Os mouros da Madeira e dos Açores

"Que tem a terra dos Açores a ver com tudo isto?

Ibn al-Faqih al-Hamadani, o já citado autor, ao falar, no seu livro “Resumo do Livro dos Países, das Ilhas Aventuradas”, referia-se, como hoje geralmente é aceite pelos arabistas, aos Açores, Madeira e Canárias.

Outro aspecto, esse indiscutível, é a impressão árabe deixada nestas ilhas, banhadas de nevoeiro e mito, por força da expansão portuguesa.

Segundo um dos maiores arabistas espanhóis, Asin Palácios, o próprio topónimo “Açores”, não se deve às aves, mas sim ao vocábulo árabe que significa “os mouros”. A ser assim, que mouros teriam existido nos Açores?

Luís da Silva Ribeiro na sua monografia “Formação Histórica do Povo dos Açores”, corroborando a influência árabe na formação do património étnico açoriano, louva-se na observação de Gaspar Frutuoso, que afirmou terem sido árabes os primeiros habitantes da Ilha de S. Miguel, referindo-se até a dois regentes mouriscos, um proveniente de África e outro, que ficou famoso, Jorge Velho, o Mouro.

Aliás, a toponímia, que não mente, deixou o seu testemunho: refiramos, como exemplo, apenas na Terceira, a “Canada do Mouro” e a “Ribeira do Mouro” (Manoelito de Ornelas, Gaúchos e Beduínos, Rio de Janeiro, 1956, 221).

Estas impressivas raízes arábicas, foram igualmente profundas na Madeira, chegando a cidade do Funchal a ter a sua Mouraria e havendo a tradição de que, Ponta do Sol, Santa Cruz, Curral das Freiras e Machico foram terras de colonização árabe. Por isso, os padres Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, autores do Elucidário Madeirense, dizem que “não é para estranhar que esses indivíduos, nos quais domina quase sempre o sangue árabe, deixassem em certas regiões, vestígios notáveis da sua estada na ilha, como a deixaram na antiga indumentária e nos caracteres antropológicos duma parte da população madeirense”.

Também na música e na dança das ilhas, se surpreende essa fonte em relação ao imaginário árabe. Luís da Silva Ribeiro na sua monografia sobre o vilão no teatro popular de S. Miguel, acentua o grande papel das “mouriscas” ou “mouriscadas” e lembra que “há o romance mourisco, houve a dança mourisca, que saía pelo menos na procissão do Corpus Christi na Horta em 1644, e subsiste na Madeira, conhecida no Funchal por Bailinho dos Vilões e existem superstições, modos de dizer, etc., de origem árabe ou moura”.

Por outro lado, Maria de Lurdes de Oliveira Monteiro (Porto Santo, in Revista Portuguesa de Filologia, 1948), ao analisar o Baile da Meia Volta de Porto Santo, aponta as “características irrefragáveis dos árabes, com os quais a ilha, durante séculos, teve intercâmbio populacional: ...não há ninguém que, vendo estas rodas e meneios lentos, em noites de luar e ouvindo as toadas melancólicas e trinadas que os acompanham não chegue instantaneamente a essa conclusão, tão grande é a semelhança”.

No citado Elucidário Madeirense, a propósito da Vila da Santa Cruz, na Madeira, diz-se que nela se mostrava, ainda há pouco, na igreja, um retábulo “onde figuravam escravos mouros usando um pequeno turbante afunilado, com uma ponta caída, de que derivam a carapuça do vilão e a toalhinha pendente da cabeça, antigos trajes da camponesa da Madeira. Dos mouros a dolência dos cantares. Dos mouros as lengalengas serranas, os populares lengi-lengi, o nevoeiro, a formiga que o seu pé prende. Entre as brumas, princesas encantadas, as histórias de palácios e riquezas entesouradas... Dos mouros ainda o cuscuz, essa massa granulada de trigo, tão apreciado pelas classes pobres que só comem nas ocasiões solenes... pelos baptizados e casamentos, não faltando o ramo da segurelha e o coentro que encima o prato e o aromatiza”.

Referir-se-á essa tradição secreta, velha de séculos, à ilha de S. Miguel, perturbantemente conhecida por Ilha Verde?"

Adalberto Alves, in “A ilha e o imaginário árabe” [Texto integral nesta ligação: https://muculmanoeportugues.blogspot.pt/2017/12/a-ilha-e-o-imaginario-arabe.html]

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