A sexualidade no Islã Clássico através de Nafzawi em "Campos Perfumados" (séc. XV)

No momento em que o mundo árabe redescobre seus erotólogos do Islã Clássico, produzindo diversas obras sobre o corpo, é hora também do Ocidente descobrir tal pensamento que norteava os "falasifa" (filósofos árabes) do Medievo. Uma das ciências mais prestigiadas no Islã Clássico (que está compreendida na Idade Média do Ocidente) era a "Ilm Al-Bah", isto é, a Erotologia. Para os muçulmanos, o sexo era um dom de Deus, devendo ser desfrutado em sua plenitude, e ansiado como uma das promessas a serem vivenciadas no paraíso. O seu estudo era, portanto, uma prova de fé. No livro “Campos Perfumados”, Nafzawi traz basicamente um manual para a cópula, utilizando o método do exemplo para justificar suas orientações, as quais acabam por exprimir os valores e as relações entre os sujeitos de sua sociedade. 
Celia Daniele Moreira de Souza, graduanda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil (celia.daniele@yahoo.com.br)

Introdução

“Os Campos Perfumados” é notadamente a obra árabe de erotologia mais conhecida do Ocidente. Escrita pelo xeique Muhammad Al-Nafzawi no inícío do séc. XV (aproximadamente entre 1410 e 1434), alcançou maior destaque graças ao aventureiro britânico Sir Richard Francis Burton, que no final do séc. XIX foi responsável pela divulgação do livro, traduzindo-o do francês para o inglês. (2) Anteriormente a obra fora traduzida do árabe para o francês em 1850 por “Baron R...”, o qual até hoje não se sabe a verdadeira identidade. Este trabalho apresenta as minhas impressões no campo de pesquisa da Erotologia Árabe, visando a redação de minha monografia de bacharelado.

A questão da Erotologia no Mundo Árabe-Islâmico Clássico

Como afirma o pesquisador tunisiano Bouhdiba, a sexualidade no Islã Clássico está extremamente relacionada às concepções de céu (janna) e inferno (nar). (3) Para o muçulmano, a sexualidade não é somente uma característica do corpo, ela o transcende, ela se atrela à alma: o sexo não é uma atividade terrena, o sexo é uma promessa de Deus (Allah) para o paraíso.

Nesse sentido, é importante notar que no contexto analisado não há um dualismo entre corpo e alma, sequer há uma separação entre estes dois conceitos. O corpo e a alma são unos, as sensações corporais são também extracorporais, o asseio do corpo é o asseio da alma. Daí a necessidade das abluções, um corpo limpo reflete uma alma limpa, as bençãos de Deus só recaem sobre aqueles que estão purificados, e a purificação do corpo é a via necessária para se estabelecer um diálogo com o sagrado. (4)

Desta forma, as relações estabelecidas durante a vida, assim como as atividades prazeirosas são apenas um reflexo “embaçado” daquilo que se terá no paraíso. E dentre elas, aquela que se aguarda como a principal é o gozo eterno, o “orgasmo de 80 anos” (5), conforme menciona Bouhdiba. O sexo não apenas se dará entre os cônjuges da vida terrena, como também entre os(as) huris, seres que em alguns momentos surgem como donzelas, outrora como jovens mancebos, o que dá uma interpretação dúbia de quem disfrutará de seus encantos: somente o homem, ou também a mulher. (6) Além disso, quando expulsos do paraíso, o homem e a mulher não foram impedidos de gozar os prazeres da vida, conforme diz:“Todavia, Satã os seduziu, fazendo com que saíssem do estado (de felicidade) em que se encontravam. Então dissemos: Descei! Sereis inimigos uns dos outros, e, na terra,tereis residência e gozo transitórios.” (7)

Para esta sociedade, então, refletir e buscar o prazer no sexo não é sinônimo de culpa, não está em conflito com a religião. A busca do prazer será permitida no seio do Islã, uma vez que mesmo Adão e Eva tendo sido expulsos do paraíso, não lhes é proibido o direito de terem prazer (ainda que passageiro).

