Nós, os Refugiados - Hannah Arendt




Somos os primeiros judeus não-religiosos perseguidos – e somos os primeiros que, não apenas in extremis, respondemos com o suicídio. Talvez os filósofos, que ensinam que o suicídio é garantia suprema e melhor da liberdade humana, estejam correctos: não estando livre para criar as nossas vidas ou o mundo em que vivemos, no entanto estamos livres para jogar fora a vida e para deixar o mundo. Os nossos novos amigos, um tanto submergidos por tantas estrelas e homens famosos, compreendiam dificilmente que na base de todas as nossas descrições dos esplendores passados residia uma verdade humana: outrora, erámos alguém de quem as pessoas gostariam, erámos amados pelos nossos amigos e mesmo conhecidos pelos nossos senhorios como alguém que pagava a sua renda regularmente. Outrora, podíamos comprar a nossa comida e andar no metro sem nos dizerem que erámos indesejáveis. 

HANNAH ARENDT

"Em primeiro lugar, não gostamos de ser chamados “refugiados”. Chamamo-nos uns aos outros “recém-chegados” ou “imigrantes”. Os nosssos jornais são jornais para “americanos de língua alemã”; e, tanto quanto sei, não há e nunca houve qualquer clube fundado pelos perseguidos por Hitler cujo nome indicasse que os seus membros são refugiados.

Um refugiado costuma ser uma pessoa obrigada a procurar refúgio devido a algum acto cometido ou por tomar alguma opinião política. Bom, é verdade que tivemos que procurar refúgio; mas não cometemos nenhum acto e a maioria de nós nunca sonhou em ter qualquer opinião política radical. O sentido do termo “refugiado” mudou connosco. Agora “refugiados” são aqueles de nós que chegaram à infelicidade de chegar a um novo país sem meios e tiveram que ser ajudados por comités de refugiados.

Antes desta guerra começar éramos ainda mais sensíveis quanto ao sermos chamados refugiados. Demos o nosso melhor para provar aos outros que éramos apenas imigrantes comuns. Afirmávamos que tínhamos partido pela nossa própria vontade para países da nossa escolha e negávamos que a nossa situação tivesse algo a ver com “supostos problemas judaicos”. Sim, éramos “imigrantes” ou “recém-chegados” que tínhamos deixado o nosso país porque, num belo dia, não nos convinha mais ficar, ou puramente por razões económicas. Queríamos reconstruir as nossas vidas, isso era tudo. De modo a reconstruir a vida tem que se ser forte e optimista. Portanto, erámos bastante optimistas.

Com efeito, o nosso optimismo é admirável, mesmo que sejamos nós a dizê-lo. A história da nossa luta finalmente tornou-se conhecida. Perdemos a nossa casa, o que significa a familiaridade da vida quotidiana. Perdemos a nossa ocupação, o que significa a confiança de que tínhamos algum uso neste mundo. Perdemos a nossa língua, o que significa a naturalidade das reacções, a simplicidade dos gestos, a expressão impassível dos sentimentos. Deixámos os nossos familiares nos guetos polacos e os nossos melhores amigos foram mortos em campos de concentração e tal significa a ruptura das nossas vidas privadas.

Não obstante, logo que fomos salvos – e a maioria de nós teve que ser salvo várias vezes – começámos a nossas novas vidas e tentávamos seguir tão próximo quanto possível todos os bons conselhos que os nossos salvadores nos transmitiram. Foi-nos dito; e esquecemos mais rápido do que alguém poderia imaginar. De um modo amigável foi-nos lembrado que o novo país tornar-se-ia uma nova casa; e depois de quatro semanas em França ou seis semanas na América, fingiríamos ser franceses ou americanos. Os mais optimistas entre nós teriam mesmo acrescentado que toda a sua vida anterior teria sido passada numa espécie de exílio inconsciente e apenas o seu novo país lhes ensinaria agora com o que se parece uma casa. É verdade que por vezes levantámos objecções quando nos disseram para esquecer o nosso trabalho anterior; e logo que o nosso estatuto social está em jogo é-nos extremamente difícil desembaraçarmo-nos dos nossos ideais. Com a língua, contudo, não encontramos dificuldades: depois de um único ano os optimistas estavam convencidos que falavam inglês tão bem quanto a sua língua materna; e depois de dois anos juravam solenemente que falavam inglês melhor do que qualquer outra língua – o seu alemão é uma língua que dificilmente lembram.

