Cláudio Torres: D. Afonso Henriques não conquistou Lisboa aos mouros, foi aos cristãos

Carlos Torres e Alexandre Azevedo, SÁBADO 23/02/2018

O arqueólogo, especialista em cultura islâmica, desfaz vários mitos da História. Defende que não houve invasões muçulmanas em massa na Pensínsula Ibérica. "As coisas não foram bem assim. A arqueologia tem uma linguagem diferente da história escrita", conta. "A história escrita é escrita por aqueles senhores que sabem escrever, enquanto a arqueologia vai buscar os restos dos que não sabem escrever. São coisas habitualmente contraditórias. Hoje sabemos, por causa da arqueologia, que não houve nenhuma invasão em 711, não vieram exércitos nenhuns. As grandes religiões do Mediterrâneo, o judaísmo, o cristianismo, o islão, que vieram da zona do actual Líbano e Israel, obviamente que não são nunca impostas pelas armas. São religiões de salvação, a sua força tem a ver com o Além. Quer dizer, as pessoas aqui vivem na miséria, são dominadas pelos ricos, mas a sua vingança é depois da morte. Aí, eles é que mandam e os ricos nem entram no Céu. Essas religiões estendem-se rapidamente para os mais pobres, para os dominados. E chegam cá pela dinâmica mercantil dos portos. Não podemos dizer que os cristãos invadiram e conquistaram a Península Ibérica e ela ficou cristã, ou, em relação ao islão, dizer que vieram os muçulmanos a cavalo e de camelo, conquistaram tudo e impuseram o islão, isso é completamente impensável e estúpido".

Cláudio Torres olha para o buraco no tecto, por onde entra a pouca luz do sol de Inverno, e exclama: "Foi aqui que tudo começou". O "aqui" é a cisterna medieval, junto ao castelo de Mértola.


"Quando cá vim pela primeira vez, em 1976, trazido pelo presidente da Câmara, o Serrão Martins, meu aluno de História na Faculdade de Letras de Lisboa, havia uma grande figueira junto a este buraco. Espreitei lá para dentro, aquilo estava cheio de lixo, e logo na altura apanhei vários cacos de cerâmica islâmica".

Sentado no que resta das paredes de uma casa com 900 anos, Cláudio Torres aponta para o terreiro junto ao castelo: "Os miúdos costumavam vir para aqui brincar. Havia hortas, assavam-se galinhas, namorava-se às escondidas. Em 40 anos, mudámos isto: já desenterrámos o bairro almóada do século XII, o baptistério do século VI e o palácio episcopal. Se continuarmos a escavar, vamos encontrar o fórum romano".

Hoje com 78 anos, Cláudio Torres anda a escavar Mértola desde 1976. O arqueólogo instalou-se em definitivo com a mulher e as filhas na vila alentejana em 1985. Fundador e director do Campo Arqueológico de Mértola (trabalho que lhe valeu, em 1991, o Prémio Pessoa), é um dos mais conceituados investigadores da civilização islâmica no Mediterrâneo.

Em entrevista à SÁBADO, a propósito da edição 711 (o ano, segundo a História, que marca o início do domínio islâmico na Península Ibérica), o arqueólogo aproveita para desfazer vários mitos das invasões muçulmanas e da reconquista.

Com tantas e tão interessantes informações, decidimos dividir a entrevista em três partes, a publicar hoje e nos próximos dois dias. Na primeira, o arqueólogo aborda o que aconteceu realmente em batalhas como Covadonga e Poitiers (tidas como decisivas para travar o avanço muçulmano), assim como as conquistas de Coimbra e de Lisboa.

Na segunda parte, Cláudio Torres explica como era o actual território português em 711, fala da corrida ao ouro em Mértola e do grande contraste entre as gigantescas e opulentas cidades do sul e as urbes miseráveis como Paris e Londres, feitas de casas de madeira e ruas de lama.

Por fim, o arqueólogo aborda o seu percurso pessoal, as aventuras políticas no PCP, as prisões pela PIDE, a fuga de Portugal para Marrocos num barco a motor, o exílio na Roménia e em Budapeste e ainda o que Portugal poderá fazer para combater os radicais islâmicos do Daesh.

No ano 711, os exércitos muçulmanos que vieram do Norte de África invadiram a Península Ibérica e cinco anos depois já dominavam todo o território pensinsular, antes sob alçada dos visigodos. Como foi possível essa progressão tão rápida?

As coisas não foram bem assim. A arqueologia tem uma linguagem diferente da história escrita. A história escrita é escrita por aqueles senhores que sabem escrever, enquanto a arqueologia vai buscar os restos dos que não sabem escrever. São coisas habitualmente contraditórias. Hoje sabemos, por causa da arqueologia, que não houve nenhuma invasão em 711, não vieram exércitos nenhuns.

Mas isso é o que se aprende nas aulas de História.

Pois, mas a realidade não tem nada a ver com o que é contado nos manuais.

Então, o que aconteceu?

Vejamos… a Península Ibérica, nesse século VIII, tem uma capital que é Toledo. E através dos restos do velho império romano ainda há ligações históricas ao Mediterrâneo, no sul há um conjunto enorme de portos ligados ao Mediterrâneo: Sevilha, Málaga, Almeria, etc, e no sul do que é hoje o território português há Mértola e, numa época mais tardia, Tavira. Pensou-se que Mértola era só uma zona portuária e que a grande cidade era Beja, mas hoje, por razões arqueológicas, estamos convencidos que não. Mértola era uma grande cidade, um grande porto marítimo. Ora, as grandes religiões do Mediterrâneo, o judaísmo, o cristianismo, o islão, que vieram da zona do actual Líbano e Israel, obviamente que não são nunca impostas pelas armas. São religiões de salvação, a sua força tem a ver com o Além. Quer dizer, as pessoas aqui vivem na miséria, são dominadas pelos ricos, mas a sua vingança é depois da morte. Aí, eles é que mandam e os ricos nem entram no Céu. Essas religiões estendem-se rapidamente para os mais pobres, para os dominados. E chegam cá pela dinâmica mercantil dos portos. Não podemos dizer que os cristãos invadiram e conquistaram a Península Ibérica e ela ficou cristã, ou, em relação ao islão, dizer que vieram os muçulmanos a cavalo e de camelo, conquistaram tudo e impuseram o islão, isso é completamente impensável e estúpido.