Na Era de Ouro do Islã (8), portanto, criou-se uma ciência para estudar o sexo: "ilm al bah", a Erotologia. Essa elevação de status para ciência provavelmente ocorreu no período abássida, época em que a filosofia árabe, nomeada por "falsafa" entre os árabes, florescia no mundo islamizado, ainda que Nafzawi seja de uma época posterior, a dos emirados. A erotologia, da mesma forma que as outras ciências deste período, sofreu densa influência das obras gregas – Aristóteles, Galeno, Platão – especialmente das obras médicas, que convergiam nos pontos referentes ao corpo e seus cuidados. A função desta ciência era a busca do prazer sexual, para homens e mulheres, de forma que através da ejaculação do homem, do sêmen, se “recriasse a obra de Deus” (9) (gerasse descendência). Na criação do homem e da mulher por Deus, a única diferença é que o homem foi criado do barro e do sêmen divino, enquanto na criação da mulher não há nenhuma substância específica mencionada.

A partir dos séc. XII a XIII há uma certa estabilização das produções filosóficas, ocasionada pela crescente descentralização do poder desde metade do séc. IX, com a incorporação, ataque e até a invasão de vários povos nos domínios anteriormente árabe-muçulmanos, tal como bérberes, cristãos, turcos, o que transformou a anterior unidade do império em uma realidade diversificada, em que os panoramas sócio-políticos e culturais se diferenciavam em cada região (10). Dentro deste contexto desarraigador, a "falsafa" deixou também de representar uma unidade, não mais se identificando como uma ciência abrangente, e ficando relegada a regiões específicas, como a Síria e o Egito. A invasão dos mongóis no séc. XIII determinou o fim do califado e o fim da unidade política e cultural, (11" de forma que a erotologia como ciência foi desaparecendo, assim como a "falsafa" foi se modificando até se diferenciar conforme as realidades de um contexto próprio e muitas vezes distantes da sua forma original. Nafzawi nos fala de um período decadente da "falsafa", ao mesmo tempo fala num período de florescimento cultural de Túnis, ainda guardando aspectos que tanto o aproximam quanto o distanciam da Erotologia da Era de Ouro Islâmica.12

“Os Campos Perfumados”: a cópula e seu contexto

A obra “Os Campos Perfumados” fora encomendada a Nafzawi pelo vizir do sultão de Túnis,13 o vizir argeliano Muhammad ibn „Awana Al-Zawawi. Notadamente, apesar de dar a ideia de ser uma obra dirigida a homens e mulheres, o texto se direciona a leitores masculinos, sendo mais um manual para a cópula, do que um tratado de erotologia. A mulher em todo o momento não é o sujeito, mas o objeto analisado, e somente em brevíssimas e pouco aprofundadas passagens que se comenta sobre características masculinas, o que nos leva a crer que o autor não julgou necessário abordá-las por considerar assunto já conhecido de seu receptor.

A busca pelo prazer é o assunto principal da obra de Nafzawi, mas atrelado a ele, encontram-se inúmeras informações que vão desde a dicas relacionadas à saúde como posições políticas-religiosas, como quando trata do “falso profeta” Musaylima. 14 O prazer não vem como informação pura e objetiva, mas carregada de subjetividade e valores, que exprimem o pensamento de Nafzawi e de seus contemporâneos.

