“Teatro” Xiita - O Drama de Karbala




 

O dia da Ashura, dia 10 do mês de Muharram no calendário muçulmano, é comemorado pelos xiitas como dia de luto pelo martírio de Hussain Ibn ‘Ali, neto do Profeta, na Batalha de Karbala, ocorrida no dia 10 de Muharram do ano 61 AH (10 de outubro de 680). Em países de predominância xiita, como o Irã e o Iraque, a comemoração de Hussain é feriado nacional: “dia da Ashura”, recordando o martírio de Hussain, o terceiro Imam xiita, com sua família e amigos em Karbala. Todos os anos, em todo o Irã, companhias de teatro, amadoras e profissionais, reencenam o Drama de Karbala, ta'ziya dos trágicos acontecimentos de Karbala. Ao longo deste estudo, seguimos os dados e algumas considerações de Charles Virolleaud, em sua introdução ao drama de Karbala: Le Theâtre Persan ou Le drame de Kerbéla, Paris, Maisonneuve, 1950. Para a tradução da peça, valemo-nos do texto apresentado nessa obra. Seguimos também Jacob M. Landau Études sur le théatre et le cinéma arabes, Paris, Maisonneuve, 1965.

AIDA HANANIA
JEAN LAUAND

O teatro nunca foi arte de maior destaque entre os árabes e muçulmanos. Afora o teatro de sombras - que se atesta, no mundo árabe, desde o fim da Idade Média, por influência turca -, há poucas expressivas manifestações árabes dessa arte.

O teatro árabe atual tem suas raízes fundamentalmente no teatro europeu que adentrou o Oriente Médio como parte da influência ocidental, em meados do século passado.

Por outro lado, há um tipo de teatro, a Ta'ziya que é muito tradicional e cultivado em certos setores muçulmanos. Ta'ziya, literalmente “consolação”, é a transposição persa dos Mistérios medievais do Ocidente, embora deles se diferencie no espírito e na forma (é antes um remanescente de antigas práticas religiosas persas).

A peça ritual iraniana, sempre representada durante os primeiros dias do mês muçulmano de Muharram, que culmina com a festa da Ashura (10 de Muharram, em 2012: 24 de novembro), relembra, sobretudo, o massacre de Hussain e os infortúnios de outros membros da família de 'Ali. Procedente da literatura medieval, a Ta'ziya encontra sua máxima expressão em O drama de Karbala, cujas cenas iniciais, apresentaremos, em tradução, a seguir.

Naturalmente, como observa Landau, a leitura dessa Ta'ziya dá apenas uma pálida idéia da enorme comoção que tal peça exerce sobre a multidão de fiéis xiitas, seguidores de 'Ali, pai de Hussain, o mártir de O drama de Karbala.

As notícias repetem-se todos os anos. Um exemplo de 2011:

"Irã em transe

Festival de Ashura transforma país em gigantesco centro de devoção e é a essência da cultura xiita - Samy Adghirni de Teerã

O Irã parou ontem para homenagear o santo mais importante do xiismo, cuja morte por inimigos no ano 680 molda até hoje a identidade religiosa e cultural da maioria dos iranianos.

O feriado anual de Ashura, que se encerra hoje, transformou Teerã num imenso centro de devoção ao mártir imã Hussein Ibn Ali, neto do profeta Maomé. Cerca de 90% dos iranianos são xiitas.

Por toda a cidade foram colocadas bandeiras e faixas pretas em sinal de luto. As principais ruas foram tomadas por procissões de homens que simulam autoflagelo batendo nas próprias costas com correias de metal. Outros devotos jogavam os braços contra o peito em ritmo sincronizado. Mulheres, a maioria coberta com um véu preto que vai da cabeça aos pés, acompanhavam de perto as cerimônias.

Nas mesquitas, o som da pregação que saía dos alto falantes se misturava ao choro vindo tanto da ala masculina como da feminina.

Os cânticos relatam à exaustão como o imã Hussein e seus 70 combatentes foram mortos e mutilados por se recusarem a obedecer um governador da dinastia umíada em Karbala, hoje santuário xiita no Iraque.

Num terminal de ônibus ao norte de Teerã, atores rodeados por gente de todas as idades e classes sociais encenavam ao ar livre os últimos instantes de Hussein.

A morte do imã foi um dos fatores do racha entre muçulmanos sunitas e xiitas, que acreditam que Maomé só poderia ser sucedido por seus familiares. Hussein é hoje cultuado pelos persas, rivais históricos dos árabes, como um santo cujo sangue servirá para defender os injustiçados e oprimidos.

Muitos no país afirmam que a atitude de enfrentamento iraniano contra o Ocidente é inspirada pelas pregações do imã.