Mas não houve batalhas, não há nada que prove a vinda desses exércitos muçulmanos do Norte de África?

Houve sempre batalhas, mas isso não tem nada a ver com a expansão de religiões deste tipo. A religião islâmica veio através do comércio, dos portos. O diálogo é a base do comércio, e é através do diálogo que se expandem as ideias, as religiões, as coisas novas. O islão não é imposto à espadeirada. Os militares, quando vêm fazer uma conquista, matam, defendem-se, não há diálogo.

A Península Ibérica não foi ocupada militarmente pelos muçulmanos em 711?

Só mais tarde.

Quando?

No final do século XI, início do século XII. Aí é que há o primeiro império almorávida, e depois almóada, que inclui o Norte de África e a zona da Tunísia, e apanha o sul da Península Ibérica. É um império cujo domínio, tal como aconteceu com o romano e outros, é de uma série de tribos e de militares, não tem nada a ver com religiões. 

Portanto, os muçulmanos não conquistaram a Península Ibérica no século VIII?

Não. Em 711 pode ter havido batalhas e escaramuças, mas isso é normal, houve sempre batalhas na zona do estreito de Gibraltar. Ao contrário do que se pensa, o estreito servia para unir, só começou a separar quando aconteceu a primeira invasão séria na Península Ibérica, feita pelos cristãos, pelos cavaleiros da Ordem de Clunny, no século XIII. Aí sim, vieram tropas, hordas militares, e entrou neste espaço o catolicismo, que era uma religião diferente da que estava cá, que era o cristianismo.

E que chegou quando?

Nos séculos V e VI havia na Península Ibérica dois tipos de cristianismo. Na zona de Toledo era um cristianismo ariano, da classe dirigente, dos visigodos. Mais a sul havia outro, ligado à Tunísia, à Alexandria, que era o donatismo, um cristianismo monofisita, de um só Deus, que ia contra a trindade, o Pai, Filho e Espírito Santo. Havia na altura uma guerra entre o sul do Mediterrâneo, donatista e monofisita,  com Bizâncio e Roma, que eram católicos. O sul da Península Ibérica era donatista. Sabemos isso com toda a certeza, até pela arqueologia. 

Encontraram vestígios?

Encontrámos em Mértola um cemitério com lápides funerárias desses donatistas, que eram hostis à trindade. Esse cristianismo, que antecede o islão, já é monoteísta, com um só Deus. 

E o que aconteceu na Península Ibérica?

Toda essa base cristã do sul, esse cristianismo monofisita converteu-se ao islão devido aos contactos com os portos do Mediterrâneo, com Alexandria, com a Tunísia, o Oriente. Sabemos isso do ponto de vista histórico e arqueológico. Em Mértola, temos os cemitérios dos antigos cristãos monoteístas, temos uma basílica paleo-cristã do século VI e por cima do cemitério cristão temos um cemitério muçulmano já dos séculos VIII e IX. Agora estamos a fazer esse estudo arqueológico, que é a ligação entre um pai que ainda era cristão e um filho que já era muçulmano. O filho quis ser enterrado junto do pai, e sabemos isso porque conhecemos bem os rituais de enterramento muçulmanos, com a cabeça virada para sul. Os resultados vão ser dados pela análise de ADN, mas certamente que vamos constatar que um pai cristão já tem um filho muçulmano. O que vem provar o fenómeno da continuidade.  

A entrada do islão na Península Ibérica faz-se pelo comércio?

Precisamente. É através dos comerciantes que vêm nos barcos, até porque é uma religião parecida com a cristã, de salvação, de diálogo.

Há uma convivência sadia entre cristianismo e islão?

O cristianismo monofisita, do Norte de África e do Sul da Península, vem desde o século V. E a maioria vai-se convertendo lenta e pacificamente ao islão. O que resta desses cristãos ainda existe hoje no Egipto, são os coptas, que são monoteístas. Em todo o norte de África, até há bem pouco tempo ainda havia comunidades fortes de donatistas, na Síria, no Líbano, no Iraque – estão agora a liquidá-los na Síria. Ainda conheci, no norte da Síria, várias aldeias em que cada uma ainda tinha a sua comunidade cristã. Viam-se as torres da igreja e o minarete. Só agora é que estão a rebentar aquilo tudo. 

Nos livros de História destaca-se a batalha de Covadonga, em 720, em que Pelágio derrota os exércitos muçulmanos. Também é um mito?

O norte da Península Ibérica faz parte de outro território. Há uma espécie de fronteira a meio, que são as montanhas. O sul é Mediterrâneo, o norte é Atlântico, e a fronteira são a serra da Estrela, a serra de Gredos, Guadarrama, serras que vão até ao Ebro. E tudo é diferente do sul para o norte, as rodas dos carros, as técnicas de construção… as casas no sul são de taipa, no norte são de pedra. O norte tem uma ligação forte além-Pirenéus desde Carlos Magno. Ainda hoje existem os caminhos de Santiago, que fazem a ligação de Toulouse, na França, à Galiza. Já o sul, sempre esteve mais ligado ao Mediterrâneo. 

O que é que aconteceu realmente em Covadonga? Houve tropas muçulmanas tão a norte?

Iam lá para saquear. Tal como vinham do norte saquear as cidades do sul, roubar mulheres, crianças, gado, riquezas. Toda a Idade Média é feita dos chamados ataques de saqueio, de grupos a cavalo que vão atacar as cidades, e por isso a cidade é defendida com muralhas, com tropas. E então eles atacam os arredores, roubam as casas, levam mulheres e crianças para escravizar. 