Dos assuntos tratados, podemos extrair tais informações sobre o contexto cultural de Nafzawi em diversas passagens. Nos capítulos de I a IV, em que o autor enumera o belo e o feio – em homens e mulheres – para sua sociedade, temos uma curiosidade: a virtude da mulher permanece sendo a sua beleza, mas uma novidade é instaurada para garantir a qualidade desta virtude, a castidade. É muito interessante notar que este aspecto não aparece em erotólogos anteriores a Nafzawi, como em Al-Tifashi, autor de “Delícias dos Corações”, do séc. XIII que, por exemplo, conta a história de uma bela mulher que propõe a um comerciante que faça sexo anal com ela. Por ser bela, mesmo tendo cometido um ato ilícito – primeiro por procurar o homem para o sexo (na sociedade árabe o homem que deve tomar a iniciativa) e segundo por realizá-lo em local diferente da vagina – ela é “perdoada” pelo comerciante, que diante do imenso prazer que ela lhe proporcionou, acaba se casando com ela. 15

Nota-se que a beleza exultante da mulher em Al-Tifashi é suficiente para que ela seja aceita pelo comerciante de seu conto, mas em Nafzawi a beleza não é suficiente para o perdão: Lua das Luas, a bela do harém, é salva e esposada pelo rei Ali, filho de Al-Daigham, por se mostrar irredutível ante das investidas do negro que guardava o harém, e certamente, por ser a mais bonita de todas as mulheres. Ela teve um destino diferente ao dado às concubinas deste harém, que foram condenadas à morte. É interessante notar que a bela mulher se torna ainda mais digna de admiração justamente por controlar seus impulsos sexuais ao não se “rebaixar” e fazer sexo com o criado negro Dirghame. Segundo a crença islâmica, quando Deus criou o desejo sexual, ele dividiu em dez partes, dando nove destas para a mulher.16 Assim, a abnegação de Lua das Luas seria ainda mais admirável por estar controlando a sua impulsividade sexual nata para esperar pelo amor verdadeiro.

Uma comprovação que isto passa a ser um fator primordial para a virtude da mulher, se encontra no capítulo XXI, “A utilidade da alimentação com ovos. Bebidas que podem ajudar a realizar normalmente a cópula”, em que a bela Continente, primeiramente a amada de Abu‟l-Hadydja, passa a ser alvo de sua vingança por ter se entregado aos atos ilícitos no sexo. Ou quando Buhlul, um homem ridicularizado pelas mulheres por sua falta de dinheiro, consegue realizar proezas sexuais com a bela Hamduna, a concubina de Al-Ma‟mun, califa abássida mais importante da Era de Ouro Islâmica, em troca de uma roupa luxuosa, ao final conseguindo ludibriá-la e não cumprir o combinado. É importante notar, também, que a beleza de uma mulher é fundamental para um homem desejá-la, mas ainda que a mulher também se sinta atraída por um homem belo, o autor afirma que esse “problema” pode ser superado por ela se o homem, mesmo medonho, for rico.

Outro dado relevante é percebido quando consideramos a noção do “desejo sexual”: a satisfação sexual da mulher não se atrela somente à noção defendida por Bouhdiba, ou seja, numa complementariedade dos sexos,17 mas num controle social da impulsividade sexual feminina. Daí a necessidade do homem em satisfazê-la para que ela não cause a sua ruína, de forma que “o grande prazer do homem resida no portal da mulher e o grande prazer da mulher resida no instrumento do homem, de tal modo que o portal só encontre repouso, gozo, vigor e paz ao ser penetrado pelo instrumento que deseja, e que o instrumento só encontre diversão e calma ao penetrar no portal(...)”18

A mulher insatisfeita sexualmente é um grande mal para o homem. Nafzawi afirma que se um homem satisfizer sua esposa, ele conseguirá tudo dela, ocorrendo o contrário, caso ele não consiga, podendo até ter sua imagem social manchada.19 E a satisfação da mulher não reside apenas na técnica da cópula, mas essencialmente na penetração. A mulher só é completa sexualmente ao ser penetrada pelo homem, mesmo se puder obter prazer por outro meio. 20 Portanto, o prazer feminino reside no instrumento masculino, e este deve ter proporções adequadas ao “portal” da mulher. Para tal, Nafzawi enumera várias receitas para alongar, engrossar e até curar a impotência masculina, de forma a manter as mulheres controladas, e assim evitar a decadência da sociedade, caso elas se sobrepusessem ou se equivalessem aos homens. 21 Da mesma forma, o autor sugere medidas para manter o “portal” atraente ao olhar masculino, assim como para preparar todo o corpo, do homem e da mulher, para o sexo.22