Historiadores também dizem que os ensinamentos de Hussein se refletem nos levantes históricos dos iranianos contra governos vistos como injustos -duas vezes contra monarcas no século 20 e, mais recentemente, contra o presidente Mahmoud Ahmadinejad. (...)"

Força Mística

O espírito de Hussein também é tido como uma força mística capaz de operar milagres. Em dias de Ashura, pais levam os filhos em cadeiras de rodas para receber bênçãos nas mesquitas e fazem promessas -atos impensáveis para os sunitas, ramo majoritário do islã.

Muita gente se aglomera em frente a casas ou lojas onde comida é distribuída gratuitamente por acreditar que alimentos abençoados pela Ashura deixam o organismo imune contra doenças. (Folha de S. Paulo, 6-12-11)"

Hussain, para os xiitas, ocupa lugar extremamente importante. A doutrina xiita, fundada na interpretação alegórica do Alcorão, prescreve muito poucas crenças, centradas na idéia de que todos os homens são pecadores e, portanto, destinados ao inferno. Podem, porém, ser resgatados, não por esforços próprios, mas por meio de um redentor. Ora, Hussain, filho de 'Ali, é esse redentor.

O enredo da peça é pura emoção, dramalhão bem ao gosto das massas, potenciado ao extremo pela repetição e insistência - sob diversos ângulos - de um massacre cruel e injusto do grande líder religioso.

Enquanto teatro, a ação está longe de vivenciar os momentos presentes classicamente numa tragédia, que incluem a exposição, desenvolvimento e clímax de um conflito (propulsionados por oposição de vontades).

A ação de O drama de Karbala, pelo contrário, restringe-se ao monótono relato linear, resignado e lamuriento, das desventuras da família do Profeta, tendo como momento paroxístico a decapitação de Hussain.

Sobre a representação da Ta'ziya, diz Landau: “É representada com maior ou menor pompa e acompanhamento musical nos teatros, nas mesquitas ou ao ar livre. Freqüentemente, o cenário - entre realista e simbólico - é extraordinariamente rico; o sangue é real, mas a palha toma o lugar da areia. Além disso, há um exagero nos efeitos cênicos, como por exemplo, quando a cabeça decepada de Hussain, vertendo sangue, continua recitando versículos do Alcorão”.

Acrescente-se a isto, a extrema sinceridade dos atores e a credulidade das massas e compreender-se-á que as cenas mais irreais sejam, para eles, convincentes. Tenha-se em conta que essa encenação teatral é apenas um dos elementos das celebrações da Ashura. Ela vem acompanhada de pregações e rituais religiosos que também ocorrem num crescendo ao longo de dez dias, culminando esses eventos com a representação da paixão do Imam Hussain. Daí o incrível impacto emocional que O drama de Karbala exerce sobre a multidão; a comoção chega a extremos como "o de os próprios atores, desfeitos pela dor, se suicidarem".

Para situar o leitor, com vistas a uma melhor compreensão do alcance e do significado de O drama de Karbala, rememoraremos alguns dados históricos.

Muhammad morreu em Medina, em 8 de junho de 632 e não deixou filhos homens, que pudessem ser candidatos naturais a sua sucessão. Assim, a incipiente e ainda frágil comunidade muçulmana, acéfala, deparou-se, por primeira vez, com um problema para o qual nem o Profeta nem o Alcorão davam solução8.

Assim, era natural que a questão da sucessão se polarizasse entre 'Ali - casado com Fátima, filha do Profeta - e Abu-Bakr - o primeiro a converter-se ao Islam e um dos sogros de Muhammad (polarização que, de algum modo, projeta-se, ainda hoje, na divisão sunitas/xiitas).

Após longa e apaixonada disputa (dada a falta de critério de sucessão e o peso dos títulos de cada um dos dois califas em potencial), o partido de Abu-Bakr saiu vencedor (seguido, após sua morte, por 'Umar e Uthman. 'Ali, quarto califa, ocuparia o cargo somente em 656).

Como faz notar Virolleaud: “se esta ordem de sucessão dos primeiros califas, que é a ordem real, histórica, é admitida por todos os árabes, não o é pelos muçulmanos do Iran. A seus olhos, com efeito, é 'Ali que é o verdadeiro sucessor de Muhammad, e Abu Bakr, 'Umar e Uthman não são mais do que usurpadores”.

O drama de Karbala mistura o real e o legendário: Hussain teria se sacrificado pela salvação - temporal e, sobretudo, eterna - de seu povo. Se foi “degolado como um cordeiro”, foi por obediência aos desígnios eternos de Deus. Assim, para os xiitas, Hussain não é só um combatente valoroso, mas, principalmente, “o mártir”. Naturalmente, a lenda encarregou-se de amplificar e mitificar o significado histórico de Hussain.

