Jamal Khashoggi: o mistério do jornalista saudita desaparecido




O que aconteceu a Jamal, o jornalista saudita que nunca mais foi visto depois de entrar no consulado do seu país em Istambul, há uma semana? Os sauditas dizem que nada sabem, os turcos acusam-nos de o terem morto, as manifestações à porta de embaixadas sauditas por todo o mundo exigindo saber o que lhe aconteceu multiplicam-se e esta quarta-feira o mistério adensou-se, por causa de uma misteriosa carrinha preta. Poderão os Estados Unidos pressionar para a descoberta do que se passou, usando a aliança de décadas com Riade? “Não se espere qualquer intervenção dos EUA”, disse ao Expresso um académico

HELENA BENTO E HÉLDER GOMES
EXPRESSO

Quando viu alguns dos seus amigos serem detidos, o jornalista saudita Jamal Khashoggi decidiu manter-se em silêncio, por medo de perder o emprego ou a liberdade. Também temia pela sua família, como escreveu em setembro do ano passado no jornal “The Washington Post”. Mas, a partir de então, assumiu uma “escolha diferente”. “Deixei a minha casa, a minha família e o meu emprego. E vou levantar a minha voz”, acrescentava num artigo para o diário com o qual passou a colaborar. Exilado nos EUA, explicou por que motivo decidiu quebrar o silêncio: “É que nós, os sauditas, merecemos melhor.”

Na semana passada, tudo mudou. Na terça-feira, o jornalista entrou no consulado saudita em Istambul, para obter um documento necessário para oficializar o casamento com a sua noiva, uma turca. As autoridades sauditas garantem que Khashoggi saiu pouco tempo depois, mas a noiva, que esperava no exterior, disse que ele nunca chegou a sair. Entretanto, esta quarta-feira, a estação de televisão turca News 24 mostrou imagens de Khashoggi a dirigir-se ao consulado e posteriormente uma carrinha a abandonar o edifício em direção à residência do cônsul.

As imagens parecem sugerir que o jornalista se encontrava no interior do veículo, uma carrinha Mercedes de cor preta. Segundo o relato da televisão, a carrinha fez o percurso de dois quilómetros entre o consulado da Arábia Saudita e a residência do cônsul, tendo entrado numa garagem. As autoridades turcas sempre negaram a versão saudita do desaparecimento e acrescentaram um pormenor sórdido à história – Khashoggi terá sido assassinado e desmembrado –, tendo por isso pedido autorização para fazer buscas no consulado, autorização já dada pelo reino saudita.
 
Não há e dificilmente haverá uma versão definitiva dos acontecimentos, mas o analista político Bill Law, amigo do jornalista saudita há mais de 15 anos, não tem grandes dúvidas sobre o que terá acontecido. “Receio que, ao olharmos para os factos, a única conclusão que possamos tirar é a de que Jamal foi, de facto, assassinado pelos sauditas. Se fosse verdade que tinha abandonado o consulado, porque é que há notícias de um grupo de 15 sauditas que chegaram a Istambul na terça-feira [da semana passada] e se deslocaram ao consulado quando Jamal se encontrava lá?”, questiona-se, em declarações ao Expresso.

PORQUÊ JAMAL KHASHOGGI?

“A Arábia Saudita não apresentou qualquer explicação credível para o seu desaparecimento”, acrescenta Bill Law, antigo jornalista da BBC. “Gostava de acreditar” que Khashoggi ainda está vivo, mas receia bem que já não seja esse o caso. “O regime saudita sabia perfeitamente que não iria conseguir vergá-lo. Outras pessoas torturadas foram postas à frente de câmaras a dizer coisas em que não acreditam mas o regime sabia que nunca iria conseguir isso com Jamal. Ele nunca iria mentir. Por isso é que o mataram”, acaba por acusar.

Khashoggi fugiu da Arábia Saudita no ano passado, por achar que seria o nome seguinte na lista de alvos a silenciar. Nessa altura, o regime apertou a vigilância sobre intelectuais, ativistas e jornalistas que, como ele, criticavam algumas decisões do príncipe herdeiro, Mohammad bin Salman. Apesar disso, a atitude do jornalista sempre foi mais de desencanto do que de ataque cerrado. No último artigo que assinou no “Post”, datado de 11 de setembro, Khashoggi apelava ao fim da guerra no Iémen, considerada a pior crise humanitária do mundo. “Quanto mais tempo esta guerra cruel durar, mais permanentes vão ser os estragos. O príncipe herdeiro deve pôr fim à violência e restaurar a dignidade do local de nascimento do Islão”, escreveu.
Com tantas vozes dissonantes, é legítimo perguntar por que motivo Khashoggi se tornou um alvo, como o próprio previu. “Primeiro, porque ele escrevia para um jornal americano de renome - e o regime saudita temia que ele influenciasse de algum modo as políticas de Washington em relação à Arábia Saudita. E segundo porque o príncipe herdeiro não tolera uma única crítica, ainda menos se essa crítica vier de alguém próximo das elites, como era o caso de Jamal”, explica Law.