Mas esse controle social da mulher não adviria somente por seu “impulso sexual”, Nafzawi alerta, no capítulo XI, sobre a astúcia feminina, pois “as mulheres têm de reserva muitas artimanhas, que seus engodos são magníficos, até maiores dos que os de Satã”. No capítulo IX, sobre os nomes dados aos portais das mulheres, é aconselhado que os homens temam suas armadilhas, e até mesmo no capítulo II, em que destaca aquelas que merecem elogios, há a observação no encerramento do capítulo de que o amor por uma mulher pode ser a grande ruína de um homem.

Ao lado disso, um dado curioso que se encontra em Nafzawi é a respeito da esterilidade: nas mulheres ela pode ser reversível, mas o homem pode se tornar estéril irremediavelmente. Tal concepção pode ter como origem a filosofia grega, com o pensamento aristotélico de que a mulher seria apenas responsável por abrigar o feto, e não contribuiria para a sua concepção, como também da religião islâmica, que cria que o homem, isto é, o ser humano, se formava somente pelo esperma, não citando nenhuma participação feminina para sua criação.23 Concomitantemente, Nafzawi afirma que a fecundação da mulher só pode ocorrer se o “seu líquido descer” (alusão ao orgasmo feminino), e que ele deve “se encontrar” com a saída do esperma para ela engravidar, 24 mas aqui talvez coubesse o conceito de “receptividade” do útero feminino ao esperma, e não necessariamente a sua co-participação no processo de formação do feto.

Apesar de buscar o prazer, e explorar as posições sexuais e as técnicas para elevar a experiência do casal a uma qualidade superior, o sexo em demasia é considerado fonte de doenças. Mesmo parecendo à primeira vista como um aspecto da decadência da erotologia, essa precaução com o excesso permeia toda esta Ciência, sendo inclusive comentada por Ibn Sina como propiciadora da morte. 25 Assim, ainda que o homem árabe-islâmico veja e pratique o sexo como uma benção divina, e o explore incessantemente em seus estudos, é errado imaginar uma “sexualidade à flor da pele” como pensavam os europeus do final do séx. XIX, a respeito do Oriente. A erotologia foi uma ciência que se voltava para os casais, ainda que abordasse várias situações em que o sexo poderia ser ilícito, seja no nikah (casamento), no zinah (adultério), ou no concubinato, no qual vários homens podiam compartilhar uma escrava para fins sexuais.26

Atos Ilícitos na abordagem de “Os Campos Perfumados”

Ao longo do manual de Nafzawi, há a citação de cinco tipos de atos ilícitos: a sodomia, o homoerotismo masculino, o homoerotismo feminino, o adultério e a zoofilia. A descrição de cada um varia conforme a situação, podendo vir dentro de um relato de algum personagem histórico ou então como forma de citação ou advertência.

A sodomia, aqui o sexo anal com a mulher, surge no manual como uma advertência: “(...) é lícito com a esposa, e não há mal em fazê-lo, com exceção do que não corresponde voluntariamente à própria natureza do instrumento, não permitindo a fecundação”.27 E também:“Copula-a como quiseres (...) com exceção do ânus”.28

A referência ao sexo anal é clara, ele não pode ser feito por impedir a fecundação. Entretanto, a proibição do sexo anal não era algo oficialmente estabelecido pela religião, pois no Alcorão há uma “observação dúbia”, 29 provinda da palavra árabe anna, que deu margens para pensadores, como Malik Ibn Anas, aceitarem o sexo anal como lícito na união carnal entre um homem e uma mulher, 30 algo obviamente não condizente com a crença de Nafzawi.