De modo a esquecer mais eficientemente preferíamos evitar qualquer alusão aos campos de concentração ou de internamento que experienciámos em quase todos os países europeus – poderia ser interpretado como pessimismo ou falta de confiança na nossa nova pátria. Além disso, quão frequentemente nos foi dito o que ninguém gosta de ouvir de todo; o inferno não é mais uma crença religiosa ou uma fantasia, mas algo tão real quanto as casas, as árvores e as pedras. Aparentemente ninguém quer saber que a história contemporânea criou um novo tipo de seres humanos – o tipo dos que são postos em campos de concentração pelos seus inimigos e nos campos de internamento pelos seus amigos.

Mesmo entre nós não falamos sobre este passado. Em vez disso, encontrámos o nosso próprio modo de dominar um futuro incerto. Uma vez que toda a gente planeia, deseja e anseia, também nós o fazemos. Exceptuando estas atitudes humanas gerais, contudo, tentamos encarar o futuro mais cientificamente. Depois de tanta má sorte queremos um percurso infalível. Portanto, deixámos a terra com todas estas incertezas para trás e lançámos o nosso olhar para o céu. As estrelas dizem-nos – mais do que os jornais – quando Hitler será derrotado e quando nos poderemos tornar cidadãos americanos. Pensamos que as estrelas são mais conselheiras, mais confiáveis do que todos os nossos amigos; aprendemos das estrelas quando devemos almoçar com os nossos benfeitores e em que dia temos mais hipóteses de preencher um desses incontáveis questionários que acompanham as nossas vidas presentes. Por vezes não confiámos nem nas estrelas mas, antes, nas linhas das nossas mãos ou na grafologia. Assim aprendemos menos sobre os acontecimentos políticos mas mais sobre os nossos queridos seres, apesar de algum modo a psicanálise tenha saído de moda. Não querem mais histórias de fantasmas; é a experiência real que faz arrepios na sua carne. Não há mais necessidade de enfeitiçar o passado; já há feitiço suficiente na realidade. Assim, em vez do nosso falado optimismo, usamos todos os tipos de truques mágicos para evocar os espíritos do futuro.

Não sei que memórias e que pensamentos habitam toda a noite nos nossos sonhos. Não me atrevo a perguntar por essa informação, uma vez que, também eu, preferia ser uma optimista. Mas por vezes imagino que pelo menos durante a noite pensamos sobre o nosso pai ou lembramo-nos dos poemas que amámos outrora. Até poderia compreender como é que os nossos amigos da Costa Oeste, durante o toque de recolhimento, podiam ter noções curiosas tais como acreditar que não éramos os únicos “cidadãos prospectivos” mas “inimigos alienígenas” reais. À luz do dia, com certeza, tornávamo-nos tecnicamente apenas inimigos alienígenas – todos os refugiados sabem disso. Mas quando razões técnicas previnem-vos de sair de casa durantes as horas negras, certamente que não é fácil evitar algumas especulações negras sobre a relação entre técnica e realidade.

Não. Há algo de errado com o optimismo. Há aqueles estranhos optimistas entre nós que, tendo feito vários discursos optimistas, vão para casa e ligam o gás ou dão uso a um arranha-céus de um modo um pouco inesperado. Parecem provar que a nossa proclamada animação é baseada numa perigosa disposição para morte. Ao mencionar a convicção de que a vida é o bem maior e a morte a maior consternação, tornamo-nos testemunhas e vítimas de terrores piores que a morte – sem termos sido capazes de descobrir um ideal maior que a vida. Assim, embora a morte perca o seu horror para nós, não nos tornamos nem dispostos nem capazes de arriscar a nossa vida por uma causa. Em vez de combater – ou pensar sobre como ser capaz de resistir – os refugiados habituaram-se a desejar a morte a amigos ou familiares; se alguém morre, imaginamos animadamente todos os problemas de que foram salvos. Finalmente muitos de nós acabam por desejar que, também nós, poderíamos ser salvos de alguns problemas e agimos em conformidade.

