É possível reformar o Islão? A história e a natureza humana dizem que sim

O Islã representa hoje uma força retrógrada, agressiva e violenta. Será que tem que ser assim ou será que ele pode ser reformado e se tornar moderado, moderno e manter relações de boa vizinhança? Seria possível as autoridades islâmicas formularem um entendimento da sua religião, de modo que ela conceda plenos direitos às mulheres e aos não muçulmanos, bem como o livre arbítrio para os muçulmanos, que aceite os princípios básicos das finanças e da jurisprudência moderna e que não procure impor a lei Sharia ou estabelecer um califado? Um número crescente de analistas acredita que não, que é impossível a religião muçulmana fazer tais coisas, que essas características são inerentes ao Islã e parte imutável de seu modo de ser. Questionada se concorda com a minha formulação que o "islamismo radical é o problema, mas o islamismo moderado é a solução", a escritora Ayaan Hirsi Ali respondeu, "Ele está errado. Desculpe". Ela e eu defendemos a mesma posição, lutamos pelos mesmos objetivos, contra os mesmos oponentes, mas discordamos nesse ponto vital. Minha argumentação se divide em duas partes. Primeira, a posição essencialista de muitos analistas está errada e, segunda, um islamismo reformado pode aparecer.

DANIEL PIPES

Argumentação contra o Essencialismo

Afirmar que o Islã não pode mudar nunca, é afirmar que o Alcorão e o Hadith, que constituem o cerne da religião, deverão sempre ser compreendidos da mesma maneira. Contudo, articular essa posição é revelar seu erro, pois nada que é humano dura para sempre. Tudo, incluindo a leitura de textos sagrados, muda com o passar do tempo. Tudo tem uma história. E tudo tem um futuro que será diferente de seu passado.

Somente a negação da natureza humana e a rejeição de mais de um milênio de mudanças reais na interpretação do Alcorão torna possível alegar que o Alcorão foi compreendido de maneira idêntica com o passar do tempo. Mudanças foram empregadas em questões como jihad, escravidão, usura, o princípio de "não coerção na religião" e o papel das mulheres. Além disso, muitos intérpretes respeitáveis do Islã dos últimos 1.400 anos como, ash-Shafi'i, al-Ghazali, Ibn Taymiya, Rumi, Shah Waliullah e Ruhollah Khomeini que vêm à mente, discordavam profundamente entre si sobre o conteúdo da mensagem do Islã. Por mais central que o Alcorão e o Hadith possam ser, não são a totalidade da experiência muçulmana, a experiência acumulada dos povos muçulmanos do Marrocos à Indonésia e mais além, não são menos importantes. Ater-se apenas às escrituras do Islã é como ver os Estados Unidos unicamente através das lentes da sua constituição, ignorar a história do país levaria a um entendimento distorcido.

Colocado de outra maneira, a civilização medieval muçulmana era avançada e a de hoje é atrasada em praticamente qualquer índice de desempenho. E se as coisas podem piorar, também podem melhorar. Na mesma linha, em minha própria carreira, testemunhei o islamismo ascender de um pequenino começo quando entrei no campo em 1969, às grandes potências de hoje, se o islamismo pode crescer assim, também pode entrar em declínio.

De que maneira isso pode acontecer?


Rumi (1207-73), um líder místico do Islã.

A Síntese Medieval

De grande valor para o papel do Islã na vida pública é a Sharia e as diversas demandas impraticáveis que exige dos muçulmanos. Gerir um governo com o mínimo de impostos permitidos pela Sharia mostrou ser insustentável, como é possível gerir um sistema financeiro sem cobrar juros? Um sistema penal que requer que quatro homens vejam um ato adúltero em flagrante delito é impraticável. A proibição da Sharia de conflitos armados entre irmãos muçulmanos é impossível de se aplicar, a bem da verdade, praticamente três quartos de todas as guerras empreendidas pelos muçulmanos foram dirigidas contra outros muçulmanos. Da mesma forma, a insistência da jihad perpétua contra os não muçulmanos demanda demais.

Para contornar essas e outras exigências fora da realidade, muçulmanos pré-modernistas desenvolveram algumas manobras legais com o objetivo de relaxar as disposições islâmicas sem violá-las. Juristas apareceram com o termo hiyal (truque) e outros meios pelos quais a letra da lei seria respeitada enquanto seu espírito não. Por exemplo, vários mecanismos foram desenvolvidos para possibilitar viver em paz com estados não muçulmanos. Também há a venda dobrada (bai al-inah) de algum artigo, que permite ao comprador pagar uma forma disfarçada de juros. Guerras contra patrícios árabes foram renomeadas de jihad.