Mas não eram ataques entre cristãos e muçulmanos? Podia haver cristãos e muçulmanos no mesmo bando de saqueadores?

Claro. Muitos dos bandos que iam atacar Santiago de Compostela, que foi saqueado por exércitos do sul, também tinham membros de tropas das Beiras e de Trás-os-Montes. Eram cavaleiros ligados aos senhores feudais do norte. Eram tudo menos muçulmanos. Iam roubar, só que em vez de irem para sul, iam para norte. Houve sempre cumplicidades nos ataques às cidades, porque mantinham uma certa autonomia, eram quase cidades-Estado, com o seu governo próprio e os seus poderes, as suas riquezas.  

Há também registos de uma grande batalha em Poitiers, em 732, em que se refere que é aí que as forças muçulmanas são impedidas de conquistar o Norte da Europa, numa batalha ganha por Charles Martel.

Isso é outro mito. Nessa altura, o atravessamento dos Pirenéus por tropas muçulmanas nunca aconteceu. Houve lutas, mas no sul de França. A França também teve os seus mouros, os albigenses ou cátaros, que foram conquistados pelo reino de França. Eram gente do Mediterrâneo, viviam no sul de França e tinham uma religião diferente dos do Norte. Eram considerados heréticos e foram atacados pelo rei de França, foram massacrados e o seu território foi conquistado e incorporado na França.

Tinham influência do Norte de África?

Eram do Mediterrâneo, estavam ligados ao comércio. As zonas de comércio são diferentes das zonas de camponeses. Havia trocas, tinha-se outra visão do mundo. Nessa altura havia o norte feudal, com os senhores agarrados aos seus castelos a dominar o território e o maralhal eram escravos ligados à terra. O sul era diferente: aí entra o comerciante, há contacto com os portos. E o sul de França também era assim.

Quando é que a religião começa a ser usada na reconquista?


Com a reconquista há um outro cristianismo a entrar na Península Ibérica, o católico, que vem de Roma. Houve tentativas, no século VI, de Bizâncio conquistar o Ocidente. Houve batalhas, Bizâncio conquistou parte do Norte de África, a actual Tunísia, e um pedaço da Península Ibérica, na costa do Mediterrâneo. Mas nunca conseguiu conquistar esta parte do extremo, do actual Algarve, que era hostil a Bizâncio.  

Quando é que a fé entra na reconquista? No final do século XI, com as cruzadas?

Antes de irem para o Oriente, as cruzadas começam aqui, na Península Ibérica, com a Ordem de Clunny, que depois vai dar a grande Ordem de Cister, e a reconquista, em Portugal, é comandada pela Ordem de Cister, sediada em Alcobaça, onde está o grande convento. Onde se dá o grande choque é em Coimbra, é aí a fronteira do Mediterrâneo. A reconquista é nos séculos XI e XII, e nessa altura a cidade tinha um cristianismo ligado ao sul, moçárabe, que não tinha nada a ver com Roma. Portanto, em 1111 dá-se o choque, é aí que se dá a grande batalha, perdida pelos cultos cristãos do sul, em que Coimbra é conquistada pelos franceses da Ordem de Cister.

Comandados por D. Henrique?

Coimbra é conquistada pelo D. Henrique, o pai do D. Afonso Henriques, que falava francês. O primeiro a falar alguma coisa de português ou parecido deve ter sido o D. Afonso Henriques. Aquilo era gente de fora. Não tinham muito a ver com isto, nem sequer tinham ideia que havia aqui um cristianismo diferente. A conquista de Coimbra foi uma transformação total. Depois, pouco a pouco foram andando para sul. Por exemplo, D. Afonso Henriques não conquistou Lisboa aos mouros, foi aos cristãos, porque a maioria ainda era cristã. Aliás, há documentos de um cruzado inglês que refere que as pessoas na rua gritavam, antes de serem mortas: "Valha-me Santa Maria!" 

Mas aprendemos na escola que D. Afonso Henriques conquistou Lisboa aos mouros. Isso não é verdade?

Claro que não. Lisboa era, na altura, uma cidade mais ao menos autónoma, tinha um território muito importante, que englobava toda a zona do baixo Tejo, que ia até Santarém. Era uma cidade importantíssima, porque permitia o contacto com o Norte, era o grande porto que permitia a navegação do Mediterrâneo para o Báltico: os barcos ficavam em Lisboa à espera que o vento virasse, porque o vento dominante é o noroeste, que é violento, e quando há muito vento nem pensar em seguir viagem, por isso os barcos às vezes ficavam retidos em Lisboa um mês. O mesmo acontecia no cabo de São Vicente, porque para dar a volta ao cabo era preciso que o vento virasse, os barcos ficavam lá, daí ter surgido ali a escola de Sagres.

Mértola tornou-se grandiosa porque houve aqui uma corrida ao ouro há 2700 anos

Como se caracterizava a Península Ibérica e o território onde é hoje Portugal no ano 711?
 
Nesse ano ainda havia uma certa importância das comunidades cristãs monoteístas. Temos aqui a prova em Mértola. Há dois baptistérios e um deles era monoteísta. E temos na basílica paleo-cristã várias lápides funerárias. E quem é que eles ali enterravam? Os eutiquers. Eutíquio é o fundador do monofisimo na zona da Líbia e do Egipto, e aqui estão enterrados três representantes da sua família religiosa, que são uma espécie de bispos. O Eutiquer era o presbítero da igreja de Mértola. Portanto, não temos qualquer dúvida que houve aqui, no século VI, uma importante comunidade donatista. A questão é: como é que depois essa comunidade se converte ao islão?

E como foi?

