A Paixão segundo os Xiitas

"Jornais e televisões estão cheios de imagens chocantes: o autoflagelo de iraquianos xiitas, que se chicoteiam com correntes de aço e batem com facões (representando espadas) em suas cabeças, manchando com sangue as suas vestes. Observando-se mais atentamente, dá para notar que não são todos os que se flagelam, mas uma minoria entre milhares: a maioria apenas simula o autoflagelo. Não importa, a imagem que fica é a do sangue. Os xiitas consideram um alívio poder praticar seus rituais livremente; os americanos estão com as barbas de molho; e o público ocidental está se perguntando: que coisa esquisita é essa?

É a celebração do martírio do terceiro imã, Hussein, neto do profeta Maomé e filho de Ali, o primeiro imã ("guia", em árabe). Vamos relembrar, para diminuir a confusão: segundo os xiitas, Ali, genro e primo de Maomé, foi preterido na sucessão do profeta, mesmo tendo sido indicado por ele como seu herdeiro (xiita vem do árabe shiit-al Ali, os partidários de Ali). Ali acabou apontado como o quarto califa, mas foi assassinado pelos homens de Muawiya, governador da Síria, que se fez califa. O ódio dos xiitas contra Muawiya sempre foi grande, mas após sua morte a coisa tomou ares de revolta popular: Muwayia foi sucedido por seu filho, Yazid, um tirano. Em Kufa, no atual Iraque, os partidários de Ali clamaram pela ida de Hussein à cidade, para que este liderasse a rebelião contra Yazid e repusesse o califado nas mãos da família do profeta.

Hussein se pôs a caminho, com toda a família e um pequeno grupo de 72 homens armados, porque esperava contar com o apoio da população de Kufa. Yazid, porém, tratou de desfechar uma repressão prévia de grande monta em Kufa, e o esperado apoio popular a Hussein evaporou-se. Avisado, Hussein insistiu em seguir seu rumo, mas foi barrado por um exército de mil homens. De extrema bondade, Hussein, percebendo que os adversários estavam sem água, deu de beber a eles. Depois, cercado, ouviu o ultimato que Yazid finalmente mandou ao seu comandante: atacar imediatamente. O neto do profeta reuniu seus homens e pediu que todos se retirassem: ele enfrentaria sozinho o exército de Yazid. Não houve desertores, contudo. Numa área onde depois surgiria a cidade de Karbala, todos foram massacrados e decapitados.

O que os xiitas rememoram desde então é este martírio. Embora Ali, o primeiro Imã, seja a figura central do xiismo, Hussein é considerado como tendo, no mínimo, importância igual. Dizem os xiitas que ao aceitar o martírio contra os descaminhos de Yazid, Hussein usou o seu próprio sacrifício para provocar uma revolução na consciência dos muçulmanos: dar a própria vida pelo caminho reto, pelos verdadeiros valores e ensinamentos de Deus. No mês do martírio de Hussein, onde há liberdade, os xiitas revivem o sacrifício de Hussein de várias formas. As famílias se reúnem em casa, oferecem chá, refrescos e doces e ouvem de religiosos a história do martírio da forma mais emocionante que puderem. Há também aqueles que fazem isso nas mesquitas. E há as procissões de rua, um cortejo que revive o funeral de Hussein. Nelas, um grupo de homens se flagela, enquanto os demais apenas simulam o flagelo. No Irã, os xiitas fazem também a teatralização do martírio de Hussein, com atores, em espetáculos ao ar livre.

Parece estranho, e é, como tudo, para quem não está acostumado. Nas Filipinas, todos os anos, homens e mulheres se crucificam literalmente, com pregos nas mãos e tudo, durante toda a Sexta-Feira Santa. Isso acontece também no Peru. Mas, evidentemente, autoflagelo é algo que não vemos na Semana Santa. Os cristãos, no entanto, conseguem entender bem o que é reviver um mistério: a cerimônia do lava-pés na quinta-feira, o beijar os pés do Senhor morto na sexta, o drama da paixão com a crucificação de Cristo revivido por atores, na Lapa, em Nova Jerusalém, em João Pessoa ou em milhares de cidades no mundo. O cristão devoto sabe a força mística que esses rituais têm. Todos os anos, é assim.

No Iraque, há 25 anos os xiitas estavam proibidos de praticar a sua crença. No Irã, nos primeiros anos após a queda do Xá, os fiéis xiitas chegavam também a se machucar seriamente no autoflagelo. Hoje, tudo está cada vez mais simbólico e menos sangrento. No Iraque, será assim também. "

Ali Kamal, "O Globo", 24/04/2003

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Ver também "Teatro Xiita: o Drama de Karbala", por Aida Hanania e Jean Lauan: http://www.hottopos.com/collat10/4758AidaAshura.pdf

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