Resignação e revolta em Gaza





Não há dias normais em Gaza, onde a cada hora há uma dificuldade diferente. Quatro cidadãos daquela que muita gente define como a “maior prisão a céu aberto do mundo” - cujas fronteiras, com Israel e o Egipto, estão fechadas a maior parte do tempo, como pressão sobre o Hamas, que governa o território - contam ao Expresso como é um dia normal em Gaza

ANA FRANÇA, EXPRESSO

São oito da manhã e Khalil Abu Yahia acorda dentro da sua “distopia literária do século XXI”. Tem 22 anos e estuda Literatura Inglesa na Universidade de al-Azhar, na Cidade de Gaza e nota-se. Há de ilustrar a sua rotina em Gaza, o território mais densamente povoado no mundo, também conhecido entre os palestinianos como a sua maior prisão a céu aberto, com passagens dos mestres: Orwell, H.G. Wells, Huxley, Rand. A pé, demora uma hora até à universidade e já está atrasado, tal como os dois irmãos: um para a escola primária, outro para o sexto ano.

Gaza sustém a respiração. Vêm aí mais cortes no orçamento da Agência das Nações Unidas para a Ajuda aos Refugiados da Palestina (UNRWA). As Nações Unidas gerem 250 escolas no território e 22 hospitais, além de entregarem todos os dias milhares de doses de alimentos, a todos os que se registem e se dirijam à sede da organização para ir buscar farinha, arroz, óleo e água.

Os cortes anunciados pelos Estados Unidos na sua comparticipação para o UNRWA são duros: 300 milhões de dólares, um terço de todo o orçamento da agência, vai desaparecer. “Esta decisão vai ter um impacto devastador nas vidas das 526.000 crianças que dependem da UNRWA para a sua educação, na saúde dos 3,5 milhões de pessoas doentes que utilizam os nossos hospitais e em 1,7 milhões de pessoas que recebem comida através da nossa ajuda”, disse Chris Gunness, porta voz da UNRWA depois de anunciada a decisão da Administração de Donald Trump.

Logo nos dias a seguir, surgiram acusações de que os Estados Unidos estão a tentar forçar a paz na região ao retirar aos refugiados palestinianos o pouco conforto e segurança que ainda têm, obrigando os seus atores políticos a aceitar os termos de Israel. “Saberás a verdade e ela irá enlouquecer-te”. Khalil cita Aldous Huxley.

Naquela manhã em que falou com o Expresso, Khalil queria um café e os irmãos queriam leite quente. “Nem sempre temos eletricidade, pelo que nem sempre dá para ligar a chaleira, que aquece tudo mais rapidamente. Também nem sempre temos botijas de gás para o fogão, que não é elétrico. Se fosse elétrico ainda seria mais difícil cozinhar, há cada vez menos horas de energia”, conta o jovem a partir de Gaza. Nos dias bons, há eletricidade seis horas por dia. Em muitos dos outros há quatro.

Mas Khalil queria mesmo um café. “Fui tentar fazer uma fogueira com os meus irmãos lá para fora. Claro que o vento não deixou, e também não havia paus secos suficientes, coisa que me irritou. Pode parecer-vos estúpido ou teimoso, mas às vezes dá-me assim uma descarga de nervos e penso que tenho que encontrar forma de viver como se estivesse numa cidade normal”, conta Khalil, que está com o telemóvel ligado à ficha, a carregar, num café perto da Universidade. Há uma fila de pessoas que esperam para fazer o mesmo. As tomadas em casa não servem para nada durante 18 das 24 horas do dia e os geradores dos cafés tornaram-se um dos serviços que estes estabelecimentos oferecem. “Algumas destas chamadas podem ser coisas urgentes. Depois falamos”, diz Khalil. “Não leves a mal”.

Hospitais com serviços mínimos

Basman Derawi tem 29 anos e é fisioterapeuta. Enquanto Khalil lutava com os irmãos contra o vento, Basman lutava contra o sol refulgente que o acompanha no caminho para o centro de saúde onde trabalha. Como só tem recebido entre 40 e 50% do ordenado - cerca de 300 mil pessoas ainda são pagas pela Autoridade Palestiniana, apesar de ser o Hamas que está no governo em Gaza - deixou de poder suportar os custos de um automóvel.

