Garcia de Orta, Goa (c. 1500-1568)
Há 450 anos foi o primeiro médico europeu a escrever um livro sobre as plantas medicinais do Oriente. "Colóquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da Índia" foi
publicado a 10 de abril de 1563, em Goa, onde Garcia de Orta viveu e
onde viu o seu livro tornar-se no primeiro best-seller português.
Fugindo às fogueiras da Inquisição, que já se perfilavam no horizonte ameaçando obscurecer o céu azul da cosmopolita Lisboa do século XVI, o jovem médico Garcia de Orta, natural de Castelo de Vide, filho de judeus sefarditas espanhóis, embarca para a Índia no dia 12 de março de 1534, na armada de cinco naus comandada por Martim Afonso de Sousa, futuro vice-rei das Índias.
Parte no total anonimato – os cronistas da época nem sequer registam o
seu nome entre os tripulantes –, no entanto, o ex-professor
universitário da Universidade de Lisboa conquistará a fama imortal ao
escrever um dos primeiros best-sellers renascentistas: Colóquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da Índia,
uma obra de referência para a botânica, a farmacognosia e a medicina
tropical, publicada a 10 de abril, de 1563, ou seja, há 450 anos.
O “ervas” de Castelo de Vide, assim haveria de ser a sua alcunha
devido ao gosto de herborizar aprofundado nas universidades de Salamanca
e Alcalá de Henares (Espanha) onde estudara, levava pouca “fazenda” mas
suficiente pau-santo para conseguir com as vendas a soma de mil
cruzados. O negócio fora bem pensado, o pau-santo usava-se no tratamento
da sífilis, que nessa altura alastrava na Índia. Um mal que era motivo
de orgulho para muitos, e que ele iria também contrair, contribuindo
para o seu envelhecimento precoce e morte aos 68 anos.
No livro Colóquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da Índia,
construído classicamente em forma de diálogo entre duas personagens
Ruano e Orta – o primeiro representante do conhecimento teórico e
escolástico que teme questionar os mestres clássicos, o segundo, voz de
um conhecimento “in situ et de visu”, ou seja, assente
na observação e na experiência –, não se abordam apenas enfermidades,
suas respetivas designações e tratamentos por via de plantas e mezinhas.
Através dos 58 colóquios viaja-se até Goa, sede do governo português na
Índia, efervescente centro comercial de especiarias, e conhecem-se os
costumes de um povo que gostava tanto de cheiros que preferia passar
fome a deixar de se perfumar. Descobre-se também, por exemplo, que era
prática comum as mulheres adormecerem os maridos com datura para
receberem os amantes, e as servas entorpecerem as patroas para lhes
roubarem as joias. A par da miríade de informações sobre o haxixe e a
canela, as mangas e os aloés, a pimenta, o açafrão e o cravo, entre
tantas outras plantas, sente-se tremer o chão com o peso de um exército
de mil elefantes, pasma-se de terror perante uma espécie de cólera capaz
de reduzir o estômago ao tamanho de uma moela de galinha ou
tranquiliza-se a imaginação com a “árvore triste” que só floresce de
noite, evocação de uma jovem que se apaixonara por Surya (Sol) e por ele fora abandonada.
Garcia de Orta, médico do Hospital Real em Goa, na altura considerado
por alguns como “o melhor hospital do mundo” – que mais parecia um
palácio servindo as refeições em travessas de prata e porcelana da China
e em tanta quantidade que os visitantes queriam ficar a comer com os
doentes –, conseguira uma erudição extraordinária não só através da
leitura de livros trazidos pelas naus mas também pela prática diária de
clínica, o diálogo com os seus doentes de todos os estratos sociais e
diversas etnias e culturas, a visita regular aos bazares e boticas, a
amigável convivência com os médicos muçulmanos e os “físicos” persas e judeus, permitindo aos “físicos” indígenas que viessem a casa tratar as suas servas e criadas.
À experiência de tratar os feridos na Tomada da Ilha de Repelim e em
outras batalhas travadas por Martim Afonso de Sousa, nos primeiros anos
da sua chegada à Índia, vieram depois juntar-se anos de observação de
espécies que semeava na horta da sua casa, situada na Rua da Ala dos
Namorados, em Goa, ou na vasta propriedade da Ilha de Bombaim, “ilha da
Boa-Vida” que lhe fora aforada, e teria servido de inspiração à “Ilha
dos Amores” do seu compatriota e amigo Luís de Camões, cujos primeiros
versos impressos são publicados nos Colóquios.
O conde de Ficalho – a quem se deve um dos primeiros estudos da obra
de Garcia de Orta, publicado nos finais do século XIX – pensou que ele
vivera solteiro, rico e em paz. Só em 1934, através das investigações do
médico, professor e historiador Augusto da Silva Carvalho se descobre
uma realidade bem diferente. Garcia de Orta enriquecera na Índia, tinha
um barco que lhe permitia mandar vir espécies de longínquas
proveniências, comercializava pedras preciosas, beneficiava de grande
respeitabilidade e proteção, e, inclusive, os seus Colóquios
tinham sido aprovados por um Inquisidor-Mor do Santo Ofício
(estabelecido em Goa em 1560, a pedido do padre Francisco Xavier), mas
não era solteiro, não vivia sozinho com as suas criadas e serva negra
degustando gulosamente sobremesas exóticas e menos ainda vivia numa
atmosfera calma propicia ao estudo.
Garcia de Orta casara em 1541 ou 1542, com Brianda de Solis, natural
de Alter do Chão. Na sua casa habitavam ainda duas filhas e a mãe, na
casa contígua viviam duas irmãs, Isabel e Catarina, e respetivos
cunhados. “Os fumos da Índia”, o deboche, a preguiça, o consumo
de ópio, o intrigalhar que corrompera muitos portugueses no Oriente,
não o contagiaram mas a Inquisição ameaçava “purificar” Goa; em 1543, um
colega, o médico Jerónimo Dias fora queimado na fogueira, e Garcia de
Orta não seria poupado caso se provasse que apesar das suas idas diárias
à missa continuava a praticar o judaísmo.
A reputação de médico amigo de reis, como o conhecido Nizamaluco e a
sua corte de sábios, o poder económico que detinha, o conhecimento que
se condensa nos Colóquios, primeira obra escrita por um médico
europeu sobre as plantas medicinais do Oriente, foram um escudo
protetor, mas temporário. Quando a Inquisição, graças às confissões que
arrancou à irmã de Garcia de Orta, descobriu que sob a capa de
cristão-novo continuava a praticar os ritos judaicos, ordenou
desenterrar as ossadas do médico para as queimar em auto de fé,
reduzindo igualmente a cinzas a sua obra.
Salvaram-se, no entanto, alguns exemplares. Um deles seria encontrado
pelo médico e botânico flamengo Charles de L’Écluse, numa estalagem em
Lisboa. Apesar das gralhas da primeira edição, que resultavam de ter
ficado a cargo de um tipógrafo inexperiente, a qualidade e o pioneirismo
da obra levaram L’Écluse a fazer um resumo em latim e a publicá-lo em
1567. Sucederam-se inúmeras edições e traduções para o italiano, francês
e inglês, a par de alguns plágios, que mantiveram vivo o nome do médico
português, cujo rosto apesar de figurar em algumas pinturas, esculturas
e numa nota de 20 escudos de 1971, até hoje permanece pouco conhecido.
Por Susana Neves
Up-Magazine, TAP
http://upmagazine-tap.com/pt_artigos/garcia-de-orta-goa-c-1500-1568/
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