A ilha e o imaginário árabe

A febre das ilhas, que veio a apossar-se dos descobridores portugueses, já fervilhava nas veias dos nossos antepassados luso-árabes, como mostra a célebre “Lenda dos Aventureiros”, dos tempos da Lisboa mourisca, tal como é contada pelo grande geógrafo árabe medievo, al-Idrîsî, na sua “Descrição da África e da Espanha”. Nas lendas islâmicas, do género “histórias de heroísmo e moralidade”, são frequentes exemplos do valor dado à simbólica ilha. De tal forma, que uma das mais famosas lendas, transmitidas pela leitura oral, se chama, precisamente, “Como as ilhas foram convertidas ao Islão”. É num episódio da “Ilha das Donzelas” da obra árabe “Livro da Pérola ou História do Tempo de Shatibî”, que Camões terá colhido inspiração para um episódio de “Os Lusíadas”, a Ilha dos Amores.

ADALBERTO ALVES

Todos os que se encantaram com as Mil e Uma Noites, essa obra-prima do maravilhoso universal, têm na memória a história de Sindbad o Marinheiro, na verdade, um conjunto de sete histórias, tantas como as viagens que o nosso herói realiza. E sete porque, iniciaticamente, esse número simboliza todo o universo em movimento, ou seja, a totalidade do espaço e do tempo.

Em suas viagens, Sindbad corre os oceanos, imagem da indistinção primordial, à procura, como ele diz, das ilhas e das suas terras. E, de facto, cada uma das suas aventuras decorre numa ilha: sete ilhas cheias de carga mítica mas nem, por isso, como na lenda de Tróia, sem deixarem a recorrência à realidade histórica.

Basta pensarmos na Segunda Viagem, em que se narra a aventura na ilha onde vive uma gigantesca ave, o Roc, causa das suas atribulações. Hoje sabemos serem ecos da fauna de Madagáscar onde, em tempos históricos, ainda existia o Aepyornis Titan ou ave-elefante, que os despojos paleontológicos comprovam ter sido a maior que jamais viveu sobre a terra.

Ilha, em árabe, diz-se jazira, donde vem a nossa palavra lezíria, que designa as terras baixas inundadas pela água.

A cidade andaluza de Algeciras tira o topónimo do nome que os árabes davam à ilha que lhe está em frente, Al Jazira al-Khadrâ, ou seja, repare-se bem, a Ilha verde.

E, logo aqui, se refinem dois símbolos da civilização árabe: a Ilha enquanto lugar mágico, pólo da busca exterior e reflexo da procura interior, e o verde que, como prefiguração do jardim do Éden, é a própria cor do Islão.

Sintoma do anelo árabe pela Ilha é o que os geógrafos muçulmanos chamavam Jaza’ir al-Khalidat, ou seja, Ilhas Eternas, por eles situadas ao largo da costa ocidental de África. Por vezes, com localização idêntica, falam nas Jaza’ir al-Sa’adat, ou Jasa’ir Su’ada, ou seja, Ilhas Afortunadas.

Não foi, até hoje, possível saber-se, em concreto, que ilhas eram designadas com tais nomes, mas tem-se como provável que se referiam às Canárias, Madeira e Açores.

A febre das ilhas, que veio a apossar-se dos descobridores portugueses, já fervilhava nas veias dos nossos antepassados luso-árabes, como mostra a célebre “Lenda dos Aventureiros”, dos tempos da Lisboa mourisca, tal como é contada pelo grande geógrafo árabe medievo, al-Idrîsî, na sua “Descrição da África e da Espanha”.

A Lenda dos Aventureiros, é referida por outros geógrafos árabes, como al-Himyarî, Abû Hâmid ou al-Umarî.

E Lisboa, que tinha, na altura, localizada nas suas muralhas exteriores, uma saída virada ao mar, conhecida por Bab al-Khamma, ou seja, “Porta das Termas” (Alfama), passou a chamar, desde a referida viagem, à rua que dava para essa porta, Darb al-Magrurîn, ou seja, Rua dos Aventureiros. Esta homenagem celebrou para a posterioridade o feito de oito primos-irmãos que alcançaram, provavelmente, as ilhas Canárias. Esse feito está hoje comprovado historicamente, sabendo-se que um deles, veio a tornar-se almirante da esquadra omíada que, em meados do século IX, defendia a costa dos normandos.