O dia não começou bem. “Cheguei ao hospital e não consegui dar aos doentes a sessão completa de fisioterapia, porque não havia luz e o gerador estragou-se”, conta ao telefone depois de chegar ao emprego. São dez da manhã em Gaza, é um dia de agosto, e o termómetro marca 32 graus. Na sala de espera da clínica as pessoas abanam-se com revistas, leques, bulas de medicamentos.

“É horrível, porque as pessoas que me consultam têm dores muitas vezes agudas e não sabem se amanhã poderão ter a sessão toda, então à dor física junta-se a angústia de saberem que possivelmente a recuperação será muito mais longa do que o necessário ou ficarão com mazelas que seriam perfeitamente evitáveis”, diz.

Mas os casos mais graves não são no seu departamento, são na imagiologia e na cirurgia. “As pessoas não podem fazer uma TAC nem um raio-x, saber se têm membros partidos, hemorragias internas, mesmo cancros, porque não há eletricidade para todas as máquinas. Quando a há é por pouco tempo e o quadro vai abaixo com tantas coisas que têm de funcionar naquelas horas”, conta Derawi, que faz parte de um grupo de repórteres amadores, o grupo Não Somos Números, que se juntou para contar as histórias daquilo que é viver em Gaza.

As falhas no abastecimento de combustível para os geradores, segundo o Ministério da Saúde da Palestina, já inviabilizaram os serviços em 10 centros médicos e três hospitais.

“É um lugar fechado a vácuo”

As fronteiras terrestres, com Israel e com o Egito, estão fechadas a maior parte do tempo ou para a maioria das pessoas. Recentemente, Israel fechou a fronteira de Karam Abu Salem, a principal passagem de bens para Gaza. Na semana passada, também a passagem de Erez foi fechada, em retaliação por “atos de vandalismo” dos palestinianos.

É sempre assim: o Hamas ataca, as fronteiras fecham, o número de milhas onde a pesca é autorizada diminuem, e a comida e água e a eletricidade escasseiam. Gaza tem 41 quilómetros de um lado ao outro, menos que de Lisboa ao Barreiro, metade do caminho entre Aveiro e Viseu.

A família de Haneen Abo viu a vida deteriorar-se à medida que o bloqueio económico se ia tornando mais apertado. “Já foi claustrofóbico, hoje é um lugar fechado a vácuo”, diz através de uma conversa no WhatsApp esta mãe “demasiado cedo”, de 24 anos. É formada em Serviços de Secretariado e Arquivística pela universidade de al-Aqsa, mas com dois filhos acabou por ter que deixar de trabalhar.

Apenas o marido de Haneen trabalha. Ele não quer falar, mas Haneen conta como a família chegou ao ponto de não conseguir dar aos filhos uma alimentação variada. “Ele é construtor civil, não ganhava muito, nunca ganhou muito, mas lá se iam construindo algumas coisas. Agora os materiais para a construção são muitas vezes retidos na fronteira. Não há cimento, não há tijolo, não há vidro, não há parafusos”, conta.

É meio dia em Gaza e a família Abo acabou de receber o tal telefonema que os informa que, naquele dia, também não haverá obra. Nos últimos seis meses, o marido de Haneen trabalhou uma média de 15 dias por mês. O ordenado não dá para viver.

Gaza é um local muito mais pobre do que nos anos 90. A economia cresceu 0,5% em 2017, de acordo com o Banco Mundial, e a média anual de rendimento per capita desceu de 2.659 dólares em 1994 para 1.826 em 2018. O desemprego está nos 44%, quase o dobro daquele que se verifica nos restantes territórios ocupados. O desemprego jovem ultrapassa os 60%. A comida vai sempre passando pelas fronteiras, mas as pessoas não têm dinheiro para a adquirir.

