Ladrão, o cão vadio de Almada
Ainda volto muito à cidade de Almada, do outro lado do rio Tejo, onde vivi alguns anos na adolescência. É um lugar muito diferente daquele que conheci em miúdo.
Os comunistas foram destronados do poder local, onde estavam desde o 25 de Abril de 1974, creio, algo que julguei nunca ir ver em vida; um moderno elétrico percorre toda a cidade, roubando espaço aos carros e tornando o trânsito infernal durante o dia todo; não há construções novas - tem alguns dos mais bonitos prédios residenciais do país, desfigurados com as malditas marquises que cobriram todas a s varandas -, agora um tanto decadentes e totalmente cobertos de graffitis abomináveis; mas há mais árvores, mais espaços verdes, passeios mais amplos e bem planeados; o comércio tradicional não morreu de vez, como se temeu que fosse acontecer há uns anos; a cidade continua a ser amiga do teatro, da cultura, sempre com muitos eventos a decorrer ao longo do ano; e está incrivelmente mais cosmopolita: brasileiros por todo o lado, mercearias de “indianos” até dizer chega, nepaleses, jovens europeus loiros que vieram trabalhar para os “call centers” a viver por ali, franceses até mais não. E tal como no meu tempo de miúdo, Almada tem um cão vadio oficial, o Ladrão, que estão a ver nas foto.
Há uns dias deixei o carro em Cacilhas e resolvi percorrer toda a cidade a pé, até ao Pragal, onde fui jantar com amigos. Estava uma noite quente e agradável, com uma brisa maravilhosa que vinha do rio, e fiz os dois quilómetros a pé nas calmas. Ao longo do trajecto tive a companhia do Ladrão, que tinha ido passear a Cacilhas e talvez ver os barcos ao luar. Voltava agora para algum lugar na cidade, onde deve pernoitar. Quando andava na faculdade havia um cão vadio que fazia este mesmo trajecto ao longo das avenidas principais da cidade, todas as manhãs. Chegado a Cacilhas, o cão metia-se na fila para entrar nos barcos que atravessam o Tejo - não lhe era cobrada passagem -, ia passar o dia em Lisboa, e depois voltava ao fim da tarde a Almada. Eu vi isto com os meus olhos durante anos e o assunto foi uma vez capa do “Tal & Qual”, um semanário popular nos anos 80.
O Ladrão é um dos cães mais bonitos que vi. Já o tinha visto uma vez, antes, quando um amigo mo apontou na rua e falou da sua história. Deve ter agora uns 10, 11 anos. No Facebook, a página Amor Rafeiro descreve-o assim: “LADRÃO – O CÃO DE QUEM TODOS GOSTAM MAS NINGUÉM QUER..." (https://www.facebook.com/AmorRafeiro/posts/366064796887366:0)
“Este é o Ladrão, um cão cuja história é igual à de tantos outros. Nasceu e cresceu nas ruas entre o abandono e a negligência de quem foi sendo seu tutor ao longo do tempo. Fruto de uma estranha mistura de raças, foi desde cedo um cão apontado pela sua beleza e porte e é de facto lindo. Nos últimos anos tornou-se famoso, até uma página tem no facebook (https://www.facebook.com/ladrao.almada). Todos o admiram e gostam de tirar fotos com ele. Todos apreciam vê-lo a passear pelas ruas da cidade que o viu crescer, mas ninguém o acolhe de forma definitiva… De todos os que olham para ele, até agora ninguém percebeu que um animal tem necessidades diárias que necessitam de ser satisfeitas, não é um mero adereço da cidade. Por outro lado, ele não caminha para novo, muito pelo contrário. Não se sabe ao certo a sua idade, mas calcula-se que tenha cerca de 6, 7 anos. Mais tarde ou mais cedo irá apresentar os problemas normais de qualquer idoso, humano ou não.Na verdade o Ladrão tem sido feliz assim. Vai tendo abrigo ocasional e algumas pessoas vão tratando da sua alimentação. Embora a lei portuguesa não preveja a existência de “cães de rua” ou “cães errantes”, há uma certa tolerância para estes casos desde que os animais sejam cuidados de forma regular e com responsa bilidade por um grupo de pessoas, e desde que não intimidem ou ataquem pessoas ou outros animais.”
A página queixa-se que o Ladrão já matou uns gatos das colónias da cidade - Almada tem gatos por todo o lado! “Uma vez que o Ladrão se tornou um perigo para outras criaturas", escrevem, "a lei determina que tem que ser capturado e levado para o canil, o que mais tarde ou mais cedo vai acabar por acontecer. Por isso precisamos de arranjar com urgência um tutor responsável para ele. Terá que ser alguém com paciência e conhecimento do comportamento canino, alguém que o ame, já que até agora ninguém o amou o suficiente para se dedicar a ele. Alguém que o ensine a andar à trela na rua e que lhe dê todos os cuidados que ele necessita e merece”.
O post é de 2014. Parece, pois, estar tudo na mesma. O Ladrão continua a vagabundear pela cidade. Não tem coleira, e possivelmente também não tem dono. Parece saudável, bem alimentado e feliz. Quem tomará conta dele? É frequente os almadenses fazerem-lhe festinhas na cabeça e tirarem selfies. Quis fazer o mesmo. O cão parecia bem disposto mas não particularmente sociável, e não repondeu ao meu “Psh, Psh”, que, se calhar, é um chamamento mais adequado para gatos. Ignorou-me, mais ou menos, e seguiu em frente. Foi comigo (ou eu fui com ele) quase até ao Centro Comercial Faraó (o Faraó ainda existe! Com aquelas réplicas do sarcófago do Tutankamon no corredor! Que memórias), a meio da cidade. Ali chegado, mudou de direcção rumo à escola Emídio Navarro, saíu da avenida e desapareceu pela rua mal iluminada.
