direitos laborais não trará o empreendedorismo individual, mas a escravatura sem direitos e mal paga do UberEats. O fim das igrejas tradicionais não trará a liberdade religiosa e o racionalismo ateu, mas as novas igrejas empresariais multimilionárias com projetos políticos ultraconservadores.
Também o fim do jornalismo não trará o jornalismo cidadão, seja lá o que isso for. Trará os influencers que só não se vendem, como os maus jornalistas sempre fizeram, porque a censura moral nem sequer faz sentido para quem se assume como um mero produto. Julgamos que estamos a acabar com os velhos poderes do velho mundo mas o novo mundo que estamos a construir apenas nos vai oferecer uma caricatura grotesca dos poderes de sempre.
Daniel Oliveira / Expresso 7/01/2019
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