Desde 1938 – desde a invasão de Hitler da Áustria – vimos como o optimismo eloquente pode mudar rapidamente para pessimismo mudo. À medida que o tempo passa, ficámos pior – ainda mais optimistas e ainda mais inclinados para o suicídio. Os judeus austríacos sob Schuschnigg eram pessoas tão animadas – todos os observadores imparciais os admiravam. É bastante magnífico o quão profundamente convencidos estavam que nada lhes podia acontecer. Mas quando as tropas alemãs invadiram o país e os vizinhos gentis começaram os distúrbios nas casas judaicas, os judeus austríacos começaram a suicidar-se.

Ao contrário de outros suicídios, os nossos amigos não deixaram explicação da sua dívida, nem acusação, nem culpa contra o mundo que forçou um homem desesperado a falar e a comportar-se serenamente até ao seu último dia. Assim, as orações de funeral que fazemos nas suas campas abertas são breves, embaraçadas e muito esperançosas. Ninguém quer saber dos motivos; parecem ser claros para todos nós.

Falo de factos pouco populares; o que torna as coisas piores, pois para comprovar a minha perspectiva não disponho de um único argumento que imprima o povo moderno – estatísticas. Mesmo esses judeus que negam furiosamente a existência do povo judeu dão-nos uma possibilidade justa de sobrevivência até onde concerne as estatísticas – de que outro modo provariam que apenas alguns judeus são criminosos e que muitos judeus estão a ser mortos como bons patriotas em tempo de guerra? Através do seu esforço para salvar a vida estatística do povo judeu sabemos que os judeus têm a taxa de suicídio mais baixa entre todas as nações civilizadas. Estou bem segura que essas figuras não estão mais correctas, mas não posso prová-lo com novas figuras, embora possa certamente com novas experiências. Tal pode ser suficiente para as almas cépticas que nunca estão completamente convencidas de que o tamanho de um crânio dá a ideia exacta do seu conteúdo, ou de que as estatísticas do crime mostram o nível exacto da ética nacional. Seja como for, onde quer que os judeus europeus estejam a viver hoje, já não se comportam mais de acordo com as leis estatísticas. Os suicídios ocorrem não apenas entre os afligidos pelo pânico em Berlim e em Viena, em Bucareste ou Paris, mas em Nova Iorque e Los Angeles, em Buenos Aires e Montevideo.

Por outro lado, os suicídios nos guetos e nos próprios campos de concentração têm sido pouco noticiados. É verdade, temos bem poucos relatos da Polónia, mas fomos bem informados sobre os campos de concentração alemães e franceses.

No campo de Gurs, por exemplo, onde tive a oportunidade de passar algum tempo, apenas ouvi uma vez sobre suicídio e foi a sugestão de uma acção colectiva, aparentemente uma espécie de protesto de modo a contrariar os franceses. Quando alguns de nós reparámos que tínhamos sido mandados para ali “pour crever” de algum modo, o sentimento geral passou rapidamente para uma coragem violenta de viver. A opinião geral segundo a qual se tem que ser anormalmente associal e não afectado pelos acontecimentos comuns para estar ainda apto para interpretar a infelicidade completa como má sorte pessoal e individual e, assim, terminar com a vida pessoal e individualmente. Mas as mesmas pessoas, assim que retornaram para as suas próprias vidas individuais, ao encararem aparentemente com problemas individuais, mudaram-se mais uma vez para esse optimismo insano que é a próxima porta para o desespero.

