Ibn Qasi, o Bem Guiado
Ibn Qasi, o “rei iniciático”, foi um líder político contemporâneo de D. Afonso Henriques, com quem estabeleceu uma aliança, em Mértola. Era seguidor do Sufismo, uma corrente mística e contemplativa do Islão, que se opôs à dinastia dominante dos Almorávidas no território onde é hoje o sul de Portugal, o Gharb Al-Andalus. Tentou estabelecer um reino independente, sobre o qual governou entre 1144 e 1151, ano em que foi assassinado. Pensa-se que seria descendente de cristãos convertidos de origem romana (os “muladi”), e era um homem belo e justo, um rei filósofo, segundo as descrições que dele faz Ibn Arabi, místico Sufi, poeta e sábio hispano-muçulmano. Não se sabe se nasceu em Silves ou em Mértola. Opôs-se à violência e tirania da dinastia almorávida do seu tempo, reunindo um grande número de seguidores, que o viam como o “Mahdi” - o “bem guiado”, que, no fim dos tempos, será enviado por Deus para reestabelecer a justiça entre os homens (uma forte crença do Islão Xiita). Convence várias povoações a reunir-se à sua luta, entre as quais Mértola, onde entra em 1 de Setembro de 1144 e é proclamado como líder espiritual e protector. No tempo em que reinou deixou de sobrecarregar o povo com impostos e distribuiu dinheiro entre os mais necessitados, ganhando uma auréola de santidade devido a essa generosidade. Estabeleceu um pacto secreto com o primeiro rei português, D. Afonso Henriques, com cujos ideais da cavalaria espiritual se identificava.
“Esta aliança, a primeira estabelecida na Península entre Muçulmanos e Cristãos, gnósticos, irmanados pelos mesmos ideais de tolerância, lealdade e fraternidade, foi simbolicamente selada por Afonso Henriques oferecendo a Ibn Qasi um cavalo, um escudo e uma lança”, escreve Frederico Mendes Paula. “A Cavalaria Espiritual terá uma importância marcante na fundação de Portugal, já que veio a demonstrar, através da aliança realizada entre os Sufis de Silves e os Templários de Afonso Henriques, que os gnósticos Muçulmanos e Cristãos profetizavam de ideais e princípios muito semelhantes, como a justiça, tolerância e defesa dos fracos, e tão diferentes das correntes radicais da época (sejam o fanatismo Almóada ou o dos Cruzados).
Como escreveu Adalberto Alves na sua obra “As Sandálias do Mestre”, “o fim trágico de Ibn Qasi, como mártir da causa dos Muridínos, não foi em vão. A sua rebeldia, face ao poder almóada, tal como a rebeldia de D. Afonso Henriques, face a Leão e Castela, foram dois pólos espirituais do ideal sofiocrático que daria lugar ao surgimento de Portugal”. O Sufismo nega a bi-polaridade e antagonismo dos conceitos e defende a existência da relatividade e da complementaridade - sem morte não há vida, sem ódio não há amor. A própria interpretação dos conceitos Corânicos recusa a interpretação imediatista do Corão, por exemplo, defendendo que a guerra santa ou Jihad é sobretudo uma guerra interior que os indivíduos travam contra si próprios no sentido de se aperfeiçoarem. Ao afirmar-se como o Islão da inteligência, o Sufismo é a via capaz de devolver ao Islão o seu papel de doutrina espiritual compatível com uma sociedade moderna, democrática e igualitária entre sexos, separando a religião dos códigos civis e judiciais, e tirando a grande maioria dos países muçulmanos do obscurantismo e ignorância em que se encontram.”
"Ibn Qasi e os Muridinos", Frederico Mendes Paula - https://aventar.eu/2010/02/07/sufis...
"Ibn Qasi, o Rei Iniciático do Algarve e os seus discipulos Muridinos", por José Carlos Fernández, Nova Acrópole - http://www.nova-acropole.pt/a_ibn_q...
Foto: estátua de Ibn Qasi em Mértola
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IBN QASI E OS COMEÇOS DE PORTUGAL
Abû al-Kâsim Ahmad Ibn Qasî foi figura impar na história do Alandalus. Este luso-árabe, de origem muladi, distinguiu-se em diversos níveis. Como literato, ficou proverbial, apesar dos poucos versos que até nós chegaram, a sua reconhecida erudição. Como chefe religioso e sufi, deu origem ao movimento dos Muridîn, onde se avantajou como imam e mahdi. Como emir de Taifas chegou a governar, embora brevemente, uma parcela relativamente considerável do Gharb al-Andalus. A sua actividade política esteve na origem de dois factos marcantes no século XII: a vinda e estabelecimento dos Almôadas na Península Ibérica e a aliança que fez com D. Afonso Henriques, num momento em que Portugal caminhava para a afirmação definitiva como Estado. Todavia, são misteriosos muitos aspectos da sua vida. Grande parte do seu percurso permanece envolto em sombras, sendo certo que se impõe, a nosso ver, e na sequência de investigações que vimos desenvolvendo há alguns anos, uma completa reinterpretação do seu percurso e interferência nos sucessos históricos do século XII.