O interessante é notar a forma diferenciada de abordagem que Nafzawi dá ao homoerotismo: a sua descrição do homoerotismo feminino aceita detalhes e há certa condescêndencia ao justificá-lo, no entanto para os homens vistos como “desviados”, a crítica só é percebida se o leitor conhecer o assunto e o indivíduo que Nafzawi cita. Uma clara exemplificação disto, é o harém: as mulheres só se submetem aos atos ilícitos homoeróticos neste ambiente, pois a proximidade entre as mesmas e a ausência de um “instrumento” que as satisfaça plenamente é o propiciador dessa atividade ilícita (com exceção do criado negro do conto de “Lua das Luas”, pois ele não representava um marido para as mulheres, não se destinava somente a elas, mas a todas que o conviessem). Ao descrever seus atos, Nafzawi não poupa detalhes:“Tiravam tudo o que vestiam e começaram a copular uma com a outra”.31

Já no caso masculino, o homoerotismo não é claramente citado, pode-se dizer que ela representa um tabu nesta sociedade. Ao narrar as peripécias sexuais de Al-Dja‟di com uma mulher, Nafzawi cita o poeta Abu Nowas como ajudante do rapaz na sua conquista, e a sua referência à obra deste poeta que falava sobre o seu amor por rapazes, fica restrita a um pequeno comentário:“(...) Abu Nowas – que Deus perdoe seus erros”. 32

A zoofilia e o adultério são descritos por meio de contos, sendo os dois referentes às “artimanhas das mulheres”: 33 o primeiro retrata uma mulher, que por não ter seu desejo saciado pelo marido, passa a fazer sexo com o asno, e ao ser flagrada pelo cônjuge, inventa uma história qualquer que ele acredita. E a segunda, uma mulher casada ludibriada por uma velha para ceder aos pedidos de um admirador insistente, por medo de ser amaldiçoada por ele, acaba sendo flagrada pelo marido à espera do amante, e consegue reverter a acusação de adultério contra ele. Nestes dois casos, parece novamente a idéia de impulsividade sexual feminina, como se o sexo fosse a força propulsora da vida da mulher. Não é à toa que Nafzawi cita as palavras de uma “velha sábia” que afirma que a inteligência de uma mulher reside em seu “portal”. Segundo Marina Soares, a sociedade árabe-islâmica via a mulher como puramente sexual, diferentemente do homem que abarcaria também uma sabedoria além do sexo, 34 algo que pode ser evidenciado nos exemplos de Nafzawi.

Conclusão

Compreender o contexto da obra “Os Campos Perfumados” não é uma tarefa simples. É preciso se aprofundar em suas entrelinhas, as quais necessitam de um suporte de conhecimentos da cultura, História e religião da sociedade árabe-islâmica.

Nafzawi nos fornece uma visão masculina da sexualidade no Islã Clássico, e assim, quem passamos a analisar, mais do que o casal em si, é a condição feminina. A mulher, por não ter a voz de sua realidade, se relega à condição de objeto, e na obra “Os Campos Perfumados” é ela o assunto debatido, o foco principal.

No entanto não seria de se estranhar tal predominância, pois segundo a historiografia, o homem na sociedade árabe-islâmica é sujeito, é senhor e soberano de sua esposa. Ainda que no campo sexual haja a tendência a encará-los como complementares, em suas relações sociais o homem se prepondera ante a mulher. Numa sociedade em que a sabedoria, as relações entre os indivíduos, a religião e a política são controladas por mentes masculinas, a preocupação fatalmente não recairia sobre o já conhecido (o corpo e mente masculina), mas naquele que está além deles: o outro, a fêmea, a mulher.
A preocupação com a sexualidade, ainda que basicamente situada numa problematização do ser feminino, é resultado também da extracorporeidade dada às relações do corpo. O sexo não seria uma fonte de prazer que findaria com a morte, mas uma das principais para a vida eterna dos eleitos. Assim, o sexo não somente atenderia à procriação, a uma necessidade do corpo, mas a uma necessidade dos sentidos, estes válidos para além do visível, pertencentes também à alma.