Somos os primeiros judeus não-religiosos perseguidos – e somos os primeiros que, não apenas in extremis, respondemos com o suicídio. Talvez os filósofos, que ensinam que o suicídio é garantia suprema e melhor da liberdade humana, estejam correctos: não estando livre para criar as nossas vidas ou o mundo em que vivemos, no entanto estamos livres para jogar fora a vida e para deixar o mundo. Judeus crentes, certamente, não podem realizar esta liberdade negativa; vêem assassínio no suicídio, isto é, a destruição daquilo de que homem nunca foi capaz de criar, interferência com os direitos do Criador. Adonai nathan veodonai lakach (“O Senhor deu e o Senhor tirou”); e acrescentariam: Baruch shem adonai (“abençoado seja o nome do Senhor”). Para eles o suicídio, como o assassínio, significa um ataque blasfemo à criação como um todo. O homem que se suicida asserta que a vida não merece ser vivida e o mundo não era digno de o abrigar.

Contudo, os nossos suicidas não são rebeldes loucos que atiram desafios à vida e ao mundo, que tentam matar neles todo o universo. Seu, é um modo silencioso e modesto de sumir; parecem-se desculpar-se pela solução violenta que encontram para os seus problemas pessoais. Na sua opinião, geralmente, os acontecimentos políticos não tem nada a ver com o seu destino individual; em bons e maus tempos teriam somente acreditado na sua personalidade. Agora encontram algumas falhas neles próprios que os impedem de serem bem-sucedidos. Tendo tido, desde a sua primeira infância, direito a um certo estatuto social, existem falhas neles próprios se esse estatuto não for mais mantido. O seu optimismo é uma tentativa vã para manter a sua cabeça acima da água. Por detrás desta frente de optimismo, lutam constantemente com o seu próprio desespero. Finalmente, morrem de uma espécie de egoísmo.

Se formos salvos sentimo-nos humilhados e se formos ajudados sentimo-nos degradados. Lutamos como doidos por existências privadas com destinos individuais, uma vez que temos medo de nos tor-narmos parte desse conjunto miserável de "schnorrers" de quem, muitos de nós antigos filantropos, nos lembramos bem. Tal como outrora falhámos em compreender que o assim chamado "schnorrer" era um símbolo do destino judaico e não um "schlemiel", assim hoje não nos sentimos com direito à solidariedade judaica; não conseguimos perceber que nós, por nós próprios, estamos tão envolvidos como todo o povo judaico. Por vezes, esta falta de compreensão foi fortemente apoiada pelos nossos protectores. Assim, lembro-me de um director de um grande centro de caridade em Paris que, sempre que recebia um cartão de um intelectual judeu alemão que contivesse o inevitável “Dr.”, costumava exclamar com toda a sua voz, “Herr Doktor, Herr Doktor, Herr Schnorrer, Herr Schnorrer!”.

A conclusão que delineámos de tais experiências desagradáveis era bastante simples. Ser doutor em filosofia já não nos satisfazia; e aprendemos que para construir uma nova vida, primeiro tinha-se que embelezar a antiga. Uma pequena história engraçada foi inventada para descrever o nosso comportamento; um "dachshund" desemparado "émi-gré", no seu pesar, começa por dizer: “Antigamente, quando eu estava em St. Bernard. . . ”

Os nossos novos amigos, um tanto submergidos por tantas estrelas e homens famosos, compreendiam dificilmente que na base de todas as nossas descrições dos esplendores passados residia uma verdade humana: outrora, erámos alguém de quem as pessoas gostariam, erámos amados pelos nossos amigos e mesmo conhecidos pelos nossos senhorios como alguém que pagava a sua renda regularmente. Outrora, podíamos comprar a nossa comida e andar no metro sem nos dizerem que erámos indesejáveis. Tornámo-nos menos histéricos desde que os jornais começaram a detectar-nos e a dizer-nos publicamente para parar de sermos desagradáveis quando íamos comprar leite ou pão. Imagináva-mos como é que tal podia ser feito; já erámos suficientemente prudentes em cada momento das nossas vidas quotidianas para evitar que alguém adivinhasse quem erámos, que tipo de passaporte tínhamos, onde é que os nossos certificados de nascimento tinham sido preenchidos – e que Hitler não gostava de nós. Tentávamos o nosso melhor para nos adequarmos a um mundo onde tínhamos que ser politicamente conscientes quando comprávamos a nossa comida.