Quando o islão vai ganhando importância, nos séculos IX, X e XI, há uma lenta evolução na direcção do islão. Talvez no século XI já haja uma maioria muçulmana e não cristã. Mas aqui na cidade, porque nas aldeias os camponeses, que são teimosos, continuam cristãos. O árabe impôs-se como língua na cidade, mas nas aldeias manteve-se o dialecto, ainda apanhámos aqui e na serra algarvia dialectos pré-islâmicos, dos mais arcaicos do país. Em qualquer escavação, nas aldeias ou no interior da serra, encontramos objectos de origem muçulmana que vieram de Mértola, do sul, levados pelos comerciantes que iam lá vender. Mas a estrutura da casa, a alimentação, as formas religiosas, isso tudo se manteve. Por exemplo, não temos uma única prova de que tenha existido uma mesquita nas zonas rurais. Temos sim igrejinhas que nalguns casos foram repartidas por cristãos e muçulmanos. Mas só a partir do século XI.
Chegou a haver cristianismo e islão lado a lado?

Sim, eram espaços reutilizados. A igreja de Mértola aproveitou uma mesquita construída no século XII. Mas antes dessa mesquita já havia uma igreja ali, só que era mais pequena, e em época islâmica, durante talvez mais de 100 anos, foi utilizada como mesquita a mesma igreja. As duas comunidades usavam o mesmo espaço, não há dúvidas. E debaixo daquela igrejinha ainda estava o templo romano. Porque ninguém muda o sítio sagrado onde os deuses falam.

Como se caracterizavam as populações desta zona no início do século VIII?

Mértola era uma grande cidade cristã de tradição romana, que já o era quatro séculos antes de Cristo. Hoje também sabemos que já era importante como cidade fenícia, no século VII antes de Cisto.

E porquê?

Porque toda a zona da serra tinha ouro. Estamos em cima da chamada linha metalífera do Baixo Alentejo, que vai desde Rio Tinto, em Espanha, na zona de Sevilha e da serra Morena, até ao Canal Caveira. É uma faixa piritosa com todo o tipo de metais. E havia aqui ao lado de Mértola, na serra, uma série de afloramentos rochosos onde o ouro brilhava. Havia outros metais, mas foi o ouro que justificou que viesse para aqui muita gente de fora, até do Oriente, ligados aos gregos e fenícios. Por isso é que há aqui a chamada escrita do Sudoeste, que são cerca de 100 lápides funerárias que têm uma escrita que ainda não conseguimos decifrar, mas sabemos que as letras são de origem grega e fenícia, do século VII antes de Cristo. Nessa altura houve uma corrida ao ouro aqui em Mértola. 

E foi a partir daí que Mértola se tornou uma cidade importante?

Precisamente, por causa dos metais. E chegavam cá facilmente porque as marés subiam até aqui, a 70 km do mar. Como o rio não areou, porque o vale é muito encaixado e o Guadiana é bruto, quando há cheias leva tudo, é fácil vir até aqui, porque os barcos esperam que a maré baixe e depois aproveitam-na como motor natural. 

Tem dados que possam especificar o quotidiano, a vida das pessoas, o número de habitantes?

Sim, através da arqueologia, que nos dá uma informação que não é mentirosa. Ao contrário da escrita, que é encomendada. Quem é que sabia escrever? Só meia dúzia de pessoas, os escribas, que eram pagos pelos senhores e por isso escreviam o que eles lhes mandavam. A arte do historiador é saber ler nas entrelinhas, no que não está dito, porque o que está dito é sempre, ou quase sempre, mentira. A arqueologia dá-nos uma história daqueles que nunca tiveram história, das mulheres, da cozinha, o que se comia, como se comia, como era a região agrícola.  

Descobrem isso onde, nas lixeiras, nos restos?

Sim, nos restos abandonados e perdidos. Encontramos o que perderam os gajos que têm os bolsos rotos, os pobres. Temos hoje um repositório, não de certezas, porque nunca há certezas em história, mas de probabilidades muito próximas da verdade, do que era a estrutura social, as formas habitacionais e familiares daquela sociedade.

E o que revelam essas provas?

Que foi uma sociedade complexa, que não tem nada a ver com as aristocracias e aquelas que passaram a ser indicadas só e apenas pelos textos. Não é os padres, não é os senhores da terra… Por exemplo, numa vila romana, num palacete, sabemos como é que eles viviam, mas também sabemos como viviam os criados e os escravos, e esses é que nos dão a informação dos outros, temos a história vista por dentro, pela tripa. 

A reconquista cristã, mais do que ser uma questão de fé, poderia ser uma oportunidade dos povos guerreiros do Norte virem saquear as cidades mais ricas do Sul?

Foi sempre assim, vejam-se os vikings, que vinham os seus barcos saquear os portos do sul. Chegaram ao Mediterrâneo, até à actual Sicília. 

E entre os povos da Península Ibérica?

É diferente. O Norte era uma zona feudalizada. Aquilo é o senhor com a sua terra fortificada, porque no Norte nem sequer havia cidades, eram ninhos de águia, castelos isolados. As cidades só surgem depois da reconquista, aí nos séculos XIII e XIV. Por exemplo, nas alturas das grandes cidades do Mediterrâneo, Sevilha, Córdova, Lisboa, até Mértola, essas eram cidades já com uma estrutura, eram fortificadas para proteger os habitantes. No Norte, a única cidade fortificada era a de Braga, porque ficou com a muralha da época romana. De resto, havia só castelos autóctones, onde viviam os senhores e a sua família, que tinham um exército com 30, 50 homens bem armados e que dominavam a região. Os aldeões tinham de pagar uma parte ao senhor, e ele próprio de vez em quando ia lá com os seus homens roubar mulheres, gado, cereais. Isso acontecia mais nas orlas das fronteiras com outros senhores, estavam muito em guerra com os outros ali à volta. Os camponeses nessa fronteira estavam estavam tramados, eram atacados por um e por outro.  