Antes de apresentar as cenas iniciais de O drama de Karbala, resumimos, aqui, as informações aportadas por Virolleaud, como subsídios para a leitura da peça.

Hussain tinha cerca de seis anos, quando Fátima, sua mãe, morreu. Casou-se com a filha do rei dos persas e teve - deste e de outros casamentos - vários filhos e filhas.

Aos cinqüenta e cinco anos, partiu com a família para o Iraque, com o intuito de retomar o poder ao Califa de Damasco, Yazid, filho de Muawia, fundador da dinastia omíada.

Mal chegado a Kufa, o pequeno grupo de Hussain viu-se diante do poderoso exército de Damasco, na planície de Karbala. Hussain encontrava-se desamparado (seus partidários foram mantidos, por cerco, longe do campo de batalha, ou caíram pela sede ou golpes dos inimigos).

As cenas passam-se no momento em que Hussain está só com sua mulher (a princesa persa), suas duas irmãs: Zainab e Kulsum, seu filho mais novo, sua filha pequena, Sukaina e seu sobrinho Abdallah, filho de Hassan. Diante deles, o inimigo: o exército de Damasco, comandado por Ibn Saad e Shamr, representado como inimigo pessoal de Hussain.

É pelo diálogo entre Ibn Saad e Shamr que começam nossas patéticas cenas.

O Drama de Karbala - a Paixão do Imam Hussain


(trad. de Aida Hanania e Jean Lauand)

SHAMR: Ouve-me, caro Ibn Saad! De toda a família do manto9, resta apenas Hussain, filho de 'Ali. Todos os outros confessaram sua fé e morreram, feridos pela espada e pelo punhal. Agora chegou a vez daquele a quem chamam a “luz dos olhos dos dois Mundos10”. Que ele sucumba, pois, aos golpes de nossos sabres e lanças. Que seus filhos e todos os de sua casa sejam feitos prisioneiros. E que nós nos apoderemos de todas as pombas de seu harém! E apresentar-nos-emos cheios de alegria a Obeid11, que se regozijará ao saber da morte do filho de Fátima.

IBN SAAD: Que dizes, infiel! Como poderia eu tomar parte no assassinato de Hussain? Não basta o que já fizemos? Já não tenho dificuldades bastantes para explicar-me no dia do Juízo? Já não são suficientes as abominações que cometemos? Não basta que Abbas tenha sofrido o martírio, que as mãos de Kassem tenham se manchado com o sangue de Ali-Akbar? Por todos estes crimes que cometeste, o edifício da religião está ameaçado de desmoronamento. E ainda queres voltar-te contra Hussain, filho de 'Ali. Que maquinas contra esse infeliz, absolutamente abandonado pelos seus, nesta planície?

SHAMR: Fica sabendo, ó bravo Ibn Saad, que é necessário que te desfaças de Hussain; se recusares, voltarás a Kufa e serás reconduzido ao comando das tropas.

IBN SAAD: Que seja cortada tua língua, ó cão! Ó tirano, que palavras acabas de pronunciar? Cita-me um versículo do Alcorão, que te autorize a combater Hussain! Acaso Deus ordenou que fizéssemos guerra a Hussain? Não é Hussain a chama da casa do Profeta? Não é ele a flor do jardim de Muhammad? E Fátima, sua mãe, não é a melhor das mulheres? Não foi o Anjo Gabriel em pessoa que se encarregou de pentear-lhe os cabelos? Acaso podemos renunciar à nossa parte no Paraíso, para obedecer às ordens de Obeid ben Zyad? Queres sacrificar a religião pelo teu ódio?! Não! Mais vale fazermos a paz com o Rei da Religião, ó homem indecente e ímpio. Acabemos com esta guerra abominável e que Hussain retorne a Medina sem ser molestado.

SHAMR: Meus olhos e meu coração não estarão saciados de mortes e matanças, até que Hussain caia, trespassado pela lança e pela espada; até que Zainab e Kulsum não estejam sob meu domínio como prisioneiras e até que eu derrame o sangue de Hussain.

IBN SAAD: Lembra-te de como o Profeta gostava de beijar Hussain. Será que devemos transgredir as leis de nossa religião e decapitar Hussain? Será que devemos conduzir a Damasco como cativas as irmãs de Hussain? Será que podemos esquecer tudo que de bom devemos à mãe de Hussain?

SHAMR: Pois bem! Eu hei de matar o filho do Príncipe dos homens e dos Djinns. Eu, que não tenho nenhuma consideração pela mãe dos dois Hassan12. Onde estão as mulheres do harém de Hussain? Digam a Hussain que saia, pois só sua morte poderá acalmar meu revolto coração.