Por ser valorizado pela religião, o sexo ascendeu à conotação de ciência, a Erotologia surgiu como um conhecimento extremamente valioso, que somente era ignorado, rejeitado ou ironizado por completos ignorantes.35 Ainda assim é possível ver sinais de desgaste no relato de Nafzawi, que mesmo sendo um conhecido erotólogo, se sente constrangido ao ser indagado sobre suas obras.36A Erotologia, como ciência, ainda permanecia no seio da sociedade tunisiana, mas já não continha a mesma abrangência como na época da dinastia abássida, já abarcando conceitos diferentes de erotólogos anteriores. Se antes de Nafzawi, a beleza e o prazer eram suficientes para propiciar o “amor-paixão” – que influenciou decisivamente para o conceito de amor cortês no Ocidente Medieval – para a mulher outras virtudes passaram a ser exigidas, virtudes estas que se opunham à idéia de gozo da sexualidade.

Entretanto a obra de Nafzawi não é puramente um relato distorcido ou apagado daquilo que se considerou o período de Ouro da "Falsafa", é também uma visão condizente com o contexto social, político e cultural da sociedade árabe-islâmica de Túnis, da dinastia haféssida, em uma época de esplendor e grande produção cultural. Assim sendo, a obra em Nafzawi, além de retratar a sexualidade no Islã Clássico na fase decadente da "falsafa", retrata também a época de florescimento cultural de Túnis.

O que podemos perceber é que a sexualidade presente em Nafzawi permeia a erotologia de forma diferente, há valorização certas interdições sexuais, que anteriormente eram mais maleáveis, pois não eram abertamente defendidas ou refutadas. No entanto, este artigo não pretende se aprofundar nesta questão, cabendo a pesquisas posteriores uma conclusão deste paradigma.
___________

Referências Bibliográficas:

ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo: Palas Athena. 2002.
BOUHDIBA, Abdelwahab. A sexualidade no Islã. São Paulo: Globo. 2006
CHALITA, Mansur. (Trad.). O Alcorão. Rio de Janeiro: Associação Cultural Internacional Gibran, s/d.
NICHOLSON, Reynold Alleyne. A Literary History of the Arabs. Cambridge: Curzon Press Ltd. 1995.
SOARES,​Marina​ Juliana​ de​ Oliveira. ​“Erótica​s em​ véu:​ o​ corpóreo sexual​na sociedade ​árabe-islâmica ​clássica ​(século​XII​-​XIII)” .​São​Paulo:​[s.n.].​2009.


Notas:

1 Celia Daniele Moreira de Souza é graduanda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente realiza pesquisas para sua monografia de bacharelado, tendo como foco a História Árabe no período medieval. Seu e-mail para contato é: celia.daniele@yahoo.com.br