Nesses séculos VIII, IX, X, em que o Norte era feudal, o Sul já era mais organizado em cidades, era mais evoluído?

Sim, no sul houve sempre grandes cidades portuárias, era um mundo de comércio, que não tem nada a ver com o norte feudal. E o feudalismo só chegou ao sul com a reconquista, quem o levou foi a Ordem de Santiago, que organizou o Alentejo em função dos territórios e espaços para a Ordem. Os agricultores tinham de pagar à Ordem parte dos seus cereais, era um feudalismo diferente, do tipo de ordens militares. No sul, o feudalismo só chegou à força, militarizado, enquanto no norte estava tudo organizado em função do feudalismo, porque não havia cidades. A única grande cidade do sul no norte é Coimbra, ou então Toledo. Estão na fronteira, acima delas não havia nada.

E o Porto?

O Porto era só um nucleozinho ligado ao comércio marítimo. Era o términus das vias do sul, e era uma espécie de feudo do bispo.  

Com a reconquista, qual era o propósito de D. Afonso Henriques: formar um reino e ser rei, ter riquezas, expandir o cristianismo?

Quando começaram as cruzadas, o mundo feudal do norte, tanto na Península Ibérica como na França, avança sobre as cidades e as riquezas do sul, os seus palácios, os seus portos, esse é um mundo desconhecido para os povos do Norte. Nessa altura, cidades como Londres ou Paris são cidades em madeira, não têm ruas, o chão é de lama. Só se começam a organizar em estrutura urbana lá para finais do século XII. Paris ficava ali à volta da catedral de Notre Dame, de resto as ruas têm uns passadiços feitos em madeira e não há esgotos. Por exemplo, aqui em cima no bairro almóada de Mértola, todas aquelas ruas têm esgotos antes do século XII. O bairro fica fora da cidade mas está organizado numa estrutura urbana, com canalizações. Em Paris, sabem como é que eram os esgotos? "Água vai"! E das janelas atiravam tudo para a rua. É um mundo perfeitamente inimaginável de porcaria. Mas avançamos para o sul e é diferente. Lyon, ainda em França, já é uma cidade Mediterrânica, assim como Marselha. Córdova, nos séculos IX e X, era a maior cidade da Península Ibérica. À volta da sua gigantesca mesquita podiam viver entre 3 e 4 milhões de pessoas.

No actual território português, a maior era Lisboa?

Sim, especialmente a partir dos séculos X e XI. Mais a sul tínhamos Mértola, que podia ter 6 mil habitantes, Faro podia ter 10 mil, mas Lisboa teria perto de 500 mil habitantes.

Como se explica que a reconquista cristã só termine em 1492?

Uma das explicações tem a ver com estes dois mundos que se confrontam na altura: o mundo feudal, atrasado, ainda ligado às estruturas agrárias, em confronto com um mundo urbano que tem uma estrutura civilizacional muito profunda, que vai resistindo ao longo dos séculos. O ataque do Norte é feito de forma esporádica por grupos armados de cavalaria, que atacam e fogem. Saqueiam os povos que têm umas hortas e uns campos à volta das cidades, destroem muitas vezes as culturas de propósito. À medida que passam os séculos, eles vão tendo mais poder, e há uma altura em que conseguem dominar alguns dos reinos do sul, aqueles reinos tipo cidades-Estado, e impõem-lhes um tributo, ameaçam que se não pagarem vão lá e rebentam com tudo. Vão-se apoderando do sul lentamente, até ficarem apenas as zonas de Granada e Málaga, que são zonas de grande progresso, muito urbanizado, de grande comércio mediterrânico, são das zonas mais ricas da Península Ibérica.

Fala dos ataques e saques. Então não havia a preocupação de trazer população para ocupar as cidades e zonas conquistadas?

A conquista de uma cidade implica povoá-la, porque toda a população é posta fora. Eles matavam as pessoas ou então punham a população fora da muralha. Há essa tradição dos bairros dos arrabaldes que se reorganizam em novos bairros, é aí que se formam as mourarias. As pessoas ficam cá fora e continuam a trabalhar, são artesãos, citadinos mais desenvolvidos que sabem tudo, conhecem as tecnologias de construção, eles é que vão justificar o progresso, o dinheiro e o rendimento que vão dar aos conquistadores, que não sabem nada disso, só sabem de armas.

Mas os conquistadores não levam pessoas com eles?

A partir de certa altura começam a vir povoadores do Norte, como aconteceu no caso de Lisboa e Santarém. Há zonas que sempre serviram de grande povoamento para o sul, como o Minho, que é uma espécie de viveiro. São terras férteis, com muita água, com uma estrutura milenar, com famílias grandes, com muitos filhos. Vinham do Minho e da Galiza, a zona é a mesma. No século XIX, Lisboa ainda tinha um grande povoamento de galegos, eram os barbeiros, os pequenos comerciantes.

O cristianismo ensinou coisas ao islamismo?

O cristianismo converteu-se ao islão. Antes de serem muçulmanos eram cristãos, mas monoteístas, com um Deus único e absoluto. Esta trindade recriada pelo cristianismo romano foi muito influenciada pelo mundo camponês, da terra, porque os camponeses precisam de ter vários deuses, para as culturas e as estações do ano. Porque em cada altura em que se semeia é fundamental ter um protector, um santo, os muitos deuses pequeninos que ajudam à vida de todos os dias, da mulher, do nascimento do filho…

E o mundo do comércio não precisa disso?

Não. Vejamos… o próprio islão necessitou do milagre, Alá veio, passou a palavra a Moamé, e Maomé, milagre, mandou os seus soldados para conquistar o mundo inteiro, portanto criaram a mitologia da grande expansão militar. Quando é que os militares chegaram à Indonésia, que é hoje o maior país muçulmano do mundo? Nunca houve lá militares. A religião chegou pelo comércio, pelos barcos, como aconteceu em todo o lado.