ZAINAB: Meu Hussain dorme, ó perverso infiel! Não o despertes! Devagar, devagar! Hussain dorme, ó perverso infiel! Pelo Profeta do Oriente e do Ocidente, devagar, devagar!

SHAMR: Repito, ó filha do Profeta de Deus. Vai e diz a Hussain, filho de 'Ali: “Ó meu amo, é chegada a hora de considerares a morte”. Dize-lhe que não é hora de dormir. Quanto a ti, levar-te-ei a Damasco e serás tão maltratada, que todos se lamentarão pela tua sorte.

ZAINAB: Ele dorme, ó indecente! O filho de 'Ali Morteza 13. Não grite tão alto, pelo amor de Deus, devagar, devagar! Vou lhe repetir, ó maldito, as tuas palavras. Deixa-me despertá-lo. Silêncio, silêncio! (A Hussain:) Ó irmão, Shamr está aqui! Acorda, eu te conjuro! Meu véu já se torna negro só com a idéia de tua morte. Acorda! Enquanto dormes tão suavemente, levam-me como prisioneira. Ó irmão, vê como sou infeliz! Acorda! O exército inimigo já está aqui, ó rei sem cavaleiros e sem tropas! Eis-me cercada pelo inimigo, acorda!

HUSSAIN: Estava tendo um sonho. Eu estava numa pradaria verdejante, e tu me despertaste... E havia encantadoras huris, um parque e castelos, e tu me despertaste...
De um lado, meu avô14, o melhor dos homens; do outro, meu pai, 'Ali Morteza, e tu me despertaste... Minha mãe, vestida de preto, sentada, chorava; entoava um canto fúnebre pela morte de uma pessoa querida, e tu me despertaste... Meu avô dizia: “Hussain vai morrer e Zainab será levada em cativeiro”, e tu me despertaste...

ZAINAB: Enquanto tu dormias, meu irmão, Shamr esteve aqui e disse: “Levarei Zainab a Damasco, apesar de seus gritos e gemidos”. Oh, como temo os infortúnios do destino! Como temo, querido irmão, ter de para lá partir e sofrer!

HUSSAIN (orando): Ó destino! Os campeões da religião15 já sucumbiram a teus golpes! Ainda não estás satisfeito? Para qualquer lado que me volte, não vejo amigo algum que me possa socorrer. Tudo que ouço são lamentos de infelizes torturados pela sede. E como é penoso pensar que minha irmã será levada em cativeiro! Só de imaginar, desfaleço. E minha pobre Sukaina, será levada também ela? Oh! Vertendo lágrimas de sangue é que entrarei nos jardins do Paraíso.

ZAINAB: Ah! pudesse eu morrer por ti, tu que és a luz destes meus olhos em pranto! Só de ouvir este teu pranto, minha alma se desfaz. Tuas palavras exalam o acre perfume das separações. O sangue jorra de meu coração, ao te ouvir falar assim. Por 'Ali, o amigo de Deus, meu ilustre pai! Que tua benéfica sombra possa sempre estender-se sobre minha cabeça.

HUSSAIN: Chegou, ó minha irmã, o momento que me foi reservado pelo destino, é a hora de partir. Saudarei nossa mãe por ti. Devo confessar minha fé, tombando sob os golpes desses traidores. Pela tua alma, não deixes de cuidar de Sukaina. E se - Deus não o permita - um tirano estender a mão contra minha pobre criança, perderei toda a paciência e queixar-me-ei, amargamente, a meu avô e a meu pai que vou encontrar no Paraíso.

ZAINAB: Não fales assim, não fales assim, tu por quem eu daria a minha vida. Deus há de impedir isso! O Céu não permitirá uma tal injustiça para com a família do Profeta. Mas, se tu perdes a vida, só restará a Zainab morrer, já que sua mãe a pôs no mundo só para sofrer e chorar.

SUKAINA: Pai querido, uma gota d'água, pelo amor de Deus! Meu coração, este pobre passarinho, jaz exaurido em meu peito. Trata de me encontrar, pai querido, uma gota d'água, pois minha alma, atormentada pela sede, está em meus lábios, a ponto de voar. Vê em que estado se encontra tua filha; tua criança está extenuada. Há algo que eu desejo tanto, mas não sei onde encontrar remédio para meu mal.

HUSSAIN: Filhinha, tua dor é imensa, e tens já o que lamentar diante do destino! Que não faria eu pelo amor de teus olhinhos em pranto? Que não faria eu por ti e pelo teu pobre coraçãozinho? Levanta-te e cessa esses gemidos que avivam, ainda mais, a ferida de meu coração. Disseste que há algo que desejas; por que não pedes a teu pai?

SUKAINA: O que eu desejo é um pouco de água. Paizinho querido, acha para mim, acha para mim. Paizinho, meu coração queima de sede, dá-me água: é uma boa ação que Deus recompensará.