Esse acordo entre a Sharia e a realidade equivale ao que eu chamo de "síntese medieval" do Islã em meu livro In the Path of God (No Caminho de Deus 1983). A síntese converteu o Islã de um corpo de exigências impraticáveis e abstratas em um sistema exequível. Na prática, esse sistema acomodou a Sharia às conveniências e fez com que o código da lei se tornasse operacional. Agora a Sharia poderia ser aplicada o bastante, sem que os muçulmanos ficassem sujeitos às suas exigências mais rigorosas. Kecia Ali, da Universidade de Boston, observa o excepcional contraste entre a lei formal e a lei aplicada em Marriage and Slavery in Early Islam (Casamento e Escravidão no Islã Antigo), citando diversos especialistas:

Uma das formas mais importantes em que os estudos da lei foram progredindo foi "comparar a doutrina com a prática campal do tribunal". Conforme observa um estudioso que trata de textos legais e de livros sagrados, "havia grandes diferenças entre as normas sociais e a imagem "oficial" apresentada por essas fontes "formais". Estudos frequentemente justapõem decisões flexíveis, relativamente justas do tribunal, com uma tradição textual indiferenciada e por vezes patriarcal, rígida na jurisprudência. Temos provas de sobra da "flexibilidade na lei islâmica, frequentemente retratada como estagnante e draconiana".

Enquanto a síntese medieval funcionou durante séculos, nunca superou uma fraqueza fundamental: Ela não está arraigada de forma abrangente ou deriva dos textos de base constitucionais do Islã. Baseada em concessões e meias medidas, esteve sempre vulnerável a contestações pelos puristas. A bem da verdade, a história pré-moderna muçulmana destaca diversos desafios dessa natureza, incluindo o movimento Almohad no século XII no norte da África e o movimento Wahhabi no século XVII na Arábia. Em cada um desses casos, iniciativas dos puristas acabaram esmaecendo e a síntese medieval se reafirmando, para ser novamente desafiada pelos puristas. Essa alternação entre pragmatismo e purismo caracteriza a história muçulmana, contribuindo para a sua instabilidade.


Shah Waliullah (1703-62), importante pensador do Islã indiano.

O Desafio da Modernidade

Na verdade, a solução apresentada pela síntese medieval acabou desfeita com a chegada da modernidade imposta pelos europeus, datada convencionalmente a partir do ataque desfechado por Napoleão contra o Egito em 1798. Esse desafio atraiu os muçulmanos para direções opostas durante os dois séculos seguintes, para a ocidentalização ou para a islamização.

Impressionados com as conquistas Ocidentais, os muçulmanos procuraram minimizar a Sharia e substituí-la por modelos Ocidentais em áreas como o não establishment da religião e igualdade de direitos para as mulheres e não muçulmanos. O fundador da Turquia moderna, Kemal Atatürk (1881-1938), simboliza esse esforço. Até cerca de 1970, parecia ser o inevitável destino muçulmano, resistência à ocidentalização, reacionarista e inútil.

Mas essa resistência mostrou ser profunda e em última instância vencedora. Atatürk tinha poucos sucessores e a sua República da Turquia está retornando à Sharia. A ocidentalização, ao que se constatou, parecia mais vigorosa do que era na realidade, tendia a atrair elites com vozes ativas, participantes, enquanto as massas ficavam retraídas. Ao redor de 1930, os elementos relutantes começaram a se organizar e desenvolver seu próprio programa de ação, especialmente na Argélia, Egito, Irã e Índia. Rejeitando a ocidentalização e suas ações, defendiam a aplicação total e vigorosa da Sharia da mesma forma que eles imaginavam que ela era aplicada nos primórdios do Islã.

Embora rejeitassem o Ocidente, esses movimentos, chamados de islamistas, eram modelados segundo as ideologias totalitárias emergentes na época, fascismo e comunismo. Os islamistas emprestaram várias suposições dessas ideologias, como a preferência do estado sobre o individuo, a aceitabilidade da força bruta e a necessidade de um confronto cósmico com a civilização Ocidental. Eles também se apropriaram discretamente da tecnologia, especialmente militar e médica, do Ocidente.