Sob tais circunstâncias, St. Bernard crescia cada vez mais. Nunca mais consegui esquecer um homem jovem que, quando teve que aceitar um certo tipo de trabalho, soltou um suspiro, “Não sabe com quem fala, eu era gerente de secção no Karstadt [uma grande loja em Berlim]”. Mas também há o desespero profundo do homem de meia-idade que, indo através de turnos incontáveis de diferentes comités para ser salvo, exclamou finalmente, “E aqui ninguém sabem quem eu sou!”. Uma vez que ninguém o iria tratar como um ser humano digno, começou a enviar telegramas para as grandes personalidades e para as suas maiores relações. Rapidamente percebeu que neste mundo louco é bem mais fácil ser aceite como “grande homem” do que como ser humano.

Quanto menos livres somos para decidir quem somos ou para viver como gostamos, mais tentamos levantar uma fachada, para esconder factos e representar papéis. Fomos expulsos da Alemanha porque erámos judeus. Mas tendo dificilmente passado a fronteira francesa, fomos mudados para boches. Disseram-nos mesmo que tínhamos que aceitar esta designação se fossemos realmente contra as teorias raciais de Hitler. Durante sete anos representámos o papel ridículo de tentar ser franceses – pelo menos, cidadãos prospectivos; mas no início da guerra fomos mesmo assim internados como boches. Entretanto, contudo, muitos de nós tornámo-nos de tal maneira franceses leais que não podíamos mesmo criticar uma ordem governamental francesa; assim declarávamos que estava certo sermos internados. Fomos os primeiros "prisonniers volontaires" que a história alguma vez viu. Depois dos alemães terem invadido o país, o governo francês só teve que mudar o nome da fábrica; tendo sido presos porque erámos alemães, não erámos livres porque erámos judeus.

É a mesma história em todo o mundo, repetidas vezes. Na Europa os nazis confiscaram a nossa propriedade; mas no Brasil tínhamos que pagar 30% da nossa saúde, como a maioria dos membros leais do Bund der Auslandsdeutschen. Em Paris não podíamos sair das nossas casas depois das oito horas porque erámos judeus; mas em Los Angeles estávamos sob restrições porque erámos “inimigos aliados”. A nossa identidade mudava tão frequentemente que ninguém conseguia descobrir quem erámos de facto.

Infelizmente, as coisas não pareciam melhores quando nos encontrávamos com judeus. Os judeus franceses estavam absolutamente convencidos que todos os judeus vindos para além do Reno eram o que eles chamavam Polaks – o que os judeus alemães chamavam Ostjuden. Mas esses judeus que vinham da Europa de Leste não podiam concordar com os seus irmãos franceses e chamavam-os Jaeckes. Os filhos dos judeus que odiavam os Jaeckes – a segunda geração nascida em França e já devidamente assimilados – partilhavam a opinião das classes judaicas altas. Assim, na mesma família, podia-se ser chamado Jaecke pelo pai e Polak pelo filho.

Desde o deflagrar da guerra e a catástrofe onde caiu o judaísmo europeu, o mero facto de ser um refugiado impediu a nossa assimilação com a sociedade judaica nativa, algumas excepções apenas provam a regra. Essas leis sociais por escrever, embora nunca publicamente admitidas, tinham uma grande força na opinião pública. E tal opinião silenciosa e prática eram mais importantes para a nossa vida quotidiana do que todas as proclamações de hospitalidade e boa vontade oficiais.