HUSSAIN (a Zainab): Minha pobre irmã, vá e traz-me as armas. É hora de me preparar para o combate contra os rebeldes. Talvez, quando eu estiver lá em cima, junto às fontes celestes, poderei lançar um pouco de água sobre o fogo que devora estas criancinhas.

ZAINAB: Ó, meu querido e infeliz irmão! Como, sem ti, encontrarei forças para suportar a vida! Que será de tuas irmãs, dize-me. Sem ti, não posso viver neste mundo.

Ó rei, não parte para esse campo de batalha. Como temo que sejas martirizado por nossos inimigos!

HUSSAIN: Ó minha pobre irmã! Por quanto tempo ainda, pelo teu amor por mim, terei teus conselhos? Bem sei que este exército de traidores não me deixará escapar. Tu, partirás em cativeiro. Terás de partir em luto por mim. Chega a hora de me veres sucumbir ao punhal. De longe, gritarás: “Hussain, Hussain!” e eu, tudo que poderei fazer, será levar para o túmulo, teus lamentos. E então, tomarás conta de Sukaina; defendê-la-ás contra a adversidade. Não permitas que dela se apodere o desespero. Que ninguém moleste esta criança!

ZAINAB: Ó meu Deus! Será minha mão decepada e a alma de Zainab arrancada a seu corpo! E vós, da casa do Profeta, formai um círculo para proteger a chama da família de 'Ali. E agora, recebe, ó irmão, que és para mim mais precioso do que o sangue de meu coração, recebe de minhas mãos, tuas armas.

HUSSAIN: Ó 'Ali, protege-nos, Ó 'Ali, sê fiel a tua promessa. Ó 'Ali! Tua família, ó 'Ali, está indefesa, abandonada ao inimigo, entregue às piores angústias!

ZAINAB: Ó pai, ó Leão invencível, vem! Herdeiro do sopro miraculoso do Profeta, vem! Nossa situação é atroz. Se é para te apiedares de nós, esta é a grande hora!

HUSSAIN (dirigindo-se a sua gente): Ó infelizes, não vos desfaçais em pranto! Eis que vou a cavalo encontrar esses traidores. Pedir-lhes-ei, ó minha irmã, um gole d'água para minha pequena Sukaina, que tanto sofre. (Dirigindo-se à gente de Ibn Saad:) Ó miseráveis, inescrupulosos, chamai Ibn Saad à minha presença e que venha só!

UM SOLDADO DO EXÉRCITO ÁRABE (a Ibn Saad): Saiba, ó Ibn Saad, que Hussain está no campo de batalha, só; e deseja falar-te.

IBN SAAD: Salve, ó luz dos olhos de Fátima! Possa eu te servir, ó ornamento do trono de Deus! Que desejas? Estou às tuas ordens, pronto para cumprir exatamente a tua vontade!

HUSSAIN: Vê, traidor maldito! Eis que toda a família de Fátima é devorada pela sede, e eu, Hussain, que o Profeta gostava de carregar sobre seus ombros, vejo-me reduzido a beber em vez de água, o sangue que corre de meus olhos. Neste país miserável, há água em abundância para os animais selvagens e para os pássaros; mas as mulheres de minha casa morrem de sede. E toda a água do mundo tinha sido dada como dote para minha mãe16. Por que devemos ser privados da herança de Fátima? Dá, pois, um pouco d'água à família do Profeta; pois seu coração está em chamas e seus lábios estão ressecados.

IBN SAAD: Ó lua nova do céu da nobreza! Hoje a água está formalmente interditada para ti. Yazid acaba de me enviar ordens de não dar de beber, nem de comer, aos filhos de Mustafa. É, portanto, impossível dar-te sequer uma gota. E, além do mais, devo deixar tua santa presença.

HUSSAIN (pedindo socorro): Ó Céu, teus golpes...! Não te abala, como a mim, ouvir as lamentações destes pobres exilados e destas criancinhas? Deverias ter vergonha das lágrimas que fazes Fátima derramar. Tem pena, então, dos infelizes órfãos de Fátima! Em tua injustiça17, deixaste-os sem ajuda e sem sustento. E eu, eu me encontro só e desamparado nesta planície, repleta de emboscadas. Encontro-me só ante um exército de inimigos. Acaso não haverá, no mundo dos homens e dos Djinns, alguém temente a Deus, capaz de vir em meu socorro? Certamente, meu avô dar-lhe-á uma bela recompensa no dia do Juízo.

