Francis Fukuyama: o Islão político como ameaça à democracia no Médio Oriente


«Existe um factor cultural óbvio que complica seriamente a possibilidade da democracia no Médio Oriente: o Islão. Um grande número de sociedades de maioria muçulmana tem sido obrigado a enfrentar grupos de islamitas militantes e antidemocráticos: não houve nenhuma ameaça semelhante às transições democráticas da Terceira Vaga na Europa de Leste e na América Latina. Na perspectiva de vários observadores, o Islão constitui um obstáculo insuperável à emergência da democracia porque nunca aceitou o princípio da separação entre a Igreja e o Estado e tem uma longa tradição de militância religiosa violenta. Organizações islamitas como a Ennahda na Tunísia e a Irmandade Muçulmana no Egipto, que têm jogado pelas regras democráticas, são frequentemente acusadas de usar a democracia como instrumento de conquista do poder; a sua verdadeira agenda é a criação de Estados teocráticos iliberais. A ascensão destes grupos leva os governos autoritários conservadores a reprimi-los, dando origem a um política polarizada em duas alternativas não democráticas.

Tal como não é óbvia a afirmação de que o nacionalismo torna a democracia impossível na Europa, também não é assim tão óbvio que o Islão político permaneça um obstáculo impedidor da emergência da democracia liberal em países de maioria muçulmana. O Islão político tem passado por décadas de decadência e no século XX ficou frequentemente em segundo plano em relação a movimentos baseados no nacionalismo secular ou no autoritarismo liberal. Todos os sistemas culturais grandes e complexos podem ser e têm sido interpretados de várias formas com o tempo. No coração do cristianismo existe uma doutrina igualitária (como existe no Islão), mas durante séculos as igrejas cristãs alinharam com governantes autoritários e justificaram ordens iliberais. Uma parte da história da Terceira Vaga de democratização na Europa e na América Latina tem que ver com a reinterpretação da doutrina católica depois de o Concílio Vaticano II, na década de 1960, a ter tornado compatível com a democracia moderna (este argumento é formulado em Huntington, The Third Wave).

Assim é com o Islão radical. É provável que a sua expansão actual se deva mais às condições sociais do Médio Oriente do que à natureza intrínseca da religião. De facto, a propagação do Islão político pode ser vista como uma forma de política de identidade muito comparável à sua variante nacionalista europeia. Este argumento foi avançado pela primeira vez por Ernest Gellner (...) que argumenta que o nacionalismo é uma resposta à deslocação da identidade que ocorre quando as sociedades se modernizam e fazem a transição da Gesellschaft – a pequena aldeia – para a Gemeinschaft – a grande cidade. Ocorre principalmente nos países em modernização, onde as formas exíguas e antigas de identidade assentes no parentesco e na localidade desaparecem e são substituídas por doutrinas mais universalistas que ligam os indivíduos a movimentos culturais mais amplos. Segundo Gellner, a ascensão do islamismo moderno respondeu a incentivos muito similares no Médio Oriente, onde a religião desempenhou o papel que a ideia de nação teve na Europa. Para o ex-camponês confuso que reside no Cairo ou em Carachi, ou para um imigrante muçulmano de segunda geração na Europa, uma figura como Osama bin Laden pode oferecer uma resposta convincente à pergunta: “Quem sou eu?” Por conseguinte, a ascensão do Islão político em finais do século XX não reflecte o regresso a um Islão eternamente imutável, como dizem os proponentes e os críticos do Islão radical, sendo precisamente uma resposta à condição de semimodernização da maior parte do Médio Oriente.

Por conseguinte, tal como o impulso democrático da Europa do século XIX foi desviado para o nacionalismo, a mobilização popular do Médio Oriente corre o risco de ser capturada pela religião.

As transições da Terceira Vaga na Europa de Leste e na América Latina são, pois, precedentes enganadores para a Primavera Árabe. O melhor modelo é francamente o longo e tortuoso trajecto da Europa da autocracia para a democracia, passando pelo nacionalismo. Esta análise não tranquiliza aqueles que desejam a rápida emergência da democracia liberal no mundo árabe. Resta-nos esperar que a transição, se alguma vez acontecer, não leve tanto tempo como na Europa. A Europa do século XIX não tinha experiência de democracia, logo, não tinha modelos institucionais claros para seguir. No Médio Oriente, a situação é diferente. Os regimes que equilibram Estados fortes com restrições legais e democráticas ao poder tornaram-se a norma no mundo. Porém, para lá chegar, é necessária a criação de um conjunto complexo de instituições interligadas, que por sua vez são facilitadas pelas mudanças na natureza das condições económicas e sociais subjacentes. Na Europa de 1848, não existia uma base social para a democracia estável; talvez também não exista em muitas partes do Médio Oriente contemporâneo.»

(in "Ordem Política e Decadência Política, da Revolução Industrial à Globalização da Democracia") - via EUFRATES (https://www.facebook.com/Eufrates-904786069598445/)

Yoshihiro Francis Fukuyama (Chicago, 27 de outubro de 1952) é um filósofo e economista político nipo-estadunidense. Figura chave e um dos ideólogos do governo Ronald Reagan, Fukuyama é uma importante figura do conservadorismo. Também é considerado o mentor intelectual de Margaret Thatcher.[1] Doutor em ciência política pela Universidade de Harvard e professor de economia política internacional na Universidade Johns Hopkins, em Washington.[2] Ele ficou mundialmente conhecido em 1989, ao lançar um artigo intitulado O Fim da História, transformado em livro em 1992, chamado de "O Fim da História e o Último Homem". Atualmente vive em Palo Alto, e leciona estudos internacionais na Universidade Stanford.[1][2]

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A vida incrível do pai de António e Ricardo Costa (ou Babush e Babuló)

Da origem árabe dos Senhores da Maia

Quinta do Relógio: um passeio pelo romântico e o oriental