Por meio de trabalho duro e criativo, forças islamistas, sem que ninguém percebesse, foram se fortalecendo durante meio século, finalmente chegando ao poder e à proeminência com a revolução iraniana de 1978–79 liderada pelo anti-Atatürk, Aiatolá Khomeini (1902-89). Esse dramático acontecimento e o objetivo alcançado de criar uma ordem islâmica, inspirou islamistas em todos os cantos, que nos 35 anos subsequentes fizeram enorme progresso, transformando sociedades, aplicando a Sharia de forma original além de radical. Por exemplo, no Irã o regime xiita enforcou homossexuais, suspensos por guindastes, e forçou iranianos vestidos com roupas de estilo ocidental a beberem de latrinas e, no Afeganistão o regime do Talibã incendiou escolas para meninas e lojas de equipamentos e mídias musicais. A influência islamista chegou ao Ocidente propriamente dito, onde se vê um número cada vez maior de mulheres usando hijabs, nicabes e burcas.

Suas visões do Islã divergiam tanto quanto suas aparências: Atatürk (esquerda) e Khomeini.

Embora seja produto de um modelo totalitário, o islamismo mostrou ter maior adaptabilidade tática que o fascismo ou o comunismo. Tanto o fascismo quanto o comunismo raramente conseguiam ir além da violência e da coerção. Mas o islamismo, liderado por personalidades como o Primeiro Ministro da Turquia Recep Tayyip Erdoğan (1954) e seu Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), enveredou por formas não revolucionárias do islamismo. Desde que venceu, legitimamente, as eleições em 2002, o AKP tem gradualmente minado o secularismo turco com impressionante habilidade, trabalhando dentro das estruturas democráticas estabelecidas do país, fazendo um bom governo sem provocar a ira das forças armadas, guardiã de longa data do secularismo turco.

Os islamistas estão avançando hoje, mas sua ascendência é recente e não proporciona garantias de longevidade. De fato, assim como outras ideologias utópicas radicais, o islamismo perderá seu apelo e seu poder entrará em declínio. Seguramente, as revoltas de 2009 e 2013 contra os regimes islamistas no Irã e no Egito, respectivamente, apontam nessa direção.

Em Direção a uma Síntese Moderna

Se o islamismo for derrotado, os muçulmanos anti-islamistas devem desenvolver uma visão alternativa do Islã e uma explicação para o que significa ser muçulmano. Nessa empreitada, poderão recorrer ao passado, especialmente às iniciativas de reforma ocorridas de 1850 a 1950, a fim de criar uma "síntese moderna " comparável ao modelo medieval. A síntese optaria por alguns preceitos da Sharia tornando o Islã compatível com valores modernos. Ele aceitaria a igualdade entre os sexos, coexistência pacífica com não crentes e a rejeição da aspiração a um califado universal, entre outras coisas.

Aqui, o Islã pode efetivamente ser comparado às outras duas grandes religiões monoteístas. Há meio milênio, judeus, cristãos e muçulmanos concordavam, em termos gerais, que trabalho forçado era aceitável e cobrança de juros sobre dinheiro emprestado, não. Com o passar do tempo, após demorados e intensos debates, judeus e cristãos mudaram de opinião sobre essas duas questões, nenhuma voz judaica ou cristã endossaria a escravidão ou condenaria o pagamento de juros razoáveis sobre empréstimos.

Contudo, entre os muçulmanos, esses debates apenas começaram. Ainda que tenha sido formalmente proibido no Catar em 1952, na Arábia Saudita em 1962 e na Mauritânia em 1980, a escravidão ainda existe nesses e em outros países de maioria muçulmana (principalmente no Sudão e no Paquistão). Algumas autoridades islâmicas ainda alegam que um muçulmano devoto deve endossar a escravidão. Grandes instituições financeiras com patrimônios que chegam a um trilhão de dólares, cresceram nos últimos 40 anos, possibilitando que os muçulmanos finjam que não pagam ou recebem juros, ("fingem" porque os bancos islâmicos meramente encobrem os juros com subterfúgios como, por exemplo tarifas de serviço).

Muçulmanos reformistas precisam se sair melhor que seus antecessores medievais e basear suas interpretações, tanto nos livros sagrados quanto nas suscetibilidades da era atual. Para que os muçulmanos possam modernizar sua religião, é necessário que imitem seus colegas monoteístas e adaptem a religião no que diz respeito a escravidão e aos juros, o tratamento das mulheres, o direito de mudar de religião, procedimentos legais e muito mais. Quando surgir um Islã moderno e reformado, não será mais endossada a desigualdade de direitos das mulheres, status dhimmi ou terrorismo suicida, nem adotará a pena de morte para adultério, desrespeito à honra da família, blasfêmia e apostasia.