É bem significativo que o Atlântico, que os árabes do Alandalus chamavam de Mar Tenebroso (al-Bahr al-muzlim) ou Mar Circundante, foi muitas vezes chamado também al-Bahr al-Akhdar, ou seja, o Mar Verde.

As lendas islâmicas, do género “histórias de heroísmo e moralidade”, são, por outro lado, frequentes exemplos do valor dado à simbólica da ilha. De tal forma, que uma das mais famosas lendas, transmitidas pela leitura oral, se chama, precisamente, “Como as ilhas foram convertidas ao Islão”. Conta ela, como em tempos o “Povo das ilhas orientais” costumava sacrificar, todos os anos, uma virgem ao demónio do mar, e como um tal Abû Barakâti, o primeiro muçulmano a chegar a tais ilhas, venceu, pela força da recitação do Sagrado Alcorão, a força satânica e livrou as ilhas desse medonho tributo (Jan Knappert, Islamic Legends, 1985, II, 440).

É, incontestável que a obsidiante viagem em busca da ilha seja, na literatura árabe clássica, fonte de múltiplas alegorias.

Assim, por exemplo, a Ilha das Mulheres, encontra-se nos mares da China.

A Ilha das Filhas da Água, acolhe elusivas beldades marinhas proporcionadoras de delícias, mas sempre prontas a escapulirem-se para o mar. E é precisamente o episódio da Ilha das Donzelas da obra árabe Livro da Pérola ou História do Tempo de Shatibî, que terá sido a fonte onde Camões colheu inspiração para o episódio, de Os Lusíadas, da Ilha dos Amores (J.Garcia Domingues, A Concepção do Mundo Árabe-Islâmico nos Lusíadas, 1972,3).

Ibn al-Faqih descreve assim as Ilhas Afortunadas: “...Além do Al-Andalus (a Poente), a uma distância igual à que dela nos separa, Deus Alto e Todo-Poderoso criou gentes que não concebem que alguém se revolte contra Ele. Não lavram, não semeiam, não colhem, mas diante das suas portas há árvores que lhes dão frutos de que se alimentam: árvores de folhas largas com as quais se vestem. Na sua terra há pérolas e rubis, nos seus montes ouro e prata...” (Angelo Arioli, Islario Maravilhoso, 1992, 102)

Já al-Himyarî, a quem devemos uma descrição da Península Ibérica onde detalhadamente são referidas várias cidades luso-árabes, nos fala das virtudes curativas da pedra baht que pode ser encontrada em... “uma das Ilhas Eternas situadas no Extremo Poente, onde está o Mar das Trevas, por detrás do qual se ignora o que possa haver...” (Islário,103).

Uma outra ilha interessante é a que o geógrafo al-Qazwinî, chama de Sâshin que descreve como “paralela ao limite de Alandalus, de uma longitude equivalente a vinte dias de viagem, abundante em toda a espécie de bens naturais e povoadíssima de rebanhos... Toda a gente se enfeita de ouro como nenhuma outra... E tem, além disso, uma maravilha que não se encontra em nenhuma outra parte do mundo”. Essa maravilha, conta o narrador, é um pássaro cujo ovo, a partir de uma planta, se forma na bruma do mar (Islário, 111).

Muitas outras ilhas poderiam ser referidas como a Ilha da Razão, também descrita por al-Himyarî, sita no Mar Vermelho, entre o Iémen e a Etiópia, onde da Fonte da Razão brota água que transformaria qualquer homem em filósofo. Dispenso-me de comentar a evidente componente simbólica deste relato associando água e saber (Islário, 179).

São, pois, tantas e tão variadas as referências à ilha na literatura árabe clássica, que não poderemos ir mais longe na sua inventariação, deixando para trás, descrições tão interessantes como, por exemplo, aquela que al-Bakri nos dá também das Ilhas Afortunadas (ver F. Pons Boigues, Los Historiadores y Geógrafos Arábigo-Espanoles, 1972, 163).

Não quereria, no entanto, deixar de referir dois casos extremamente significativos da espiritualidade islâmica associados à ilha: o primeiro é a fabulosa novela filosófica Hayy ibn Yaqsan, do grande pensador granadino do séc. XII, Ibn Tufayl, físico e conselheiro do califa almôada Abû Yaqûb. Ibn Tufayl foi, aliás, quem ajudou o então jovem filósofo Averróis a afirmar-se na corte. Na sua obra, explana Ibn Tufayl, de forma extraordinariamente bem conseguida, o seu sistema filosófico, sob a forma de romance. Nele se conta a história de um rapazinho abandonado numa ilha deserta e criado por uma cabra selvagem que, aprendendo sozinho, vai descobrindo metodicamente a orientação cosmológica até à contemplação filosófica de Deus. Daqui colheu Daniel Defoe, inspiração para a sua aventura Robinson Crusoe.