ADALBERTO ALVES
A fonte mais directa para o conhecimento da época do grande místico seria, sem dúvida, a História dos Muridinos ou Revolta dos Muridinos, do seu contemporâneo e, por assim dizer, conterrâneo Ibn Sâhib al-Salât, história essa a que este faz frequente referência no seu Al-Mann bi-l-Imâma. (1) Todavia, trata-se de uma obra que, até hoje, não foi possível localizar e que se crê perdida.
O juízo das fontes árabes, acolhida em grande parte dos casos, de forma muito acrítica, pela historiografia posterior, é extremamente negativo para Ibn Qasi: bastará recordarmos Ibn al-Abbâr, Ibn al-Khatîb, al-Marrâkushî ou Ibn Khaldûn aos quais, nos tempos modernos, se seguiram Conde, Codera, Afîfî, David Lopes ou Addas. (2)
Conde chega ao extremo de inventar pormenores caricatos sobre o relacionamento entre Afonso Henriques e Ibn Qasî. Codera limita-se a transcrever, sobretudo, Ibn al-Khatîb, sem todavia, questionar os seus juízos. David Lopes tem o mérito de ter traduzido, parcialmente, algumas fontes mas sem tentar uma abordagem crítica. Afîfî, apesar da sua erudição na mística islâmica, parece não ter chegado nunca a conhecer directamente o tratado místico de Ibn Qasî, O Descalçar das Sandálias (Khal’ al-Na’layn), já que o seu estudo se limita a fazer uma colagem de passagens desta obra, citadas por Ibn ‘Arabî no seu Comentário (Sharkh) à mesma. Além disso, Afîfî demonstra juízos preconceituosos contra o shaykh de Silves, retirados apenas de algumas apreciações negativas de Ibn ‘Arabî constantes do Sharkh, mas ignorando completamente as numerosas que são favoráveis contidas nas Iluminações Mequenses (Futûhât al-Makkiyya).
Não admira, por isso, que as conclusões a que chega sejam estereotipadas e discutíveis. Claude Addas parece navegar nas mesmas águas: louva-se no Sharkh, para concluir que o juízo de Ibn Arabî sobre Ibn Qasî seria radicalmente negativo, esquecendo não só as ditas passagens das Futûhât como também as dos Engastes da Sabedoria (Fusûs al-Hikam) onde o Shaykh al-Akbar credita ao mestre dos Muridinos a paternidade de conceitos que ele próprio perfilha. É, por exemplo, o caso da importantíssima perspectiva sobre a equivalência dos Nomes Divinos. (3)
Ao que parece, todas as fontes árabes foram beber a Ibn Sâhib al-Salât que, como cronista de serviço do poder Almôada, denegriu quanto pôde Ibn Qasî e o seu movimento dos Muridinos. Tal tem a sua razão de ser: é que o assassínio do Shaykh, a mando dos almôadas, não conseguiu liquidar, desde logo, os Muridinos, que ainda resistiram, durante alguns anos, em diversas fortificações do Gharb, nomeadamente em Tavira. (4)
O próprio facto de o tratado místico de Ibn Qasî ter sido dado a conhecer por Ibn ‘Arabî, em Tunis, através do filho daquele, que aí se refugiara, inculca a ideia de que partidários dos Muridinos se terão espalhado por outras paragens, continuando a difusão das suas ideias sufis (5). De todo o modo, é incontestável que a popularidade dos Muridinos e o prestígio de Ibn Qasî foram um entrave muito mais forte e duradouro do que habitualmente se pensa à consolidação do poder almôada no Alandalus. Tal postulou a existência, por parte do regime magrebino, de escritos de contrapropaganda, quer política, quer religiosa, visando contrariar as ideias ismaelo-fatimidas, tidas como heréticas e socialmente subversivas. A obra de Ibn Sâhib al-Salât é, pois, de pura apologética almôada destinada a desacreditar a vaga muridínica aos olhos das populações do Gharb que tão profundamente haviam aderido às suas propostas quiliásticas e messiânicas.
É, por outro lado, sabido que o sufismo de Ibn Qasî, em parte tributário das ideias dos Ikhwân al-Safâ, apresentava uma coloração cripto-ismaelita que havia influenciado os ideais templários, com o seu messianismo da Jerusalém Celeste. Se pensarmos nas ligações entre Templários, S. Bernardo e a casa de Borgonha, a instalação do Conde D. Henrique, à testa do Condado Portucalense, bem poderá ter obedecido a uma intenção muito concreta. Daí a protecção e concessões que os Templários sucessivamente receberam de D. Henrique, D. Teresa e D. Afonso Henriques. (6)
O ideal sinárquico dos Templários casava-se bem com uma aliança entre o D. Afonso Henriques templário e o Ibn Qasî, sufi e chefe dos Muridinos. A esta luz, a aliança entre os dois soberanos ganha uma simbólica e um alcance que, até aqui, parecem ter passado completamente despercebidos.