Portanto, o islão não foi imposto à força?

Não. Imposto à força foi o cristianismo na conquista colonial, na África, no Brasil, na Índia. Aí sim, foi à força da espadeirada, porque a malta não estava disposta a isso.

Os povos muçulmanos eram a vanguarda científica nesses séculos da Idade Média?

Os comerciantes, o mundo mercantil do Mediterrâneo, nesta bacia fantástica onde se desenvolveram todas as religiões, dos judeus, dos cristãos, dos muçulmanos, esta civilização é que originou, através do comércio, a grande civilização moderna.

Na ciência náutica, criaram o astrolábio, que usamos nos descobrimentos. De que maneira é que os portugueses beneficiaram dessa presença muçulmana na Península Ibérica?

A construção naval, que foi uma das nossas arcas fundamentais da expansão, começou no Mediterrâneo. Sabemos hoje que a palavra barco surge pela primeira vez no século II depois de Cristo no Algarve. E não é por acaso, porque a zona do Algarve é a boca, é a entrada em Gibraltar. Aquele golfo das Éguas, onde está o Algarve, era até há pouco tempo o sítio marítimo do mundo mais rico em peixe. Não foi por acaso que nessa zona surgiram as tecnologias mais avançadas de pesca e de construção naval, como as técnicas de cerco ou a nomenclatura de toda a construção de barcos, que ainda hoje é idêntica.

E tiramos partido disso?

 Criamos o mito da escola de Sagres, não da escola do Douro, e isso não é por caso. Não é por acaso que o nosso mito da expansão está ligado a Sagres. Obviamente que nunca houve ali nenhuma escola, mas era o sítio onde estavam concentrados todos os barcos que vinham do Mediterrâneo e queriam viajar para Norte, ficavam ali à espera que os ventos mudassem.

Ficavam onde?

Há ali muitos portos de abrigo. Ficavam à espera, iam fazendo reparações. A zona em Portugal onde estavam concentrados todos os saberes da construção naval é a de Sagres. E não é por acaso que depois foi dali que saíram as primeiras aventuras, as navegações para sul. Os marinheiros, os técnicos do mar, os construtores, os sabedores, estavam ali todos concentrados, às vezes meses seguidos à espera que o vento mudasse e pudessem seguir viagem.
  
Portugal pode ajudar a desviar a juventude magrebina do Daesh

Nasceu em Tondela. Como é que veio para Mértola?

É uma longa história. Saí de casa com 16 anos e fui trabalhar para uma fábrica de cerâmicas em Aveiro, a Aleluia. E porquê? Porque chumbei no 5º ano e estava com problemas com o meu pai e nesse sentido não quis sobrecarregá-lo por ter perdido o ano e achei que devia ir ganhar a vida.

Foi em Aveiro que começou o seu interesse pela política?

Sim. Entrei em contacto com a célula do PCP com 18 anos, logo ali comecei a fazer trabalho político. Depois, um companheiro meu foi preso e fui para o Porto fazer o curso de Belas-Artes, escolhi escultura. Continuei a fazer trabalho político, pichagens e trabalho nocturno, fomos presos, estive quase um ano preso, na PIDE do Porto e em Paços de Ferreira.

Porque é que fugiu para Marrocos?

A guerra colonial começou em Fevereiro [1961], eu nesse mês fui à inspecção, fui aprovado para todo o serviço e mandaram-me para a prisão militar de Penamacor. Escapei antes de lá chegar e andei fugido pelo sul do País. Entretanto, casei-me. A Manuela, a minha mulher, coitadinha, por minha causa também esteve presa, apesar de nunca ter estado ligada ao PCP. Mas casei-me porque queria fugir com ela para fora de Portugal. Não queria fazer a tropa, embora o PCP nos mandasse para a guerra, mas um companheiro nosso foi antes e foi logo morto. E então eu e os meus companheiros decidimos que não íamos para a guerra, que era uma coisa estúpida e não estávamos disponíveis para sermos liquidados.

Como foi a fuga?

Arranjamos um barquinho no Porto. Não havia hipótese de fugir pela fronteira porque era muito caro. E então eu e mais seis companheiros metemo-nos no barco a caminho de Marrocos. Fizemos a costa toda de Portugal até ao sul, até à Arrifana, e aí metemo-nos no alto mar, feitos parvos, aquilo nunca chegava a Marrocos porque era um motorzito fora de bordo, a gasolina só ia dar até meio do caminho, mas erámos putos, não percebíamos nada daquilo. Passados três ou quatro dias fomos apanhados no meio do mar por um petroleiro que nos levou para Gibraltar. Estivemos presos em Gibraltar, pelos ingleses, mas depois conseguimos fugir e chegar a Marrocos, a Tânger. Aí também foi complicado porque entretanto a minha mulher já ia grávida, coitada, fez a viagem toda a vomitar por causa da minha primeira filha, a Nádia, que nasceu em Marrocos.
Esteve em Marrocos quanto tempo?

Dois anos. Estive lá a trabalhar em arquitectura, fui desenhador no ministério do Urbanismo, depois fui chefe maquetista e depois fomos para Praga. Daí queriam mandar-nos para Berlim, mas eu nunca gostei dos alemães e não quis ir. E então seguimos para a Roménia. Estive em Bucareste 12 anos a fazer emissões de rádio.

Sempre com o apoio do Partido Comunista?

Não, só até 1968. Fomos para Bucareste fazer emissões de rádio para Angola, Moçambique, para Portugal, para o Brasil, fazíamos três emissões diárias.

Esteve lá muito tempo.

Sim, o romeno é a minha segunda língua. Mas com a invasão de Praga, em 1968, saí do partido, eu e todos os que estávamos lá, erámos uns 20, em Praga, Moscovo, Varsóvia, Belgrado. Decidi também fazer um curso em Bucareste, de História da Arte Bizantina. Entretanto, a minha mulher veio embora, chegou a Portugal e foi presa outra vez, foi uma estupidez, eu já não vim, fiquei em Paris a fazer uma espécie de doutoramento, mas que não acabei porque entretanto deu-se o 25 de Abril.