Resignação e revolta

É uma da tarde e Khalil faz uma pausa para almoçar na faculdade. É leve a sua lancheira. “Muitas vezes não como nada de muito consistente, porque isso tem que se cozinhar. Compramos pão que se faz em fornos que não precisam de eletricidade e também comemos coisas tipo couscous, coisas tão fininhas que não demoram nada a cozinhar. Começa a ferver e pode desligar-se”.

Nele há resignação e revolta ao mesmo tempo. “É normal, as duas coisas coexistem em todos os habitantes de Gaza. Todos somos ativistas, estamos sempre a desenhar cartazes, a escrever panfletos, a colar mensagens por aí mas ao mesmo tempo sabemos que isto é um genocídio em câmara lenta. Isto não é vida que se viva, é uma vida onde se vai vivendo para não morrer”, conta de uma só vez numa mensagem pelo WhatsApp, para não gastar bateria.

O pai de Khalil está a morrer de cancro na próstata. Durante uns meses tentou passar para Israel, para ser medicado e acompanhado, mas recentemente desistiu. “O meu pai não parece preocupado. É a fé. Diz que é o seu destino”, acrescenta. “Chegar à fronteira dias seguidos e não nos deixarem passar quando só queremos ver um médico é uma coisa para a qual nunca ninguém está preparado”, diz dois dias depois, numa nova chamada, que finaliza com Ayn Rand: “Entendi que séculos de amarras e vergastadas não matam o espírito dos homens nem o sentido de verdade contido neles”. 
 

O encerramento da fronteira de Rafah, a sul, com o Egito, reduziu bastante, quase na totalidade, o número de pessoas que poderiam procurar ali uma alternativa aos hospitais de Israel.

Em 2014, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, mais de 4.000 pessoas por mês passavam esta fronteira por razões de saúde. E para Israel se, em 2000, 93% dos pedidos de acesso a cuidados médicos eram aceites; 18 anos depois apenas 54% o são. Menos de 240 palestinianos de Gaza entraram em Israel na primeira metade de 2017, comparando com 26 mil em 2000, segundo dados das Nações Unidas, que continua a ser o grande, quase o único garante, de vida na Faixa.

O ouvido de Ali Abusheikh, finalista do curso de Literatura Inglesa de 24 anos, reconhece um som pelo qual esperou todo o dia. Perto das três da tarde, a torneira que tem fora de casa começa a jorrar água. Está sempre aberta, para que o som denuncie que a água, racionada pelo governo por haver pouca nas reservas subterrâneas, chegou aos canos da casa. “Aqui está uma coisa que muita gente não sabe sobre a vida em Gaza: quando a água chega nós vamos logo ligar as bombas, para levar essa água para tanques que temos em cima das casas. Temos que ser rápidos, é quase um jogo de correria com os vizinhos”.

“São bombas mamã!”

Cai a noite, são quase nove horas, e começa a ouvir-se fogo de artifício e músicas tradicionais dos casamentos. A sobrinha de Derawi começa a gritar. “Os israelitas estão lá fora! São bombas mamã!” Ninguém a consegue acalmar. Derawi pega nela e leva-a até ao local do casamento. “É assim que se educa uma criança em Gaza. Mas ela depois, no regresso, já só falava do vestido da noiva”, diz ao telefone.

Depois do trabalho, Basman volta a casa, onde vive com a mãe e com dois irmãos, a mulher de um deles e uma sobrinha. Dois deles trabalham, a cunhada está desempregada, tal como um outro irmão. É dos ordenados de dois homens pagos a metade que a família vive. Está a preparar-se o jantar. Arroz e atum enlatado - “o arroz é da ONU e o atum é acessível”.

Khalil chega a casa por volta da meia noite. Esteve no café com os amigos. “Gostava de estudar mas não consigo ler em condições, só tenho velas. Tenho dores de cabeça por causa do esforço que faço à noite para ler. E assim que vou dormir há sempre drones, parecem motores de barcos quando estão perto”. É a última mensagem que nos envia.

Expresso, 10/09/2018

Fonte: https://leitor.expresso.pt/diario/10-09-2018/html/caderno-1/temas-principais/gaza-isto-ja-foi-claustrofobico-agora-e-fechado-a-vacuo

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