O homem é um animal social e a vida não é fácil para este quando as ligações são cortadas. Os padrões morais são muito mais fáceis de manter na textura da sociedade. Muitos poucos indivíduos têm força para conservar a sua própria integridade se o seu estatuto social, político e legal estiver completamente confuso. Faltando a coragem para lutar pelo nosso estatuto social e legal, decidimos, em vez disso, tantos de nós, tentar mudar de identidade. E este comportamento curioso torna as questões bem piores. A confusão em que vivemos é, em parte, do nosso própria responsabilidade.

Um dia alguém irá escrever a verdadeira história da emigração judaica da Alemanha; e teria que começar com a descrição desse Sr. Cohn de Berlim, que sempre havia sido alemão a 150%, um alemão super-patriota. Em 1933 esse Sr. Cohn encontrou refúgio em Praga e rapidamente se tornou num patriota checo convicto – tão verdadeiro e leal como patriota checo quanto tinha sido patriota alemão. O tempo foi passando e por volta de 1937 o governo checo, já sob pressão nazi, começou a expulsar os seus refugiados judeus, apesar do facto destes se sentirem tão fortemente como cidadãos prospectivos quantos os checos. O nosso Sr. Cohn foi então para Viena; para se ajustar lá um patriotismo austríaco era requerido. A invasão alemã forçou o Sr. Cohn a sair do país. Chegou a Paris num mau momento e nunca chegou a receber uma permissão de residência regular. Tendo já adquirido uma grande capacidade em desejar o melhor, recusou tomar as medidas administrativas seriamente, convencido de que iria passar a sua vida futura em França. Portanto, preparou o seu ajustamento à nação francesa ao identificar-se com o “nosso” antepassado Vercingétorix. Penso ser melhor não me demorar nas aventuras futuras do Sr. Cohn. Tanto quanto o Sr. Cohn não consiga enganar a sua mente sobre quem é de facto, um judeu, ninguém pode prever todas as mudanças doidas que ainda terá que passar.

Com efeito, um homem que ser quer perder a si próprio descobre as possibilidades da existência humana, que são infinitas, tão infinita quanto é a criação. Mas a descoberta de uma nova personalidade é tão difícil – e tão desesperançada – como uma nova criação do mundo. O que quer que façamos, quem quer que finjamos ser, apenas revelamos o nosso desejo insano de ser mudados, de não sermos judeus. Todas as nossas actividades são directas para atingir esse objectivo: não que-remos ser refugiados, uma vez que não queremos ser judeus; fingimos ser falantes de inglês, uma vez que os imigrantes que falam alemão dos anos recentes são marcados como judeus; não nos chamamos a nós próprios apátridas, visto que a maioria dos apátridas são judeus; tentamos ser Hottentots leais; sob a capa do nosso “optimismo” pode-se detectar a loucura desesperançada da assimilação.

A palavra “assimilação” recebe um significado filosófico “profundo”, connosco da Alemanha. A assimilação não significa o necessário ajustamento ao país onde aconteceu termos nascido e ao povo cuja língua aconteceu falarmos. Ajustamo-nos, em princípio, a qualquer coisa e a qualquer pessoa. Esta atitude tornou-se bastante clara para mim uma vez pelas palavras de um dos meus compatriotas que, aparentemente, sabia como expressar os seus sentimentos. Tendo acabado de chegar a França, encontrou uma dessas sociedades de ajustamento nas quais os judeus alemães afirmavam uns aos outros que já eram franceses. No seu primeiro discurso disse: “Fomos bons alemães na Alemanha e portanto teremos que ser bons franceses em França”. O público aplaudiu entusiasticamente e ninguém riu; estávamos contentes por termos apreendido como provar a nossa lealdade.