A outra obra que queríamos referir chama-se “Narrativa das coisas estranhas e maravilhosas contempladas e vistas na Ilha Verde situada no Mar Branco”, devida à pena do jovem mestre espiritual (shaykh) persa ‘Alî ibn Fazel Ma Zandarinî, em finais do séc. XIII.

Tal narrativa, inserida no universo da gnose xiita, revela-nos que o autor, discípulo de um mestre do Alandalus viajou para a terra dos Berberes, ou seja, para Ocidente, depois de ter atravessado um grande deserto, verosimilmente o Saara. Chega, enfim, a uma península fortificada dos xiitas, impregnada da presença do Imame Oculto e constata que os campos em volta não estão cultivados. É-lhe então dito que a subsistência dos habitantes provém da Ilha, situada no Mar Branco, que é uma das ilhas dos filhos do Imame Oculto.

Nessa ilha, que ele depois visita, luxuriante, paradisíaca e de belas construções, vem a aceder a uma verdadeira mutação interior, chave de acesso à genuína cavalaria espiritual (Henri Corbin, Face de Dieu, Face de l’home, 1983, 31 e sgs, e Islam Iranien, 1971-73, IV, 346 e segs.).

Que tem a terra dos Açores a ver com tudo isto?

Ibn al-Faqih al-Hamadani, o já citado autor, ao falar, no seu livro “Resumo do Livro dos Países, das Ilhas Aventuradas”, referia-se, como hoje geralmente é aceite pelos arabistas, aos Açores, Madeira e Canárias.

Outro aspecto, esse indiscutível, é a impressão árabe deixada nestas ilhas, banhadas de nevoeiro e mito, por força da expansão portuguesa.

Segundo um dos maiores arabistas espanhóis, Asin Palácios, o próprio topónimo “Açores”, não se deve às aves, mas sim ao vocábulo árabe que significa “os mouros”. A ser assim, que mouros teriam existido nos Açores?

Luís da Silva Ribeiro na sua monografia “Formação Histórica do Povo dos Açores”, corroborando a influência árabe na formação do património étnico açoriano, louva-se na observação de Gaspar Frutuoso, que afirmou terem sido árabes os primeiros habitantes da Ilha de S. Miguel, referindo-se até a dois regentes mouriscos, um proveniente de África e outro, que ficou famoso, Jorge Velho, o Mouro.

Aliás, a toponímia, que não mente, deixou o seu testemunho: refiramos, como exemplo, apenas na Terceira, a “Canada do Mouro” e a “Ribeira do Mouro” (Manoelito de Ornelas, Gaúchos e Beduínos, Rio de Janeiro, 1956, 221).

Estas impressivas raízes arábicas, foram igualmente profundas na Madeira, chegando a cidade do Funchal a ter a sua Mouraria e havendo a tradição de que, Ponta do Sol, Santa Cruz, Curral das Freiras e Machico foram terras de colonização árabe. Por isso, os padres Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, autores do Elucidário Madeirense, dizem que “não é para estranhar que esses indivíduos, nos quais domina quase sempre o sangue árabe, deixassem em certas regiões, vestígios notáveis da sua estada na ilha, como a deixaram na antiga indumentária e nos caracteres antropológicos duma parte da população madeirense”.

Também na música e na dança das ilhas, se surpreende essa fonte em relação ao imaginário árabe. Luís da Silva Ribeiro na sua monografia sobre o vilão no teatro popular de S. Miguel, acentua o grande papel das “mouriscas” ou “mouriscadas” e lembra que “há o romance mourisco, houve a dança mourisca, que saía pelo menos na procissão do Corpus Christi na Horta em 1644, e subsiste na Madeira, conhecida no Funchal por Bailinho dos Vilões e existem superstições, modos de dizer, etc., de origem árabe ou moura”.

Por outro lado, Maria de Lurdes de Oliveira Monteiro (Porto Santo, in Revista Portuguesa de Filologia, 1948), ao analisar o Baile da Meia Volta de Porto Santo, aponta as “características irrefragáveis dos árabes, com os quais a ilha, durante séculos, teve intercâmbio populacional: ...não há ninguém que, vendo estas rodas e meneios lentos, em noites de luar e ouvindo as toadas melancólicas e trinadas que os acompanham não chegue instantaneamente a essa conclusão, tão grande é a semelhança”.