Vários analistas têm tentado antecipar a resposta dos EUA ao desaparecimento de Khashoggi. O investigador e analista político turco Ali Bakeer, que colabora com vários meios de comunicação árabes, também o faz, mas assumindo que é impossível dar uma resposta definitiva, tendo em conta a “imprevisibilidade de Trump”. “Talvez a Administração perceba que o desaparecimento súbito e inexplicável de um jornalista saudita terá consequências também para os EUA e aja antes que a situação piore”, equaciona.

“O regime saudita tem um histórico de sequestros de opositores fora do país. Neste momento, o príncipe herdeiro está a tentar consolidar os seus poderes naquela que é provavelmente a mais instável fase da história recente da Arábia Saudita, dada a transição de poder. Mohammad bin Salman quer certificar-se de que qualquer transformação servirá para fortalecer a sua autoridade no reino”, explica Bakeer. “Por essa razão, não tem mostrado qualquer misericórdia contra quem critica o regime, diz o que pensa ou simplesmente faz recomendações”, acrescenta.

A ALIANÇA EUA-ARÁBIA SAUDITA SAIRÁ BELISCADA?

O provável desfecho do caso Khashoggi foi “mesmo ao estilo do regime saudita” e “não é algo sem precedentes, como se tem dito”, corrige o analista turco. “O regime capturou e matou no passado muitos cidadãos seus em países estrangeiros. Este está longe de ser o primeiro caso”, garante. E porque é que o príncipe herdeiro terá feito isto? “Obviamente porque sabe que pode e porque acredita que a relação privilegiada com Donald Trump lhe permitirá sair impune e sem consequências”, acrescenta.

Uma semana depois do desaparecimento do jornalista, o Presidente dos EUA afirmou-se “preocupado”, dizendo esperar que o assunto se resolva e que, de momento, ninguém sabe exatamente o que se passou. O secretário de Estado, Mike Pompeo, exortou o Governo saudita a investigar “de forma exaustiva” e a apresentar resultados de modo “transparente”. E o vice-Presidente, Mike Pence, mostrou-se “extremamente perturbado”: “A ser verdade que foi assassinado, isso será uma grande tragédia. A violência contra jornalistas em todo o mundo é uma ameaça à liberdade de imprensa e aos direitos humanos”, escreveu no Twitter.

O jornalista e académico do Middle East Institute, em Washington, Thomas Lippman mostra-se cético em relação às consequências deste caso no plano diplomático. “Nos 75 anos da aliança entre os EUA e a Arábia Saudita, nunca os EUA a interromperam ou tomaram medidas punitivas contra a Arábia Saudita ou a sancionaram de algum modo por causa do destino de um indivíduo ou grupo de indivíduos – nunca”, sublinha ao Expresso. “Nem mesmo na presidência de Jimmy Carter, que fez dos direitos humanos a pedra angular da sua política externa”, acrescenta.

Uma rutura é ainda menos provável sob a presidência de Trump, que é um admirador de Mohammad bin Salman, defende Lippman. “A existir alguma reação contra a Arábia Saudita, ela virá do Congresso, que tem algumas opções, como recusar-se a aprovar a venda de armas”, sugere. A esse propósito, o Expresso lembrou as palavras do senador republicano Lindsey Graham, que considerou que Riade deve dar “respostas honestas” sobre o caso e que, a confirmar-se que o jornalista foi assassinado, isso “terá profundas implicações na relação entre a Arábia Saudita e os EUA”. “Haverá um preço a pagar, e não só economicamente”, ameaçou o senador.

“Sim, ele disse isso. Os políticos neste país dizem coisas a toda a hora. Ele é a mesma pessoa que disse que o Partido Republicano nunca nomearia Donald Trump... Não se espere qualquer intervenção dos EUA”, afiançou Lippman. Dedicado a estas questões há mais de 40 anos, o jornalista e académico diz ter visto presidentes e reis a chegarem e a partirem mas “os fundamentos nunca mudam”. “Espero estar errado... Mas sobre este assunto nunca estou errado”, concluiu.

Fonte: https://expresso.sapo.pt/dossies/diario/2018-10-10-Ele-nunca-iria-mentir.-Por-isso-e-que-o-mataram-o-misterio-do-jornalista-saudita-desaparecido#gs.keTT66Q

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