Já nesse início de século, é possível ver alguns sinais positivos nessa direção. Veja alguns fatos novos em relação às mulheres, que merecem atenção:

- O Conselho Shura da Arábia Saudita respondeu à crescente indignação popular frente aos casamentos de crianças, determinando a maioridade para 18 anos. Embora tal medida não acabe com essa prática, estimula sua futura abolição.
- Clérigos turcos concordaram que mulheres menstruadas compareçam a mesquita e rezem ao lado dos homens.
- O governo iraniano, praticamente baniu o apedrejamento de adúlteros condenados.
- Mulheres iranianas conquistaram direitos mais abrangentes para processarem os maridos para obterem o divórcio.
 - Uma conferência de estudiosos muçulmanos no Egito considerou as clitorectomias contrárias ao Islã, na realidade passíveis de punição.
- A importante instituição muçulmana indiana, Darul Uloom Deoband, emitiu uma fatwa (decisão jurídica baseada na lei islâmica) contra a poligamia.

Outros desdobramentos dignos de atenção, não especificamente em relação às mulheres, incluem:

- A abolição pelo governo saudita da jizya (a prática de cobrar uma taxa de quantia constante imposta de forma pessoal a todo cidadão não muçulmano).
- Um tribunal iraniano emitiu uma ordem judicial na qual a família de um cristão assassinado deverá receber a mesma compensação que seria dada a uma vítima muçulmana.
- Uma reunião de estudiosos na Academia Islâmica Internacional Fiqh em Sharjah iniciou um debate e contestou a recomendação da execução dos apóstatas.

Nadin al-Badir e as primeiras linhas de sua pregação em favor da poliandria, em 2009.

O tempo todo reformadores aparecem com ideias novas, senão para adoção, pelo menos para estimular o pensamento. Por exemplo, Nadin al-Badir, uma jornalista saudita, em tom de provocação, propôs que mulheres muçulmanas tenham o mesmo direito que os homens de ter até quatro maridos. Ela causou um alvoroço, motivando ameaças de processos judiciais e condenações exasperadas, mas apressou um debate necessário, um debate inimaginável há algum tempo.

Assim como seu precursor medieval, a síntese moderna encontra-se vulnerável a ataques de puristas, que podem apontar para o exemplo de Maomé e insistir que não haja nenhum desvio. Mas, tendo testemunhado o que o islamismo, seja violento ou não, é capaz de elaborar, vejo que há motivos para se ter esperança que os muçulmanos rejeitarão o sonho de restabelecer a ordem medieval e estarem abertos para se acomodarem aos costumes modernos. O Islã não precisa ter uma mentalidade medieval fossilizada, ele é o que os muçulmanos de hoje fazem dele.

Implicações Políticas

O que podem aqueles, muçulmanos ou não, que se opõem à Sharia, ao califado e aos horrores da jihad, fazer para promover seus objetivos?

No caso dos muçulmanos anti-islamistas, o grande problema é criar não apenas uma visão alternativa para a visão islamista, mas um movimento alternativo ao islamismo. Os islamistas chegaram a posição de poder e influência por meio de dedicação de trabalho duro, generosidade e abnegação. Anti-islamistas também precisam dar duro, provavelmente por décadas, para desenvolver uma ideologia tão coerente e convincente quanto a dos islamistas, para depois difundí-las. Estudiosos para interpretar as Sagradas Escrituras e líderes para mobilizar seguidores, são papéis fundamentais nesse processo. Não muçulmanos podem ajudar de duas maneiras um Islã moderno a avançar: primeiro, se opondo a qualquer forma de islamismo, não apenas o extremismo violento de um Osama bin Laden, como também aos movimentos políticos que não chamam a atenção, que agem dentro da lei, como o AKP da Turquia. Erdoğan é menos violento que Bin Laden, mas é mais eficaz e não menos perigoso. Quem dá valor à liberdade de expressão, igualdade perante a lei e demais direitos humanos negados ou reduzidos pela Sharia, deve consistentemente se opor ao menor sinal de islamismo.

Segundo, os não muçulmanos deveriam apoiar os anti-islamistas moderados, pró ocidentalização. Hoje, pessoas com essas características estão dispersas e divididas, enfrentam uma tarefa hercúlea, mas não desistem e representam a única esperança de derrotar a ameaça da jihad global e da supremacia islâmica,  almejam substituí-la por um Islã que não ameace a civilização.

Fonte:  http://pt.danielpipes.org/13218/reformar-isla

Daniel Pipes (Boston, 9 de setembro de 1949) é um historiador, escritor e jornalista norte-americano, membro ativo do lobby pró-Israel nos Estados Unidos e figura midiática do neoconservadorismo americano. Especialista em política externa dos EUA, notadamente para o Oriente Médio, também atua na Wikistrat, empresa de consultoria de negócios e análise geoestratégica. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Pipes)

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