Dos Guzerates e Baneanes de Cambaia




"Os Guzerates e os Baneanes vêm da terra de Cambaia e frequentemente têm a sua residência em Goa, Diu, Chaul, Cochim e outros lugares da Índia, por razão do comércio e tráfico que fazem muito intensamente, com todas as mercadorias, tais como trigo, tecidos de algodão, anil, arroz, e outros produtos, mas principalmente com todo o género de pedras preciosas, em que são maravilhosamente entendidos. São extremamente subtis e astutos em todas as contas e escritas, não só ultrapassando nisso todos os indianos e nações circundantes, mas também os portugueses, pelo que lhes têm grande vantagem. Entendem-se às maravilhas com todas as mercadorias e são muito manhosos em burlar as pessoas.

Também não comem o que tenha vida ou sangue, nem matariam coisa alguma no mundo que tenha vida, por mais pequena ou inútil que fosse, pois acreditam firmemente que todas as coisas têm alma e são seus próximos, segundo a lei de Pitágoras. Cumprem muito rigorosamente este preceito, pelo que muitas vezes comprariam qualquer ave ou outro animal aos cristãos ou portugueses que tivessem intenção de matá-los, para os libertar de novo. Têm por costume, em Cambaia, colocar bacias com água nos caminhos e nos matagais, onde deitam trigo e outros cereais, para dar de comer às aves e aos outros animais. E por toda a terra de Cambaia têm hospitais, ordenados pelo Estado para esse efeito, onde curam e tratam de doenças, com muito cuidado e assiduidade, todas as aves e outros animais, que ali são recebidos como se fossem pessoas. E quando estão de novo sãos, libertam-nos, o que entre eles é uma obra de grande caridade. Dizem que o fazem aos seus próximos. E se apanharem um piolho ou uma pulga, não os matam, mas põem-nos dentro de um trapo num buraco qualquer de uma parede e libertam-nos assim. Não se lhes pode fazer maior tormento do que querer matar alguma coisa na sua presença. Não pararão de rogar e pedir com toda a humildade que não se faça um pecado tão grande como tirar a vida que Deus criou juntamente com a alma e o corpo. Até oferecerão dinheiro para que a deixem viver e lhe dêem liberdade. Também não comem rabanete, cebola ou quaisquer outras ervas que tenham qualquer cor vermelha, nem ovos, porque acreditam que contêm sangue. E não bebem vinho de todo, nem usam vinagre, mas apenas água.

Têm tanto medo de comer ou mesmo de tocar em comida de outras pessoas que não sejam da sua nação, que preferiam morrer de fome ou sede a tocarem comida de qualquer um outro povo. Acontece que vão frequentemente nos navios portugueses de Goa para Cochim, para venderem as suas mercadorias e comerciar com os portugueses. Então, calculam quantos dias vão levar de caminho em seu parecer, de forma aproximada, levando as correspondentes provisões de água e vegetais para o seu sustento. E acontecendo ser o tempo de viagem mais longo do que calculavam e acabarem-se-lhes as provisões e a água, como aconteceu quando naveguei de Goa para Cochim, antes pereceriam e morreriam de fome e sede do que tomarem e comerem comida e água dos cristãos ou de qualquer outra pessoa. Lavam-se sempre antes de comer, tal como os brâmanes, e também sempre que evacuam ou vertem águas.

De cor são amarelados como os brâmanes, e alguns um pouco mais brancos. E encontram-se entre eles mulheres que ultrapassam as mulheres portuguesas em alvura e beleza. Na feição do rosto, do corpo e dos membros são em tudo iguais aos da Europa, exceptuando a cor. O seu traje é apenas uma túnica branca sobre o corpo nu, desde o pescoço, em volta do corpo, até baixo, e atado no flanco por baixo do braço. Usam sapatos de coiro vermelho com pontas agudas viradas para cima. A barba usam cortada como os turcos, mantendo apenas os bigodes. Na cabeça trazem, tal como os brâmanes, um pano branco enrolado três ou quatro vezes, rente ao cabelo. Untam-se todas as manhãs na testa com um pouco de sândalo branco misturado com água, onde colam quatro ou cinco grãos de arroz, o que frequentemente os brâmanes também têm por costume fazer; é uma superstição da sua lei. Untam geralmente o corpo nu com sândalo e outras ervas cheirosas, das quais são grandes amigos, assim como todos os indianos, que as usam frequentemente para tudo. As suas mulheres andam vestidas tal como as mulheres dos brâmanes. Comem sentadas no chão como os maometanos e todos os outros indianos. Nas suas casas ou nas suas reuniões sentam-se no chão em cim de uns tapetes ou esteiras, e deixam sempre os seus sapatos à porta, pelo que sempre entram descalços em casa, de maneira que geralmente calcam os calcanhares dos sapatos, para pouparem o trabalho de os estar sempre a descalçar e calçar. Têm ainda mil outras cerimónias e superstições gentias, que não são de grande interesse, pelo que relatei apenas as principais, das quais se pode entender o suficiente a seu respeito.

in "Itinerário, Viagem ou Navegação de Jan Huygen van Linschoten para as Índias Orientais ou Portuguesas, Ed. Comissão Nacional paras as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (1997)

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