Ibn Qasî é considerado, por um lado traidor, pelos ortodoxos sunitas, e a aliança é vista, por outro lado, como espúria, pelos cronistas cristãos, que pura e simplesmente a omitem. Além disso, Afonso Henriques, como para que branqueamento de tal “mácula”, é glorificado como mata-mouros e quase santificado no episódio lendário da batalha de Ourique. Ora, o primeiro rei de Portugal, se bem que grande conquistador de terras muçulmanas, foi simultaneamente um esforçado protector dos direitos das minorias mouras, consagrados em forais que espelham uma mimetização da Dhimma islâmica. É sabido o seu papel, aquando da conquista de Lisboa, para travar os cruzados do norte que todos queriam passar a fio de espada... Refira-se, ainda, que de mulher moura teve D. Afonso Henriques o seu filho bastardo, o infante Martim Afonso Chichorro.
O alcance da aliança entre Ibn Qasî e Afonso Henriques deve, assim, entender-se como algo de verdadeiramente significante, e não mero pacto de oportunismo. É isso que resulta do estudo aprofundado das ideias sufis daquele e dos ideais templários deste.
Por isso, as três teses de doutoramento sobre Ibn Qasî, de Goodrich, Dreher e Elliot, embora apresentando importantes contributos, são viradas, sobretudo, à exterioridade política da actuação do chefe dos Muridinos. Têm, todavia, todas elas, os seus diferentes méritos. Goodrich estabeleceu o texto árabe, embora baseado apenas num dos manuscritos. Dreher apresentou uma tradução parcial, baseada no outro manuscrito, mas circunscrita ao escopo da sua tese. Elliot procura dar uma visão de conjunto através de pequenos excertos de cada um dos capítulos mas deixando quase de lado o texto qassiano.
Falta cumprir uma das etapas fundamentais: inserir a mensagem global do seu Livro no conjunto da tradição sufi e da gnose ismaelita e, muito em particular, relacioná-la não só com os Mestres da impropriamente chamada Escola de Almeria mas também com a dos seus discípulos, directos e indirectos, entre os quais se inclui, evidentemente, Ibn ‘Arabî, através das obras já citadas.
Parece ser este o caminho mais seguro e estimulante para uma compreensão do pensamento muridínico e para uma interpretação da carreira, intensa, e aparentemente desconcertante de Ibn Qasî. (7)
(1) Publicado com estudo preliminar, tradução e índices por Huici Miranda, A., Valência, 1969.
(2) Conde, José António: História de la dominación de los árabes em España, Madrid, 1874; Codera, Francisco: Decadencia y desaparición de los Almoravides en España, Zaragoza, 1899; Afîfî, A.: “Abû-I-Qasîm b.Qasî wa Kitabuhu Khal al-- Na’layn” in Majallat Kullîyat al-âdâb XI, 1957, 53 - 87, edição da Jâmi’at al-- iskandirîya; Lopes, David: Os árabes nas obras de Alexandre Herculano, Lisboa, 1911; Addas, Claude: Ibn Arabî ou la Quête du Soufre Rouge, Paris, 1989, e “Andalusi Mysticism and the rise of Ibn Arabî” in The legacy of Muslim Spain, Leiden, 1992.
(3) “Na verdade cada Nome Divino é qualificado por todos os Nomes Divinos”; traduzido como Sabedoria dos Profetas, por Titus Burckhardt, Paris, 1955.
(4) Al-Mann..., ed. cit., 134/135.
(5) Halima Ferhat p. ex., defende em Le Maghreb au XII et XIII siécles: les siécles de la foi, Casablanca, 1993, que Tahir Sadafî, autor místico dos finais do século XII teria sido difusor ou continuador das ideias muridínicas. Embora não tenhamos lido o manuscrito inédito da Biblioteca de Berlim, já temos a sua tradução alemã, e julgamos forçada uma assimilação dos discípulos de Ibn al-’Arîf aos muridinos.
(6) De facto, D. Afonso Henriques, no documento em que confirma a con- cessão aos Templários do Castelo de Soure, afirma expressamente “...em vossa Irmandade e em todas vossas boas obras sou irmão...”, cf. Frei Bernardo da Costa, História da Militar Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, Coimbra, 1771, 158-9.
(7) Comunicação apresentada no Simpósio Internacional O al-Andalus e a Formação do Reino de Portugal, realizado de 16 a 17 de Fevereiro de 1996 na Reitoria da Universidade de Lisboa e a incluir nas Actas respectivas e também inserido na minha obra “Nítido Crescente”, Lisboa, Ed. Hugin, 1997.
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