Cristãos e Muçulmanos
Baseados
na investigação arqueológica, hoje sabemos que a islamização foi um
lento processo de conversão, que apenas no século XI teria atingido a
maioria da população urbana do Al-Ândalus, escreve o arqueólogo Cláudio
Torres. A islamização, como uns séculos antes acontecera com a
cristianização, foi um processo lento e gradual alimentado pelas
grandes rotas do comércio mediterrânico. Os grandes movimentos de
ideias, as grandes religiões nunca foram ou são difundidas ou impostas
por militares. Estes não sabem dialogar ou convencer. O seu papel e
eficácia é o saque e a conquista.
CLÁUDIO TORRES
O artefacto
arqueológico, quase sempre oculto e esquecido, representando o gesto e a
voz daqueles que nunca tiveram história, além de abrir portas
inesperadas do passado, mostra sempre outros caminhos bem diferentes
dos que tinham sido apontados pelo documento escrito. O monumento
arqueológico em toda a sua densidade e veracidade histórica - a pedra
alçada, o sítio sagrado de todas as fábulas, a pequena capela de
humildes milagres, todos eles solidamente ancorados numa paisagem
moldada pelo homem - é também o património inalienável da terra e das
pessoas que a trabalham e habitam. Ao contrário da pequena panela de
barro, da moeda perdida ou de uns restos de cozinha, que são a
linguagem, por vezes cifrada, da arqueologia, o documento escrito é
sempre pesadamente ideológico, porque produzido por elites que sabiam
escrever, para outras elites, com o objectivo de satisfazer, directa ou
indirectamente, a vontade de um encomendador, ou com a pretensão,
quase sempre inconfessada, de discursar para a posteridade. E para
mais, o documento escrito, para ser credível ao historiador, ou pelo
menos para dele ser extraída alguma verdade, deve sempre ser lido,
sobretudo, nas entrelinhas.
Segundo todos
os textos escritos, tratados e manuais escolares, os exércitos árabes e
berberes, comandados por Tarique, teriam invadido a Península Ibérica
em 711, implantando o Islão por todo o lado em meia dúzia de anos.
Todos os textos cristãos relatam estes trágicos acontecimentos como
remissão dos muitos pecados e resultado das fragilidades militares dos
indígenas ante a avalancha imparável dos invasores. Do outro lado, do
lado dos vencedores, os textos em árabe referem e destacam a
providencial ajuda divina para uma vitória tão rápida e avassaladora.
É aqui que a
arqueologia fala diferente. Trinta anos de investigação arqueológica em
Mértola e no seu território não permitem, de forma alguma, tirar as
mesmas conclusões. Muito ao contrário, os resultados são bem diversos.
Não negamos que nessa época e desde sempre, Gibraltar tenha sido
atravessado nos dois sentidos por bandos armados. Esta zona e suas
imediações, foi sempre o local de passagem entre os dois continentes. O
que sabemos hoje é que não foram esses exércitos ou soldados a trazer o
Islão e a implantá-lo na Península. A islamização, como uns séculos
antes acontecera com a cristianização, foi um processo lento e gradual
alimentado pelas grandes rotas do comércio mediterrânico. Os grandes
movimentos de ideias, as grandes religiões nunca foram ou são
difundidas ou impostas por militares. Estes não sabem dialogar ou
convencer. O seu papel e eficácia é o saque e a conquista.
De facto, e
apenas baseados na investigação arqueológica, hoje sabemos que a
islamização foi um lento processo de conversão, que apenas no século XI
teria atingido a maioria da população urbana do Al-Ândalus. O mundo
camponês, sobretudo o das zonas mais serranas, não só foi
superficialmente arabizado como a sua conversão à fé muçulmana foi pouco
significativa. Sabemos, isso sim, que nestas zonas rurais alguns
antigos templos cristãos foram repartidos com o novo culto muçulmano que
nessa altura era ainda muito próximo dos rituais cristãos monofisitas
dominantes nestas paragens.
Tudo leva a
crer que nesta região do sudoeste peninsular, onde a prospecção
arqueológica nos permitiu constatar a existência de um arcaico
povoamento berbere (muito anterior às improváveis invasões do século
oitavo), o cristianismo dominante fosse de filiação monofisita como no
Magrebe, onde eram preponderantes as correntes cristãs mais ou menos
próximas do donatismo.