Quando é que voltou para Portugal?

No dia seguinte, a 26, no primeiro avião que entrou em Portugal. Vinha lá o Álvaro Cunhal, mas nessa altura a gente já não se falava. Depois fui para a Faculdade de Letras de Lisboa, estive lá 10 anos a dar aulas de História da Arte. Pouco depois de lá chegar foi meu aluno o presidente da Câmara de Mértola, o Serrão Martins, que fez um trabalho sobre os arquivos de Mértola. Eu fui lá com ele ver os arquivos, foi na Primavera, em 1976, e depois comecei a vir para cá todos os anos com os meus alunos, organizava umas campanhas. Mas logo na primeira viagem, com o Serrão Martins, apanhámos ali uns cacos de cerâmica islâmica junto ao castelo.

E entretanto saiu da Faculdade de Letras.

Sim, em 1984. A velhada reaccionária começou a tomar conta daquilo e eu já estava a mais. Decidi vir para Mértola, fundámos o Campo Arqueológico de Mértola, o Parque Natural do Vale do Guadiana – ainda fui director durante seis anos –, também estive na Câmara, na divisão cultural, uns dez anos, e depois reformei-me. E um gajo reforma-se para poder começar a trabalhar.

Qual foi a descoberta mais importante que fez em Mértola?

É difícil, são 40 anos de trabalho. O mais importante foi a descoberta do que estivemos a falar, que não há islão nenhum, que não há árabes aqui. Desde o princípio que andámos à procura de vestígios das invasões mas não há nada disso. A grande descoberta é o fenómeno da conversão pacífica de uma população ao islão.

E em termos de objectos, há algum marcante?

Hoje temos um dos melhores museus de arte islâmica do mundo, até pela simples razão de que em todo o Magrebe não há um único museu de arte islâmica. Marrocos, Argélia, Tunísia, não têm. E porquê? Porque a arqueologia foi feita pelos franceses, que deram cabo dos níveis muçulmanos para chegar aos romanos, para provar que aquilo era o império romano. Portanto, apagou-se uma civilização para chegar a outra. Nós aqui [em Mértola] podíamos ter apagado o nível do bairro almóada para chegar ao baptistério e ao fórum romano e ao palácio episcopal, porque é difícil guardar os dois ou três níveis – é preciso muita ciência para registar e depois apagar.

O que é que ainda gostava de fazer em Mértola?

Neste momento, precisamente por causa dessa falta de memória que existe no Magrebe, estamos a trabalhar com várias universidades de Marrocos, da Argélia, da Tunísia. Os estudantes vêm para cá fazer doutoramentos, vêm para cá trabalhar porque não têm lá nada. Hoje há dois caminhos possíveis, ou um gajo entra para o Daesh [Estado Islâmico] ou entra para a história a sério. E a juventude magrebina quer conhecer, quer saber o seu passado. E como não têm lá nada, têm de vir aqui.

E em Mértola há muita informação.

Temos aqui milhares de peças da época islâmica, e muitas informações. Temos uma boa rede de colaboração com o Magrebe, e espero criar aqui uma rede interessante. Temos resultados arqueológicos que revelam que todo este território do sul de Portugal e do Norte de África pertencia à mesma cultura. A língua berbere, o tamazight, era falada aqui antes da romanização. Portanto, nós somos os mesmos. Houve gente que veio para cá, claro que sim, mas isso não marcou, temos a mesma cultura, os mesmos saberes, o Rife, a Cabília. Agora interessa é aprofundar essa relação, que nos é muito mais próxima do que em relação aos alemães e companhia.
 
O Daesh [Estado Islâmico] está a desvirtuar o que é o islão?

 O Daesh é hoje cada vez mais um caminho percorrido pela marginalidade do Norte de África, vindo do Oriente. Está em crescendo, a gente pensa que não, mas é verdade, há toda uma juventude que luta hoje contra a colonização antiga da Europa, contra toda a opressão feita pelos ingleses e pelos franceses no Norte de África e no Oriente, e essa juventude está-se a refugiar no Daesh. E Portugal tem hoje um papel fundamental nesta ligação científica, técnica e histórica com o Magrebe. Portugal pode ajudar a desviar do Daesh toda uma massa de juventude que quer saber, que não quer ser marginal, e que pode cair no Daesh se não tiver o nosso apoio técnico, informativo e universitário, porque eles têm ódio à França, que os colonizou, e têm dificuldades com a Espanha por várias razões.

Aquelas ameaças que o Estado Islâmico tem feito, de querer reconquistar o Al-Andaluz, são para levar a sério ou é mais propaganda?

Aquilo não é nada, e cada um arranja os mitos que pode. Neste momento há toda uma juventude marginalizada,  chutada, que começou na França. O racismo está a crescer em certas zonas de França. A grande frente contra o Daesh, do meu ponto de vista, somos nós aqui, a perceber e a entender e a aproximar aquela nova juventude que está a surgir nesses países, que não têm para onde ir, que não têm nenhum tipo de perspectivas, não têm nenhum tipo de futuro possível, porque estão a caminho da mais terrível marginalidade.

De que maneira é que ter estado em Marrocos, e depois ter estudado Arte Bizantina, influenciou o seu gosto e interesse pela cultura islâmica?

Temos aqui uma imensa presença técnica e tecnológica da arquitectura bizantina dos séculos V e VI. Em Bucareste também fiz lá muito trabalho, andei lá numas ruínas bizantinas parecidas com as nossas aqui. Portanto, é um mundo que já me é comum há muitos anos. Mas em Marrocos foi fundamentalmente uma questão política. Tive contacto com um povo e com uma cultura excepcionais, fomos muito bem recebidos, com todo o carinho. Por isso é que a minha filha tem nome marroquino.