2 É importante frisar que a obra aqui analisada é uma tradução do texto em francês, havendo já disponível uma versão traduzida originalmente do árabe feita por Jim Coville, que desmistifica passagens eróticas acentuadas por Burton.
3 BOUHDIBA, A. “O orgasmo infinito”. A sexualidade no Islã. p. 98.
4 BOUHDIBA, A. “Pureza perdida, pureza reencontrada”. A sexualidade do Islã. p. 75.
5 BOUHDIBA, A. “O orgasmo infinito”. A sexualidade no Islã. p. 102.
6 SOARES, M. J. O. “Premissas Corânicas”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 44.
7 Suratu Al-Baqara. 2:36. Alcorão. p. 18.
8 É considerada a Era de Ouro o período entre o séc. VIII ao séc. XII, isto é, o período da Dinastia Abássida, tendo o seu auge na fundação da Casa da Sabedoria pelo califa Al Ma‟mun no séc. IX.
9 BOUHDIBA, A. “O Alcorão diante da questão sexual”. A sexualidade no Islã. p. 21.
10 ATTIE FILHO, M. “No Islam Nascente: Os Abássidas.” Falsafa: a filosofia entre os árabes. p. 121-122. 
11 NICHOLSON, R. A. “Introduction”. “A Literary History of the Arabs”. p. 29-30.
12 Conforme afirma Monica Stahel, tradutora de “Os Campos Perfumados” do francês para o português, Nafzawi provém de uma tribo bérbere e morava na Tunísia do Sul. A sua obra foi escrita no período áureo da dinastia haféssida de Túnis.
13 Sultão Abd Al-Aziz Abu Faris (1394-1434) da dinastia haféssida.
14 NAFZAWI, M. “Os que são dignos de elogios, dentre os homens, neste domínio.” Os Campos Perfumados. p. 29-38. Musaylima foi um concorrente de Maomé, afirmava também receber a palavra de Deus através do anjo Gabriel.
15 SOARES, M. J. O. “As Fontes do Prazer e As Delícias dos Corações: entre a arte e o gozo?”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 60-61.
16 SOARES, M. J. O. “Introdução”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 15.
17 BOUHDIBA, A. “O Alcorão diante da questão sexual.” A sexualidade no Islã. p. 21.
18 NAFZAWI, M. “Prefácio do Autor”. Os Campos Perfumados. p. 17.
19 NAFZAWI, M. “Capítulo III: Os que devem ser recriminados, dentre os homens, neste domínio.”. Os Campos Perfumados. p. 90.
20 SOARES, M. J. O. “As Fontes do Prazer e As Delícias dos Corações: entre a arte e o gozo?”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 58.
21 SOARES, M. J. O. “Um lugar para o corpo”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 22. A autora comenta que a mulher pode esgotar as forças masculinas por causa da sua compulsão sexual, ocasionando a perda social deste homem exaurido.
22 NAFZAWI, M. “A cópula”. “As maneiras de copular”. “O que é prejudicial na cópula”. Os Campos Perfumados. p.97-116.
23 SOARES, M. J. “Um lugar para o corpo”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 17-18.
24 NAFZAWI, M. “Capítulo XV: As causas de esterelidade dos homens”. Os Campos Perfumados. p. 189.
25 SOARES, M. J. O. “A medicina e o sexo”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 69.
26 BOUHDIBA, A. “Sexualidade e Sociabilidade”. A sexualidade no Islã. p. 139-142. O concubinato é praticamente uma relação intermediária entre o casamento e o adultério. As jawari, concubinas, possuíam um proprietário e também podiam ser divididas em co-proprietários. Não possuíam os mesmos direitos que a esposa, mas poderiam mudar de “estatuto” quando se tornavam mães (umm al-walad), ganhando alguns direitos, como não serem vendidas nem transferidas a outro proprietário.
27 NAFZAWI, M. “As maneiras de copular”. Os Campos Perfumados. p. 105.
28 Ibid. p. 106.
29 Suratu Al-Baqara. 2:223
30 SOARES, M. J. O. “Premissas Corânicas”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 35.
31 NAFZAWI, M. “As que são dignas de elogios, dentre as mulheres, neste domínio.”. Os Campos Perfumados. p. 69.
32 O poeta Abu Nowas escreveu diversos poemas homoeróticos, dezessete deles traduzidos por Jaafar Abu Tarab para a coletânia “Carousing with Gazelles, Homoerotic Songs of Old Baghdad”.
33 NAFZAWI, M. “As artimanhas das  mulheres”. Os Campos Perfumados. p. 157-169.
34 SOARES, M. J. O. “Um lugar para o corpo”. Erótica sem véu: o corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (século XII - XIII). p. 21
35 NAFZAWI, M. “Prefácio do Autor”. Os Campos Perfumados. p. 21.
36 Ibid. p. 20.REVISTA LITTERIS ISSN 1983-7429 Número 4, edição quadrimestral – março de 2010 Dossiê Estudos Árabes & Islâmicos

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A vida incrível do pai de António e Ricardo Costa (ou Babush e Babuló)

Da origem árabe dos Senhores da Maia

Quinta do Relógio: um passeio pelo romântico e o oriental