Os comunistas foram destronados do poder local, onde estavam desde o 25 de Abril de 1974, creio, algo que julguei nunca ir ver em vida; um moderno elétrico percorre toda a cidade, roubando espaço aos carros e tornando o trânsito infernal durante o dia todo; não há construções novas - tem alguns dos mais bonitos prédios residenciais do país, desfigurados com as malditas marquises que cobriram todas a s varandas -, agora um tanto decadentes e totalmente cobertos de graffitis abomináveis; mas há mais árvores, mais espaços verdes, passeios mais amplos e bem planeados; o comércio tradicional não morreu de vez, como se temeu que fosse acontecer há uns anos; a cidade continua a ser amiga do teatro, da cultura, sempre com muitos eventos a decorrer ao longo do ano; e está incrivelmente mais cosmopolita: brasileiros por todo o lado, mercearias de “indianos” até dizer chega, nepaleses, jovens europeus loiros que vieram trabalhar para os “call centers” a viver por ali, franceses até mais não. E tal como no meu tempo de miúdo, Almada tem um cão vadio oficial, o Ladrão, que estão a ver nas foto.
Há uns dias deixei o carro em Cacilhas e resolvi percorrer toda a cidade a pé, até ao Pragal, onde fui jantar com amigos. Estava uma noite quente e agradável, com uma brisa maravilhosa que vinha do rio, e fiz os dois quilómetros a pé nas calmas. Ao longo do trajecto tive a companhia do Ladrão, que tinha ido passear a Cacilhas e talvez ver os barcos ao luar. Voltava agora para algum lugar na cidade, onde deve pernoitar. Quando andava na faculdade havia um cão vadio que fazia este mesmo trajecto ao longo das avenidas principais da cidade, todas as manhãs. Chegado a Cacilhas, o cão metia-se na fila para entrar nos barcos que atravessam o Tejo - não lhe era cobrada passagem -, ia passar o dia em Lisboa, e depois voltava ao fim da tarde a Almada. Eu vi isto com os meus olhos durante anos e o assunto foi uma vez capa do “Tal & Qual”, um semanário popular nos anos 80.
O Ladrão é um dos cães mais bonitos que vi. Já o tinha visto uma vez, antes, quando um amigo mo apontou na rua e falou da sua história. Deve ter agora uns 10, 11 anos. No Facebook, a página Amor Rafeiro descreve-o assim: “LADRÃO – O CÃO DE QUEM TODOS GOSTAM MAS NINGUÉM QUER..." (https://www.facebook.com/AmorRafeiro/posts/366064796887366:0)
“Este é o Ladrão, um cão cuja história é igual à de tantos outros. Nasceu e cresceu nas ruas entre o abandono e a negligência de quem foi sendo seu tutor ao longo do tempo. Fruto de uma estranha mistura de raças, foi desde cedo um cão apontado pela sua beleza e porte e é de facto lindo. Nos últimos anos tornou-se famoso, até uma página tem no facebook (https://www.facebook.com/ladrao.almada). Todos o admiram e gostam de tirar fotos com ele. Todos apreciam vê-lo a passear pelas ruas da cidade que o viu crescer, mas ninguém o acolhe de forma definitiva… De todos os que olham para ele, até agora ninguém percebeu que um animal tem necessidades diárias que necessitam de ser satisfeitas, não é um mero adereço da cidade. Por outro lado, ele não caminha para novo, muito pelo contrário. Não se sabe ao certo a sua idade, mas calcula-se que tenha cerca de 6, 7 anos. Mais tarde ou mais cedo irá apresentar os problemas normais de qualquer idoso, humano ou não.Na verdade o Ladrão tem sido feliz assim. Vai tendo abrigo ocasional e algumas pessoas vão tratando da sua alimentação. Embora a lei portuguesa não preveja a existência de “cães de rua” ou “cães errantes”, há uma certa tolerância para estes casos desde que os animais sejam cuidados de forma regular e com responsa bilidade por um grupo de pessoas, e desde que não intimidem ou ataquem pessoas ou outros animais.”
A página queixa-se que o Ladrão já matou uns gatos das colónias da cidade - Almada tem gatos por todo o lado! “Uma vez que o Ladrão se tornou um perigo para outras criaturas", escrevem, "a lei determina que tem que ser capturado e levado para o canil, o que mais tarde ou mais cedo vai acabar por acontecer. Por isso precisamos de arranjar com urgência um tutor responsável para ele. Terá que ser alguém com paciência e conhecimento do comportamento canino, alguém que o ame, já que até agora ninguém o amou o suficiente para se dedicar a ele. Alguém que o ensine a andar à trela na rua e que lhe dê todos os cuidados que ele necessita e merece”.
O post é de 2014. Parece, pois, estar tudo na mesma. O Ladrão continua a vagabundear pela cidade. Não tem coleira, e possivelmente também não tem dono. Parece saudável, bem alimentado e feliz. Quem tomará conta dele? É frequente os almadenses fazerem-lhe festinhas na cabeça e tirarem selfies. Quis fazer o mesmo. O cão parecia bem disposto mas não particularmente sociável, e não repondeu ao meu “Psh, Psh”, que, se calhar, é um chamamento mais adequado para gatos. Ignorou-me, mais ou menos, e seguiu em frente. Foi comigo (ou eu fui com ele) quase até ao Centro Comercial Faraó (o Faraó ainda existe! Com aquelas réplicas do sarcófago do Tutankamon no corredor! Que memórias), a meio da cidade. Ali chegado, mudou de direcção rumo à escola Emídio Navarro, saíu da avenida e desapareceu pela rua mal iluminada.
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