ZAAFAR18: Salve, ó estrangeiro, atormentado pela sede nas planícies de Karbala! Salve, ó prisioneiro do exército de perdição! Em que estado te encontro eu! O quê! Teus olhos, marejados de lágrimas? Deus não criou os homens e os Djinns para vos servir? Por que teus amigos foram martirizados por esses tiranos? Por que teu exército foi desbaratado? Por que os corpos de teus irmãos palpitam em seu próprio sangue?

HUSSAIN: Quem és tu, que nos saúdas, abandonados que estamos por todos? Por que honras a família de Muhammad, o Eleito? Bem se pode ver que não fazes parte desta corja. O perfume da fidelidade emana de teus cabelos.

ZAAFAR: Possa eu te servir de resgate, ó príncipe do reino da infelicidade! Sou teu servo. Pertenço ao povo dos Djinns do poço de Elem. Quando teu nobre pai arrancou nosso país às mãos dos inimigos, pôs-me à frente do exército dos Djinns e, desde então, estamos inteiramente submetidos a sua vontade. Ora, os Djinns acabam de me informar sobre teu infortúnio e vim em teu socorro. Que minha cabeça te sirva de resgate! Todo o exército dos Djinns, ó rei, está sob as minhas ordens. Estão todos os Djinns aí na planície. Venho em teu socorro e decidi sacrificar-me por tua causa. Permite, pois, que eu parta para a guerra santa e que minha cabeça seja teu resgate! Permite que eu realize o desejo de meu coração.

HUSSAIN: Sê bem-vindo, belo Zaafar! És verdadeiramente um amigo da família do Profeta, mas não podes, ó bem-aventurado, tomar parte nesta luta, pois vós, os Djinns, sois invisíveis aos olhos dos homens. Se lutásseis com eles, não seríeis vistos por estes traidores. Seria um combate desleal e os que morrem pelo Amigo, não devem recorrer a tais estratagemas.

ZAAFAR: Ó rei dos Djinns e dos homens, não estás com excesso de escrúpulo, em se tratando de infiéis como estes? Tu és um estrangeiro neste país, não tens ninguém que te socorra e estes mandriões estão obstinadamente determinados a te matar. Muito bem! Para te agradar, revestir-nos-emos de forma humana e, assim, poderemos nos sacrificar por ti, ó príncipe, e combateremos até o martírio, a fim de que no dia do Juízo, teu avô perdoe nossas faltas19.

HUSSAIN: O Deus dos dois Mundos, ó Zaafar, está contente convosco; já que acudistes a meu apelo, Ele vos ajudará. Deus te dê a recompensa que mereces: que no dia da Ressurreição, o fogo do Inferno não te atinja. Quanto a mim, meu coração está já farto das agitações deste mundo; minha vida chegou a seu termo. Retornai agora a vosso país e deixai que eu adentre o caminho que me conduz ao Amigo.

ZAAFAR: Ó Deus, sê testemunha de que eu vim aqui para tomar parte na guerra santa, mas que o Imam deste mundo não me concedeu a permissão que lhe pedi. (A Hussain:) Ó rei, possa eu te rever um dia! Agora, porque assim o queres, eu parto. Deus te guarde! (Aos Djinns:) Ó Djinns, chorai por Hussain, o perseguido, afastado que está de seu avô e de seu pai, nesta planície, onde grassa o ódio. Tínhamos vindo aqui com o desejo de ajudá-lo, mas nossa esperança foi frustrada. É preciso partir, sem nada ter podido fazer.

HUSSAIN (em oração): Ó Deus poderoso e misericordioso, Senhor das graças, vê a que estado estou reduzido, agora que o inimigo me cerca por todos os lados. Considera, ó Deus único e misericordioso, que, em Karbala, cumpri, com toda a lealdade, meus compromissos. Por misericórdia, ó juiz supremo, sê tu também fiel à tua promessa, no dia do Juízo. Ó Criador, Senhor benevolente, pelo preço de meu sangue, perdoa o povo de meu avô, no dia da Ressurreição.

SHAMR: Ó Hussain, que vens fazer nesta planície? Acaso queres morrer, ó filho querido dos dois Mundos? Segue o meu conselho: renuncia à tua luta, reconhece a autoridade de Yazid e, assim, poderás tranqüilamente dirigir-te à província que bem te aprouver. Se, pelo contrário, recusares a submeter-te, ó senhor, acomete a batalha, dirige-te ao combate.

HUSSAIN: Dize-me, Shamr, como o neto de Muhammad, o eleito, poderia prestar juramento de obediência a um infiel maldito? Não, não me peças para reconhecer a autoridade de Yazid. Só peço, ó celerado, que me dês um pouco de tempo para que eu possa despedir-me das pessoas da Casa da Pureza. E, então, irei encontrar-te no campo de batalha, expondo minha cabeça e minha alma por amor dAquele a quem amo.