Se o patriotismo era uma questão de rotina ou de prática, devíamos ser o povo mais patriótico do mundo. Voltemos ao nosso Sr. Cohn; certamente que ele bateu todos os recordes. Ele é aquele imigrante ideal que sempre e, em cada país para onde o seu terrível destino o levou, vê prontamente e ama as montanhas nativas. Mas, uma vez que o patriotismo ainda não se acredita que seja uma questão de prática, é difícil convencer as pessoas da sinceridade das nossas repetidas transformações. Os nativos, confrontados com tais seres estranhos que somos, tornam-se desconfiados; do seu ponto de vista, como regra, apenas uma lealdade para com os nossos antigos países é compreensível. Isto torna a vida muito amarga para nós. Talvez possamos ultrapassar essa desconfiança se explicarmos que, sendo judeus, o nosso patriotismo nos nossos países originais tinha um aspecto particular. Embora fosse realmente sincero e profundamente enraizado. Escrevemos grandes volumes para o provar; pagámos a uma burocracia inteira para explorar a sua antiguidade e para o explicar estatisticamente. Tivemos académicos que escreveram dissertações filosóficas sobre a harmonia pré-destinada entre judeus e franceses, judeus e alemães, judeus e húngaros, judeus e. . . A nossa tão frequente lealdade suspeita de hoje tem uma longa história. É a história de 150 anos de judaísmo assimilado que praticou uma façanha sem precedentes: embora provando sempre seu não-judaísmo, tiveram mesmo assim sucesso em permanecer judeus.

A confusão desesperada dos viajantes à maneira de Ulisses que, ao contrário dos seus grandes protótipos, que não sabem quem são, é facilmente explicado pela sua perfeita mania em recusar manter a sua identidade. Esta mania é bem mais antiga do que os últimos dez anos, o que revela a profunda absurdidade da nossa existência. Somos como pessoas com um ideia fixa que não conseguem parar de disfarçar um estigma imaginário. Assim gostamos entusiasticamente de qualquer nova possibilidade que, sendo nova, parece poder fazer milagres. Somos fascinados por qualquer nova nacionalidade do mesmo modo como as mulheres um pouco fortes se deliciam com qualquer vestido que prometa dar-lhe a cintura desejada. Mas ela também gosta de novos vestidos desde que acredite nas suas qualidades milagrosas e deitará fora tão rápido quanto descobrir que ele não lhe muda a estatura – ou, de resto, o seu estatuto.

Podemos ficar surpreendidos de que a aparente inutilidade de todos os nossos disfarces ainda não tenha conseguido desencorajar-nos. Se é verdade que os homens raramente aprendem com a história, também é verdade que podiam aprender pelas experiências pessoais que, como no nosso caso, se repetem repetidas vezes. Mas antes de atirar a primeira pedra contra nós, lembre-se que ser judeu não nos dá qualquer estatuto legal neste mundo. Se tivéssemos que começar por dizer a verdade de que não somos nada para além de judeus, tal significaria que nos expomos ao destino dos seres humanos que, não protegidos por qualquer lei ou convenção política específica, não são mais do que seres humanos. Dificilmente consigo imaginar uma atitude mais perigosa, desde que vivemos realmente num mundo no qual seres humanos enquanto tais deixaram de existir há já algum tempo; desde que a sociedade descobriu a descriminação como a maior arma social através da qual pode-se matar um homem sem derramar sangue; desde que passaportes ou certificados de nascimento e algumas vezes até recibos de impostos, não são mais papéis formais mas factos de distinção social. É verdade que a maioria de nós depende dos estatutos sociais; perdemos confiança em nós próprios se a sociedade não nos aprovar; estamos – e sempre estivemos – prontos para pagar qualquer preço para sermos aceites em sociedade. Mas também é igualmente verdade que muitos poucos entre nós que tentaram ter sucesso sem todos estes truques e piadas de ajustamentos e assimilação pagaram um preço bem mais alto do que podiam pagar: puserem em perigo as poucas hipóteses que até os fora-da-lei têm num mundo de pernas para o ar.