No citado Elucidário Madeirense, a propósito da Vila da Santa Cruz, na Madeira, diz-se que nela se mostrava, ainda há pouco, na igreja, um retábulo “onde figuravam escravos mouros usando um pequeno turbante afunilado, com uma ponta caída, de que derivam a carapuça do vilão e a toalhinha pendente da cabeça, antigos trajes da camponesa da Madeira. Dos mouros a dolência dos cantares. Dos mouros as lengalengas serranas, os populares lengi-lengi, o nevoeiro, a formiga que o seu pé prende. Entre as brumas, princesas encantadas, as histórias de palácios e riquezas entesouradas... Dos mouros ainda o cuscuz, essa massa granulada de trigo, tão apreciado pelas classes pobres que só comem nas ocasiões solenes... pelos baptizados e casamentos, não faltando o ramo da segurelha e o coentro que encima o prato e o aromatiza”.

Referir-se-á essa tradição secreta, velha de séculos, à ilha de S. Miguel, perturbantemente conhecida por Ilha Verde?

Ilha, logo centro primordial de espírito; verde, logo cor do conhecimento, do Paraíso e da santidade.
A emanação do Imame, herdeiro da Atlântida, não será a “marinharia poética” de que falava Natália Correia e de que ela, Antero e Nemésio pressentiam a rota?

A ilha é umbral da numinosa viagem em direcção ao Ser!

Ela representa por um lado a emergência manifestada nas águas criadoras e imensas. Como uma epifania que precipita a memória, como um rochedo no meio do caótico oceano primordial. A terra é uma ilha no sistema solar, este uma ilha na nossa galáxia e a nossa galáxia uma ilha no cosmos ilimitado banhado pelo mar ilusório do tempo.

O Ser é o único que sendo meta inicial, não é ilha nem mar e desconhece o tempo. O homem ilude-se quando, assumindo uma exterioridade, adora a divindade. Se o faz deixa que as águas do olvido o separem do Ser, confinando-se à ilha que, apesar de epifânica, nos torna presa de uma mortal nostalgia. “Transforma-se o amador na coisa amada” dizia Camões, por isso apenas a força do amor pode dissipar a ilha e as suas brumas. Seremos apenas assustadas aves de asas curtas, açoitadas por desesperos e ódios, ignorâncias e medos, se nos falta a consciência do oceano de que somos parte e nos embala no jogo da existenciação.

É esta a principal concepção do islamismo sufi, bebida da sabedoria dos Profetas, e que se pode resumir na afirmação plena de santidade e abolidora de limites, de al-Hallâj, no século XI, “Ana al-Haq !”: “eu sou a Realidade!”.

O poeta andaluz contemporâneo, António Gala, herdeiro da tradição árabe-muçulmana, exprime esta ideia com diferentes mas não menos admiráveis palavras:

“Olho os olivais, respiro fundo e sei que ainda estou vivo; que, de alguma maneira, estarei vivo sempre. E ponho-me a cantar em silêncio uma canção que não se aprende; o sangue sussurra ao ouvido cada sangue novo. Uma canção que repete que todo o ser é importante, porque sem ele a Natureza não seria como é, nem estaria completa. Todo ser é uma gota de orvalho que dura o que dura a noite. Inextinguivelmente, a noite repetir-se-á e repetir-se-ão o orvalho e a erva e o primeiro plenilúnio de Dezembro sobre campos e praias. Porque a vida não se acaba nunca. Porque o que uma vez sucedeu, sucede para sempre”.

Os poetas são sonâmbulos profetas.

[Em memória de Natália Correia]

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Texto recolhido da obra “Nítido Crescente”, de Adalberto Alves, Lisboa, Ed. Hugin, 1997. Adalberto Alves (18 de Julho de 1939) é poeta, escritor, ensaísta, arabista, historiador, conferencista e juristaportuguês. Foi premiado com o Prémio Internacional Sharjah para a Cultura Árabe, em 2008, da UNESCO. Antes do 25 de Abril de 1974 fez activa oposição ao regime salazarista e advogou no Tribunal Plenário, em defesa de presos políticos, tendo-lhe sido vedado, até ao 25 de Abril, o acesso à Função Pública - https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Adalberto_Coelho_Alves

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