Nádia.

Sim, que quer dizer gota de orvalho em árabe. Eu era desenhador de um arquitecto russo branco, para quem estava a trabalhar nessa altura em Marrocos (ele não sabia fazer escadas em caracol e eu é que lhas fazia), e depois quando lhe anuncio que tinha nascido a minha filha e que lhe ia dar um nome marroquino, o gajo expulsou-me, pôs-me na rua. Ainda hoje é a minha recordação mais forte dos europeus em Marrocos. Fui sempre bem recebido, com amizade e carinho, pelos marroquinos, e sempre a apanhar estes colonizadores da pior espécie.

Voltando à questão da lenta conversão do cristianismo ao islão. Quando chegou a Mértola também tinha a ideia de que tinha havido essa invasão islâmica, essa imposição à força, e descobriu o contrário?

Tinha esses princípios, que estavam mais do que firmados, não só em mim como em toda a minha geração, como é normal. E aqui, na prática, no terreno, andei à procura da confirmação desse mundo e não o encontrei. Não há nenhuma prova arqueológica – e, como eu já disse, a arqueologia não mente, encontra-se o que está ou não se encontra. Durante todos estes anos fomos encontrar o oposto, apenas há vestígios de fenómenos de continuidade. O que me marcou foi encontrar estes fantásticos baptistérios, a basílica paleo-cristã com as suas lápides em grego. Não inventamos, estão lá escritas em grego com aqueles nomes dos fundadores do monofisismo.

O que existe aqui é uma micro-escala do que existe noutros sítios?

Temos aqui um espólio excepcional, mas nada garante que noutros locais não haja também. Não estão trabalhados. Nunca se escavou em Alcácer do Sal em condições. Aqui não tenho nenhuma dúvida, agora a islamização não foi só aqui, foi num território mais alargado. Nesta parte ocidental da Península Ibérica, temos trabalhos mais aprofundados em Beja, em toda esta zona da costa do Algarve, até Alcácer do Sal, Évora. Mas isto um dia tem de ser mais aprofundado. Será muito mais estendido este monofisismo? É possível e muito provável. Em Lisboa também não está muito trabalhado, longe disso.
 
De que maneira é que o que aconteceu aqui serve para provar que não houve essa imposição do islão pela força, como está nos livros de História?

Isso também é já de uma forma teórica aceite pacificamente. Faltava a confirmação arqueológica, uma confirmação mais sólida, porque a questão em si, teórica, é perfeitamente justificável. Não pode ter sido numa conquista militar, há muita violência ideológica por cima. Por exemplo, coisas simples, já verificadas noutras épocas: Gibraltar, e há mais duas ou três montanhas na Península Ibérica que se chamam Gibraltar. O que significa Gibraltar? Gib, em árabe, quer dizer montanha, e o resto está na tradição religiosa islâmica como monte do Tarik, ou seja, gib, montanha do Tarik.

Diz-se que Tarik é que começou a invasão islâmica, em 711, e que o nome Gibraltar surgiu associado a ele.

Pois, mas nós podemos dizer a coisa ao contrário, se for gib, monte do altar, porque aquilo era a montanha do Hércules, e há outros montes do altar, é outra forma de ver as coisas. Também sabemos que nunca ninguém deu um nome a uma montanha, a montanha é que dá o nome às pessoas. Há para aí outros mitos, e é preciso desmontá-los. O Ibn Marwan, que é originário da serra do Marvão, e toda a história construída à volta de um Ibn Marwan que é um herói, é preciso desmontar isso, porque obviamente que não se pode pô-lo em causa, mas obviamente que não foi ele a dar o nome a Marvão, Marvão é que lhe deu o nome a ele. São questões históricas que não são admissíveis, e que não podem ser provadas, mas são questões de bom senso.

Os tais mitos, como Covadonga, de onde surgiu o herói Pelágio, que terá derrotado os mouros em 720.

Pois, mas só começa a haver invasões e ataques mais tarde. Santiago de Compostela foi atacada por tropas vindas do sul, a cidade foi saqueada por vários chefes militares que iam lá roubar, e vice-versa, eles também vinham ao sul fazer uma ronda de ataques.

Essa batalha que envolve Pelágio a derrotar os exércitos islâmicos é um mito?

Essa zona onde está Covadonga é uma com vales muito bem defendidos, onde há povos de montanha que defendiam os seus territórios. Barricavam-se ali, por isso é que as várias enxurradas de ataques que vinham do sul nunca entraram, porque eles defendiam-se bem.

Mas era normal os povos do sul da Península e do Mediterrâneo chegarem lá tão longe, ao Norte?

Houve ataques, mas não dos povos do Mediterrâneo, muitas daquelas razias eram feitas também com os grupos armados dos senhores ali das Beiras, que iam lá saquear, até porque a partir de certa altura Santiago de Compostela foi uma cidade com muita peregrinação e então havia muitos ataques, iam lá roubar as riquezas, o dinheiro que havia de algumas ofertas. A partir do século X começou a haver peregrinação quando foi inventado o Santiago, o mito de que o santo foi ali encontrado numa barca.

Novamente o mito.

A questão é que esses mitos transformam-se em países, em guerras importantes, portanto são mitos gordos, muito consistentes, e não convém tocar-lhes a não ser com muito jeito. A malta não gosta, e com razão, então estão aqui a chamar nomes ao nosso santiagozinho, ele é que nos faz os milagres, ele é que nos salvou a vida, porque se não fosse o Santiago e todas as peregrinações, coitadinhos deles, o que é que tinham ali?

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Fonte: Revista Sábado - http://www.sabado.pt/vida/pessoas/detalhe/claudio-torres-d-afonso-henriques-nao-conquistou-lisboa-aos-mouros-foi-aos-cristaos?ref=HP_DestaquesPrincipais

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