A atitude dos poucos que, seguindo Bernard Lazare, poderíamos chamar “párias conscientes”, pode ser explicada por acontecimentos recentes isolados tais como a atitude do nosso Sr. Cohn que tentou por todos os meios ser socialmente bem-sucedido. Ambos são filhos do século XIX que, não conhecendo foras-da-lei políticos ou legais, conheciam apenas párias sociais e a sua contrapartida, parvenus sociais. A história judaica moderna, tendo começada com judeus de tribunais e continuado com milionários e filantropos judeus, é apta a esquecer essa outra ameaça para a tradição judaica – a tradição de Heine, Rahel Varnhagen, Sholom Aleichem, Bernard Lazare, Franz Kafka, ou até Charles Chaplin. É a tradição de uma minoria de judeus que não quiseram ser socialmente bem-sucedidos, que preferiam o estatuto de “pária cônscio”. Todas as qualidades judaicas vangloriadas – o “coração judaico”, humanidade, humor, inteligência desinteressada – são qualidades párias. Todas as falhas judaicas – falta de tacto, estupidez política, complexos de inferioridade e avareza – são características dos socialmente bem-sucedidos. Foram sempre judeus que não pensaram que valeria a pena mudar a sua atitude humana e a sua intuição natural para a realidade estreita dos espíritos castos ou da irrealidade das transacções financeiras.

A história forçou-nos o estatuto sob ambos, sobre os párias e o par-venus igualmente. O último ainda não aceitou a grande sabedoria de Balzac “On ne parvient pas deux fois”; assim não compreendem os sonhos selvagens do primeiro e sentem-se humilhados ao partilhar o seu destino. Esses poucos refugiados que insistem em contar a verdade, até ao ponto da “indecência”, ganham em contrapartida pela sua impopularidade uma vantagem sem preço: a história não é mais um livro fechado para eles e a política não é um privilégio dos gentios. Sabem que o banimento do povo judeu da Europa foi seguido pelo banimento da maioria das nações europeias. Os refugiados fogem de país para país representado a vanguardas dos seus povos – se mantiverem a sua identidade. Pela primeira vez a história judaica não está separada mas entrelaçada com a de todas as nações europeias. O comité dos povos europeus perdeu o controlo e porque permitiu que o seu membro mais fraco fosse excluído e perseguido."

Texto originalmente publicado por Hanna Arendt em 1943, no jornal “The Menorah Journal”. Tradução de Ricardo Santos

 http://www.lusosofia.net/textos/20131214-hannah_arendt_nos_os_refugiados.pdf


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Sobre Hannah Arendt

Hannah Arendt (nascida Johanna Arendt; Linden, Alemanha, 14 de outubro de 1906 – Nova Iorque, Estados Unidos, 4 de dezembro de 1975) foi uma filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, fizeram-na decidir emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como "filósofa" e também se distanciava do termo "filosofia política"; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da "teoria política".Arendt defendia um conceito de "pluralismo" no âmbito político. Graças ao pluralismo, o potencial de uma liberdade e igualdade política seria gerado entre as pessoas. Importante é a perspectiva da inclusão do Outro. Em acordos políticos, convênios e leis, devem trabalhar em níveis práticos pessoas adequadas e dispostas. Como frutos desses pensamentos, Arendt se situava de forma crítica ante a democracia representativa e preferia um sistema de conselhos ou formas de democracia direta. Entretanto, ela continua sendo estudada como filósofa, em grande parte devido a suas discussões críticas de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Immanuel Kant, Martin Heidegger e Karl Jaspers, além de representantes importantes da filosofia moderna como Maquiavel e Montesquieu. Justamente graças ao seu pensamento independente, a teoria do totalitarismo (Theorie der totalen Herrschaft),[2] seus trabalhos sobre filosofia existencial e sua reivindicação da discussão política livre, Arendt tem um papel central nos debates contemporâneos. Como fontes de suas investigações Arendt usa, para além de documentos filosóficos, políticos e históricos, biografias e obras literárias. Esses textos são interpretados de forma literal e confrontados com seus pensamentos. Seu sistema de análise - parcialmente influenciado por Heidegger - a converte em uma pensadora original situada entre diferentes campos de conhecimento e especialidades universitárias. O seu devenir pessoal e o de seu pensamento mostram um importante grau de coincidência. (Wikipédia) - https://pt.wikipedia.org/wiki/Hannah_Arendt


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