Viagem ao Volga

A literatura árabe de viagens inclui textos de diversos formatos, conteúdos e propósitos. Recentemente, os leitores lusófonos podem ter um ótimo primeiro contato com este universo através do relatório de Ahmad Ibn Fadlān, traduzido diretamente do árabe à língua portuguesa, e publicado pela Carambaia com o título de "Viagem ao Volga: Relato do Enviado de um Califa ao Rei dos Eslavos". Seu autor foi emissário oficial em uma interação diplomática e é reconhecido por ter descrito, em primeira mão, povos e áreas que os árabes conheciam somente via fontes distantes até então – isto é, em 922 d.C. Assim, alguns recortes podem auxiliar na leitura desta tradução e fornecer informações relevantes sobre seu contexto histórico, geográfico e linguístico.

PEDRO MARTINS CRIADO

As obras mais antigas em língua árabe a conter relatos por seu valor informativo datam do século IX d.C. Relatórios de oficiais costumam abordar as regiões da morada do Islã (dār al'Islām) e são considerados burocráticos e documentais, enquanto mercadores e marinheiros desempenham um papel fundamental na obtenção de informações sobre regiões distante do mundo que não se encontravam sob a bandeira do califado abássida. Além disso, pouquíssimos registros oficiosos preservam descrições detalhadas de missões aos povos não-islâmicos. Esta é uma das importâncias centrais do relato de Ibn Fadlān, enviado em missão à Bulgária do Volga no século X d.C.

Para o leitor de hoje, seu modo de elaboração e o teor das informações revestem o livro de uma forte qualidade literária. Embora o autor não afirme, é seguro assumir que o livro corresponde ao relatório da missão da comitiva. Yāqūt Alhamawī, geógrafo do século XIII d.C. e primeiro a utilizar Ibn Fadlān como fonte em sua enciclopédia Dicionário de Países (Mu’jam Albuldān), por vezes diz possuir "o relatório do enviado de Almuqtadir Billāh ao rei dos eslavos, o qual contém informações registradas desde a saída até o retorno a Bagdá". O tom sóbrio e neutro do relator, o itinerário verossímil e a menção a nomes de pessoas verídicas também parecem confirmar esta hipótese. Entretanto, a leitura surpreende com diversas quebras inusitadas, pelas cenas ora cômicas, ora brutais, ora espetaculares. Tal variedade de temas se explica por fatores diferentes – entre eles, uma tópica da literatura de viagens tanto antiga quanto medieval, tanto árabe quanto ocidental: o interesse por maravilhas. Os trechos mais protocolares se alternam frequentemente com passagens de encantamento, e até mesmo um ar sobrenatural.

Neste sentido, a afirmação inicial de que a narrativa é resultado de um testemunho ocular fortalece o senso de exotismo da realidade que se apresenta, pois enfatiza a premissa do narrador ter presenciado situações incríveis – no limiar entre realidade e ficção, característico da historiografia medieval. O livro contém as impressões de um muçulmano do século X d.C. – o qual, por sua vez, assume a perspectiva de uma sociedade prolífera em diversos aspectos, como medicina, filosofia, astronomia, centros religiosos, debates teológicos e forte atividade econômica. De fato, o procedimento de Ibn Fadlān condiz com um princípio que é científico por excelência: a descrição escrita de procedimentos e dados colhidos via observação, o relatório. Até mesmo suas reações de espanto diante de cenas chocantes são incluídas, conferindo-lhes veracidade ao mesmo tempo que humanizam a voz que as descreve. Por esses e outros fatores, é inevitável que nossa sociedade atual depreenda do livro um caráter antropológico, certo tom de neutralidade e uma qualidade literária própria.

No desempenho de sua função documental, o relato de Ibn Fadlān é também a fonte escrita mais antiga a conter um testemunho visual do povo rūs, originário da Península Escandinava. Quando observados os exemplos atuais dos inúmeros produtos relacionados às culturas viking, nota-se uma espécie de amálgama de elementos reais e ficcionais, cujas origens são traçáveis a múltiplos povos de naturezas distintas. O relato da Viagem ao Volga é a fonte de algumas das descrições que inspiraram as caricaturas mais recorrentes nesta mistura, como as aparências físicas dos rūs e suas tatuagens, seus hábitos de higiene e, principalmente, seus rituais de cremação funerária.

É interessante notar como surgem as referências linguísticas aos povos nórdicos nas fontes árabes em geral. O termo mais associado a eles é majūs, cujo significado mais abrangente seria "adorador do fogo". Inicialmente, era utilizado como referência aos zoroastras, mas, com o tempo, teve sua aplicação estendida também aos praticantes das religiões da Índia e aos supostos vikings. Ao invés de se demonstrarem da mesma forma genérica, os termos aplicados no Viagem ao Volga são designações étnicas – os búlgaros (bulġār), os oguzes (ġuzz), os basquires (bāšġrid) e assim por diante, o que se atribui à proximidade entre o observador e a realidade que ele descreve.

Por fim, traduzir uma obra como o relato de Ibn Fadlān é um ótimo ponto de partida para a extensa jornada de divulgação do legado árabe-islâmico a partir de sua literatura histórica. Possibilitar ao leitorado de língua portuguesa o acesso a qualquer parcela desta herança é um convite à reflexão sobre realidades que nos são distantes, mas que valem a pena percorrer e com as quais ainda temos muito a aprender. Com certeza, viajantes são uma boa síntese de muitos de nossos impulsos essencialmente humanos, como a busca por conhecimento. Lendo suas viagens, podemos testemunhar por nós mesmos estas descobertas.

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"Viagem ao Volga: Relato do Enviado de um Califa ao Rei dos Eslavos" pode ser adquirido aqui: https://carambaia.com.br/viagem-ao-volga

Este artigo de Pedro Martins Criado saíu na edição de Setembro de 2018 da revista brasileira "Voz da Literatura"- https://www.vozdaliteratura.com/principal/viagem-ao-volga




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