SHAMR: Assim seja! Vai, ó luz dos olhos dos homens e dos Djinns; despede-te de tua família e chorai bastante juntos, pois já não os tornarás a ver e só vos reencontrareis no dia do Juízo.

HUSSAIN: Adeus, adeus, adeus família de Yasin!20. Adeus, queridas mulheres de lábios abrasados pela sede, pálidas como a lua, astros que resplandecem no zodíaco do luto! Chegou a hora em que, com os olhos rasos de lágrimas, devo deixar-vos com o coração cheio de angústia. Ó infelizes, apegai-vos aos véus em vossos gemidos, envolvei-vos com lenços em vosso pranto! Mas minha recomendação suprema, ó Zainab, é a de cuidar de Sukaina.

ZAINAB: Ó, irmão querido, como Zainab gostaria de servir de resgate a teus olhos em pranto! Que pretendes fazer? Oh, pudesse eu sofrer em teu lugar! Que intenção abrigas, ó espírito de minha alma?

HUSSAIN: Vem, vem, ó imagem viva de minha mãe, tu que hás de cuidar de meus órfãos. O dia da reunião passou e é chegada a noite da separação. O Céu impõe a ti, a dor que causa a toda alma que ama: a dor da separação. Chegou o momento de oferecer minha vida, ó irmã; aprontai o véu da dor e o lenço do pranto; preparai-vos para partir em cativeiro, pois hoje é o dia em que tombarei no campo de batalha e meu nome será inscrito no livro dos mártires.

ZAINAB: Pudesse eu servir de resgate a teus olhos, de onde emanam pedras preciosas, ó tu, que estás imerso em aflições! Se - não o queira Deus! - desaparecesses, o que seria de Zainab? Quando já não estiveres entre nós, com quem iremos dividir nossas dores? Quando estivermos de luto por ti, quem cuidará de nós? Não pode meu frágil corpo suportar tanto pesar. Para onde, ó pobres mulheres, havemos de ir nesta planície, quando todos os homens da família estiverem mortos?

HUSSAIN: Ó minha irmã, exilada no deserto de Karbala, és para nós, abandonados por todos, a imagem viva de minha mãe. Todos de nossa família já partiram precocemente para o Paraíso; e agora é a minha vez de confessar a fé. Ouve, pois, com toda a alma, minhas últimas recomendações, tu, que tanto sofreste, ó minha irrepreensível irmã. Que possa teu peito suportar a dor. Que as mulheres portem o véu sobre a cabeça, pois ele é o guardião de sua castidade; que homem algum, alheio à família, possa ver seu rosto. Não permita Deus que, após minha partida, sejam meus órfãos feridos, sobretudo o ilustre Zein al Abedin, que está doente e que já se desfaz em prantos por mim e está a arder de sede. Não deixe de velar por Sukaina; que ninguém faça mal àquela que, com tanta alegria, estreitei em meu peito.

ZAINAB: Possa eu servir-te de resgate, ó meu irmão. Por Deus, não vás ao encontro desses desavergonhados de Kufa! Fica! Já não caíram, com a cabeça partida, Kassim, Abbas e Ali Akbar sobre a planície de Karbala? Não os viste tombados no campo da carnificina? Não estreitaste em teu peito, o corpo dos mártires? Não tenho forças, Deus é testemunha, para suportar o espetáculo de teu cadáver estendido sobre a planície.

HUSSAIN: Mas, acaso não prometi ao Criador que, por amor a meu Amigo, daria a minha vida sem lamentações? Não assumi junto com meu avô, diante do Criador, Senhor das graças, o compromisso de entregar minha vida em Karbala e, desse modo, tornar-me o Redentor de todos os culpados no dia do Juízo?

ZAINAB: Irmão querido, como - dize-me - poderia eu resignar-me com isso? Queira Deus que nunca veja teu corpo tombar, coberto de sangue! Como poderia suportar essa cena? Que irmã teria a coragem de ver o corpo de seu irmão banhado em sangue?

HUSSAIN: Lembra-te de que eles assassinaram teu pai! Conseguiste resignar-te com a morte de tua mãe! Não te desesperes, pois! Já não te conformaste com a morte de Hassan? Não te desfaças, pois, em lágrimas, ante a idéia de que vou morrer e pensa, após minha partida, em cuidar destes órfãos.

ZAINAB: Ó irmão querido, quando partiu meu pai, Hassan tomou seu lugar à frente da família. Quando Hassan se foi, tu tomaste o lugar dele. Mas, depois de ti, irmão amado, quem nos protegerá? Que farei? A quem recorrer?

HUSSAIN: Ó minha irmã, como és infeliz! Quando me tiverem tirado a vida, a misericórdia divina estenderá sobre ti, o manto da proteção. O ilustre Zein al Abedin será teu protetor. Ó imagem viva de Fátima, deixa-me ir e lembra-te que de tua vida depende a vida de Sukaina, minha filha.

