As minhas memórias da Síria


Os senhores da guerra decidiram acabar com a Síria, infligindo os maiores horrores aos seus habitantes, enquanto a comunidade internacional assiste indiferente perante esta grave situação.

Narciso Machado*/Público

As imagens transmitidas pelas televisões não deixam margem para dúvidas: montes de ruínas, prédios com paredes esventradas, crateras nas ruas, montes de entulho e por baixo das ruínas um número incontável de mortos, a maioria civis. Nas viagens de turismo que realizei a vários países árabes/muçulmanos (Marrocos, Tunísia, Egito, Jordânia, Síria) e Turquia, as cidades cujas culturas mais me surpreenderam foi, sem dúvida, as cidades sírias de Damasco (capital), Alepo e Palmira.

Alepo, hoje cidade mártir, para além de ser a capital económica do país, então com 3 milhões de habitantes, é uma das cidades mais antigas do mundo, com cerca de 4000 anos, sempre habitada. A primeira referência a Alepo, que se conhece, reporta-se mais precisamente a 1780 a.C., altura em que era capital de uma confederação de cidades e povos unidos por interesses comuns ligados ao controlo das vias comerciais entre a Mesopotâmia, Anatólia e a costa Mediterrânea.

Na Medina, encontra-se uma mesquita, datada dos inícios do séc. VIII, que a tradição diz ter sido construída sobre a antiga catedral, fundada por Santa Helena, mãe do imperador Constantino, o Grande. Aí se encontram os bairros cristãos onde podem ser vistas várias igrejas. Nos arredores de Alepo, num escarpado de uma colina, é visita obrigatória os imponentes vestígios do complexo paleocristão, erigido em memória do lugar onde viveu S. Simeão Estilita, que a tradição diz ter vivido durante cinco anos, em cima de uma coluna, preso por uma corrente de ferro.

S. Simeão, nascido em 386 d.C, em Antioquia, teria chegado, em 412, ao mosteiro localizado um pouco mais abaixo. A fama do eremita atraiu peregrinos provenientes de todo o oriente cristianizado. O importante centro cultural atraía turistas de todo o mundo, para visitar os locais históricos e os vestígios de numerosas civilizações.

A Síria é um testemunho importante da existência de um enorme legado cultural cristão, a começar pelas primitivas comunidades cristãs, reportadas ao tempo de S. Paulo (Paulo de Tarso) facto que pude testemunhar, livremente, em Damasco, com a visita às capelas de Ananias e de S. Paulo. Na parte velha da cidade de Damasco, a capela de Ananias constitui uma referência ao lugar em que, segundo os Actos dos Apóstolos (9,1-12), vivia o discípulo de Jesus que fez recuperar a vista a S. Paulo. A capela de S. Paulo foi construída no lugar em que, segundo a tradição popular, S. Paulo conseguiu evitar a sua captura, descendo por uma janela, num cesto, episódio narrado na 2.ª Carta aos Coríntios (11,13).

Será que este importantíssimo património cultural terá sido poupado?

A Cidadela de Alepo, jóia da arquitectura militar islâmica da Idade Média, cuja construção começou no séc. X, perdeu uma parte das suas imponentes ameias. O souq, o maior mercado coberto do mundo, com as suas quatro mil bancas centenárias, foi parcialmente destruído pelas chamas.

Segundo o Comissário da ONU para os Direitos Humanos (Zeid Rà ad al-Hussein), a “Cidade Velha de Alepo, conhecida pelos souqs animados e pela cidade pluri-centenária, é hoje irreconhecível depois de anos de uma guerra, sem perdão”. Agora, diz o referido Comissário, “apenas os gatos errantes são visíveis nas ruelas, cheias de escombros da Cidade Velha", Património Mundial da UNESCO. As perdas causadas pela violência dos últimos anos são incalculáveis. Na Cidade Velha, acrescenta o Comissário da ONU, "já só o silêncio está de pé” (cf. PÚBLICO de 14.12.16). Ultimamente Ghouta Oriental, nos arredores de Damasco, tem sido bombardeada quase diariamente por aviões russos e do regime sírio, deixando um rasto de destruição.

Perante o terror existente na Síria, a comunidade internacional vive indiferente, como se nada estivesse a acontecer. E os EUA e a União Europeia, que apostaram na substituição do Presidente sírio (quando deviam atacar em primeiro lugar o denominado Estado Islâmico) viram-se substituídos pela Rússia e Irão nesta guerra sem fim que já causou mais de 300 mil mortos e uma gigantesca onda de refugiados.

Recorde-se que o ex-Presidente dos EUA, Barack Obama, pretendeu, fora do âmbito das Nações Unidas, uma intervenção militar na Síria pelo facto de, alegadamente, o Presidente Bashar al-Assad ter utilizado armas químicas em várias localidades nos arredores de Damasco. A Rússia e a China exigiram provas convincentes, imputando tal conduta aos opositores do regime sírio. Por sua vez, a União Europeia e o Vaticano defenderam (e ainda defendem) a utilização de meios pacíficos e diplomáticos para atingir a paz.

A história relativamente recente aconselhava prudência na decisão a tomar, pelos graves riscos que tal intervenção poderia causar na região. Também o Iraque foi invadido, com apoio do Governo português, então liderado por Durão Barroso, sob alegação de possuir armas de destruição massiva, que mais tarde se comprovou não corresponder à verdade. O resultado dessa intervenção está à vista de todos, a reclamar justiça para os responsáveis pelos crimes contra o povo iraquiano.

A intervenção militar na Síria, à margem do quadro jurídico das Nações Unidas, viola as normas do direito internacional, nomeadamente o art. 2.º n.º 4.º da Carta da ONU ao estipular que “é absolutamente proibido o emprego ou ameaça de emprego, de forma armada, contra um Estado, salvo em caso de legítima defesa ou de execução de medidas colectivas autorizadas pelo Conselho de Segurança”. E é ao Conselho de Segurança que compete determinar quando existe ameaça da paz, violação da paz ou acto de agressão. Entende-se que o respeito pela soberania territorial é a base essencial das relações entre Estados independentes. Agora, os senhores da guerra decidiram acabar com a Síria, infligindo os maiores horrores aos seus habitantes, enquanto a comunidade internacional assiste indiferente perante esta grave situação.

 * Juiz desembargador jubilado

https://www.publico.pt/2018/03/29/opiniao/opiniao/as-minhas-memorias-da-siria-1808422

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