Depois de
fracassadas as tentativas de invasão das tropas do general Belisário
enviado por Bisâncio (séc. VI) e passados alguns séculos sobre a
propalada invasão árabe, o cristianismo ibérico continuou abandonado à
sua sorte. Na ausência de qualquer contacto com as hierarquias
episcopais ou sacerdotais da Igreja bisantina que, por essa altura,
começam em Roma a preparar a expansão da Ordem de Cluny pela Europa e
Norte da Península, proliferam pelo Magreb e pela Ibéria vários grupos
heterodoxos como os arianos, priscilianos, monotelistas, donatistas e
outros monofisismos. São estes cristãos, hostis à ortodoxia romana e
bizantina, que entre meados do século VIII e os finais do século XI,
portanto antes das invasões Almorávida e Almôada, se começam a converter
ao Islão. Também desta vez, como tinha acontecido uns séculos antes
com a expansão do cristianismo, os primeiros conversos ao Islão foram
os mais desprotegidos, aquelas gentes desenraizadas que enchiam as ruas
estreitas das cidades, aqueles embarcadiços que andavam de porto em
porto, na aventura incerta da sobrevivência.
São estes
antigos habitantes da cidade portuária de Mértola que encontramos
enterrados na basílica paleocristã do Rossio do Carmo. Ali encontramos,
a partir do século V, as primeiras lápides funerárias, onde se destaca
um conjunto de personagens vindos do Oriente de culto cristão
monofisita com epitáfios em grego. Nesta mesma basílica, num nível
superior, constatamos a existência, numa última fase de enterramentos,
de um enorme cemitério muçulmano. Posteriores análises de ADN podem vir
a elucidar-nos sobre a existência, ou não, de relações familiares
entre os níveis cristão e muçulmano. Noutro ponto da cidade, a nossa
equipa escavou e musealizou as fundações de uma igreja de três naves
sobre a qual foi construída uma mesquita almôada em meados do século
XII. Nas imediações, a poucos metros de distância, foram descobertos
dois grandes baptistérios de imersão e no exterior das muralhas da
cidade uma outra igreja paleocristã e um monumental mausoléu ou
martirium, todos construídos por altura do século VI e que parece terem
estado ao culto muito para além do século VIII.
Todo este
conjunto monumental paleocristão foi encontrado durante trinta anos de
investigação arqueológica em que o objectivo inicial tinha sido a
procura da civilização islâmica. É certo que também a encontramos,
embora de uma forma pouco coincidente com a historiografia tradicional. O
fenómeno da arabização e mais tarde da islamização é um processo que
se estende ao longo de vários séculos, à medida que se estreitam as
relações económicas e culturais com o Oriente mediterrânico, sobretudo
com a Tunísia, Egipto e Pérsia. O extremar de posições religiosas e
políticas coincide, em finais do século XI, com o expansionismo do
cristianismo romano a partir do norte da Península e com as invasões
almorávida e almôada que por sua vez introduzem na Península Ibérica um
Islão mais ortodoxo e, de certa forma, mais intransigente. Apesar desse
endurecimento, que coincide com o avanço para Sul das guerras da
Reconquista, constatamos durante o século XII a existência em Mértola de
um arrabalde cristão na zona portuária fora das muralhas. Se por um
lado é iniciada uma nova forma de relacionamento entre as duas
religiões, por outro não há dúvida de que se mantém um diálogo e mesmo
um convívio só quebrado no século XVI com as expulsões de D. Manuel e
logo a seguir com o poder acordado à Inquisição.
Por vezes
estas novas formas de ver acontecimentos do passado, em que o que é
certo passa a dubitativo, o que é aceite como irrevogável se torna
pantanoso e mesmo contraditório - permitem compreender fenómenos do
presente, abrir novas portas para a solução de conflitos que pareciam
solidamente assentes em certezas absolutas.
Este artigo foi publicado no “Diário de Notícias”, 29/06/2015.
Foto: Fragmento de pilastra, arte moçárabe, sécs. IX-X http://www.discoverislamicart.org/database_item.php?id=object;ISL;pt;Mus01_C;26;pt
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