ZAINAB: Ó rei sem exército, abandonado por todos, teus suspiros são como chamas que me queimam a alma e teus gemidos fazem-me perder a razão. Vê os corpos puros de Kassim e de Akbar, desfeitos em mil pedaços; vê as lamentações das crianças que se elevam da terra à abóbada azul. Ó Deus, trago a alma sobre meus lábios, prestes a abandonar-me. Ouve o apelo que te dirijo do fundo de minha desgraça!

HUSSAIN: Pobre irmã! Levanta a cabeça! Só de te ver assim, meus olhos vertem lágrimas de sangue. Levanta a cabeça! Ai! E isto é só o começo de tuas provações. É o primeiro sofrer de tua primeira dor. Não deverás partir em cativeiro? Não serás arrebatada pelo exército do ódio? Não te arrastarão a Damasco onde, com a cabeça descoberta, serás confundida com a multidão?

ZAINAB: Filho amado de Fátima! Hussain, meu querido irmão! Pudesse eu ser sacrificada em teu lugar! Não creias, ó príncipe, que eu possa continuar a viver. Não cessarei de golpear-me a cabeça e o peito sobre teu corpo. Deus é testemunha de que chorarei tanto, que o espetáculo de minha dor arrancará lágrimas até das estrelas e dos planetas.

HUSSAIN: Chora e geme, pobre irmã. Sei o quanto sofres. Mas como poderia eu escapar a estes infiéis? São tão cruéis que empenhar-se-ão em acabar comigo, enquanto a alma animar-lhes o corpo.

KULSUM: Ó irmão, que Kulsum ama como sua própria vida! Não mais verei o róseo de tua face? Teus gemidos abrasam-me o coração. Teus suspiros devastam minha alma como um fogo devorador. Não basta termos pranteado Abbas, Kassim e Akbar? Não é o bastante para chorar até o fim de nossos dias? Não vás te expor aos golpes destes homens de coração duro, pois bem sei que sucumbirás.

HUSSAIN: Ó minha pobre irmã Kulsum, que o destino tratou tão duramente, que resposta devo dar-te, ai! Quando eles tiverem me martirizado, que humilhações estes malvados infligirão à família do Profeta? Terás de mendigar o pão, de porta em porta e errar, com a cabeça descoberta, pelas cidades. Mas não desfigures teu rosto, ó irmã querida. Tem coragem e sê paciente.

SHEHRBANU: Ó tu, imagem viva do leão de Deus!21, seja eu teu resgate! Hussain, tu, cujo fígado está ressequido pela sede! Ó luz dos olhos de Fátima! Sou eu, tua serva, a infeliz Shehrbanu. Arrancada de meu país natal, abandonada por todos, sem ter ninguém para me defender a não ser tu! Ai, que fazer nesta terra de perdição, cercada que estou pelo exército dos infiéis, ó rei dos homens piedosos.

HUSSAIN: Aproxima-te, pobre Shehrbanu, aproxima-te ó minha infeliz companheira! Meu coração arde, quando penso em teu desamparo! Tem paciência e não gemas assim, pois dia virá em que o Deus do Universo te compensará amplamente por tuas dores.

SHEHRBANU: Ó príncipe sem exército, flor cultivada nos jardins de 'Ali, o amigo de Deus, o vitorioso! Lembra-te de que tua família faz parte da tribo do Profeta; são todos netos do enviado de Deus e nenhum desses tiranos terá a audácia de maltratá-los. Quanto a mim, uma estrangeira, só tenho a temer, ó rei dos homens piedosos!

HUSSAIN: Minha fiel amiga, companheira da minha juventude, como és infeliz! Ai, eu devo tombar despojado de armas sobre a planície e meu corpo abatido tingir-se-á de vermelho como uma rosa. Meu corcel, privado de seu cavaleiro, manchará seu corpo com sangue; derramará lágrimas pela injustiça do destino e relinchará em sinal de luto. Retornará ao acampamento e deter-se-á ante a tenda. E então, minha fiel amiga, monta-o e mete-lhe a rédea ao pescoço. Irás para onde Deus o leve e, assim, escaparás à miséria e ao cativeiro.

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O texto integral e anotado deste ensaio, originalmente conferência no "I Encontro Cemoroc Educação: Os Orientes" (São Paulo, 21-12-11) pode ser acedido nesta ligação:
http://www.hottopos.com/collat10/4758AidaAshura.pdf
Aida Hanania é Profa. Titular (aposentda) da FFLCHUSP.
Jean Lauand é Prof. Titular FEUSP (aposentado) e do PPGE da Univ. Metodista de São Paulo. jeanlaua@usp.br

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