História social e económica dos Ismailis de Moçambique - Séc. XX
"A historiografia recente em torno da presença indiana em Moçambique e nos territórios da África Oriental e Centro Oriental é unânime em evidenciar a sua vocação comercial no contexto da ocupação colonial dos séculos XIX-XX. No caso de Moçambique as fontes documentais disponíveis do tempo da colonização portuguesa atestam a sua importância quer no mundo rural, assegurando a monetarização dos produtos da agricultura africana, essenciais à manutenção da economia de exportação colonial, quer na dinamização de um segmento importante do comércio de retalho em contexto urbano, direccionado a um espectro amplo e heterogéneo de consumidores que estruturavam o mercado interno no tempo colonial.
As análises inspiradas em tais fontes privilegiam um enfoque macro histórico da acção e inscrição espacial daqueles agentes económicos e raramente dão conta da natureza heterogénea das comunidades indianas em contexto moçambicano, do ponto de vista religioso e sócio económico.
Esta sua invisibilidade respeita a práticas económicas que lhes são próprias, os processos que conduzem à sua integração na sociedade colonial, e oculta também a natureza das relações existentes no seu seio ou resultantes da sua interacção com as sociedades africanas, os agentes económicos europeus e a administração colonial. O que evidencia a necessidade da construção de uma nova história da colonização a partir do testemunho dos membros das diferentes comunidades indianas originárias de Moçambique permitindo alargar e enriquecer a visão redutora das percepções holísticas consagradas pela historiografia económica da colonização, a partir do único recurso a fontes escritas.
Foi a intenção de responder a este desafio que nos conduziu a recolher narrativas de memória junto a
membros da comunidade indiana Ismaili, presentes em Moçambique no período colonial do Estado Novo (1930-74).
Os discursos produzidos pelos ismailis sobre a vida económica situam-se entre duas polaridades : por um lado remetem para um mito de representação de si que sublinha a resiliência das famílias pioneiras face às vicissitudes do percurso em terras africanas. Por outro, manifesta-se a visão, de maior actualidade, que atribui o seu dinamismo e sucesso empresarial à especificidade de uma sólida organização comunitária, ancorada na fidelidade a Aga Khan, líder supremo e responsável pela sua orientação religiosa e económica. Em torno destas visões se organiza e transmite a sua memória do passado.
Ora acontece que o questionamento dos actores, uma vez afastada a tentação de uma visão triunfalista que lhes atribui um sucesso linear, dá-nos conta de uma história micro económica, atravessada por múltiplos desafios e contingências, a qual não se distingue substancialmente da trajectória vivida por indianos de outras comunidades.
Se o efeito desta dimensão económica não se limita à manifestação de uma racionalidade mercantil abstracta, desvinculada dos quadros institucionais pré-existentes, das relações sociais e dos laços comunitários, ela deve então ser apreendida enquanto «facto social Global». O que nos remete, por um lado, para o contexto da colonização portuguesa em Moçambique, definidor tanto das oportunidades de inserção como das trajectórias socioeconómicas das comunidades indianas, e ismailis em particular. Por outro, para as articulações que o económico estabelece seja com as solidariedades matrimoniais e comunitárias seja com a sociedade colonial nas suas múltiplas componentes.
São estas múltiplas dimensões do económico que nos permitirão enraizar as trajectórias individuais e
familiares numa grelha simultaneamente Micro e Macro Económica. Por um lado é pela sua inserção nestes quadros que se lhes confere inteligibilidade. Por outro, o desafio de uma nova leitura, visando abrir a caixa negra do enfoque macroeconómico, que reduz os comerciantes indianos a uma entidade abstracta, leva-nos a cruzar a substância viva das narrativas de memória que as trajectórias consagram, com o testemunho reavaliado de fontes documentais, salientando pormenores inéditos das trajectórias dos membros da comunidade Ismaili de Moçambique."
Joana Pereira Leite (CEsA/ISEG)
Nicole Khouri (CEMAF/ Univ. Paris 1)
Este ensaio pode ser lido nesta ligação, em formato .PDF: https://pascal.iseg.utl.pt/~cesa/files/Doc_trabalho/WP92.pdf
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