"A Europa era uma espécie de Maria Antonieta"

Por Paulo Moura, "Público", 31/03/2008

Slavenka Draculic, que esteve em Lisboa a apresentar o seu livro "Não faziam mal a uma mosca", sobre os julgamentos dos crimes de guerra da ex-Jugoslávia, é a escritora dos paradoxos

Antes da queda dos regimes comunistas, os países do Leste da Europa sonhavam com o Ocidente. Sonhavam com a Europa. Com uma Europa que imaginavam. Depois, foi a decepção. "As pessoas que viviam sob o comunismo não podiam viajar, não conheciam o Ocidente. Pensavam que, lá, toda a gente era rica, tinha um bom carro e roupas maravilhosas. Na nossa imaginação, a Europa era uma senhora linda e frívola, rica e bem vestida, que só come bolos... Uma espécie de Maria Antonieta. Foram grandes expectativas, seguidas de um grande desapontamento", conta ao P2 Slavenka Draculic, a jornalista croata de 59 anos que escreveu vários livros sobre esse desapontamento.Como sobrevivemos ao Comunismo e não perdemos o Sentido de Humor foi o primeiro de uma série de livros sobre o choque das duas Europas. Café Europa foi o segundo e um terceiro está em preparação. Sobre o grande choque político, mas principalmente sobre os pequenos choques, ao nível das pessoas comuns, ou ainda mais abaixo, ao nível dos sapos, como a autora gosta de definir o seu ângulo. "É a única visão que me interessa, a visão do sapo. A política vê as coisas de cima. Eu gosto desta perspectiva que observa a partir do chão."

Para escrever, Slavenka viaja. Percorreu todos os países do Leste que entraram na União Europeia, para perceber as várias formas de adaptação, as estratégias de sobrevivência das pessoas concretas. "A mentalidade não muda tão rapidamente como a política. Os sistemas políticos podem mudar de um dia para o outro, as mentalidades levam gerações. Introduziram-se, ao mesmo tempo, a democracia e o capitalismo selvagem, e as pessoas ficaram confusas. Reagiram como se democracia e capitalismo fossem a mesma coisa. Começaram a acontecer coisas loucas. Era estranho ver o meu vizinho, que não acabou a escola e nunca foi muito honesto, ser, de repente, rico. Como era possível? Então ontem éramos todos iguais e agora este estupor é rico? E eu trabalho por 100 euros por mês e a minha mulher perdeu o emprego?"

Era uma nova realidade impossível de compreender pelas pessoas, e por isso era como se não existisse: a liberdade não era liberdade, a democracia não era democracia. "Com a excepção da Checoslováquia, nenhum destes países tinha tradição liberal. Passaram directamente do feudalismo para o socialismo. Por isso, era natural, por exemplo, ter Milosevic no poder dez anos seguidos, porque sempre tivemos um só partido e um líder forte. Ou seja: o sistema democrático estava lá, mas o país não funcionava como uma democracia. Ela existia mas não a podíamos usar."

O que pode o Leste dar

Este é um dos paradoxos recorrentes nos livros de Draculic: os países ex-socialistas não usufruem da democracia porque não sabem como o fazer. Porque estão habituados ao socialismo, que por sua vez não foi um verdadeiro socialismo, porque não havia tradição de liberdade. "O socialismo falhou porque foi implantado em países demasiado atrasados. Como me disse uma vez Kenneth Galbraith, se o comunismo tivesse nascido na Suécia teria sido completamente diferente." Em suma: o comunismo seria bom em países que não precisam dele. Onde era necessário, só piorou as coisas.

Draculic vive na Suécia e acredita que o modelo social-democrata que aí foi desenvolvido deveria ser adoptado no resto da Europa. Incluindo no Leste, que agora tem de escolher o que lhe convém, de entre tudo o que imaginou e tudo o que constatou ser a realidade da Europa ocidental. Este é um tema que preocupa os políticos e intelectuais no Leste, Slavenka Draculic incluída: o que podem aproveitar do Ocidente. Já outro tema é ignorado: o que tem o Leste a dar ao Ocidente. "Isso é uma pergunta que ninguém coloca, nos países do Leste. Achamos normal entrar na Europa, pois fazemos parte dela. Mas quando nos perguntam qual o nosso contributo para a ideia de Europa, não sabemos responder. Ficamos confusos."

No livro Café Europa, Draculic sugere que o contributo seja a capacidade de resistência. Mas agora pensa melhor: "Quem é que precisa disso?" De tudo o que existiu nos países socialistas, talvez possa ser aproveitado o ensino público. "A educação dos jovens fazia, e ainda faz, a diferença. Um bom sistema de ensino público e o investimento na cultura, nos artistas individualmente, é isso que talvez possamos ensinar ao Ocidente. Há cinco anos, quando eu ensinava nos EUA, tinha estudantes da Europa de Leste e eles eram os melhores alunos. Excelentes. Os seus conhecimentos eram muito superiores aos dos estudantes americanos."

O grande paradoxo

Mas os maiores paradoxos estão nos balcãs. Draculic tem também três livros sobre a região, o último dos quais, Não Faziam Mal a uma Mosca, acaba de ser editado em Portugal pela Pedra da Lua. Tem o subtítulo Como os homens banais podem ser criminosos de guerra e conta a história dos julgamentos do tribunal de Haia. Os paradoxos atravessam todo o livro. Chegam a ser hilariantes. Num dos capítulos, conta-se como os criminosos de guerra oriundos dos vários Estados da ex-Jugoslávia convivem amigavelmente na prisão. Anos antes, combateram-se uns aos outros, em guerras atrozes que provocaram centenas de milhares de mortos. Agora conversam, jogam às cartas, oferecem uns aos outros iguarias típicas dos vários países. Ali, na prisão onde foram parar precisamente pelas atrocidades que cometeram contra os povos uns dos outros, entendem-se bem.

E no entanto, "estão em Haia porque nos seus países nunca seriam julgados", explica Slavenka Draculic. "Apesar de terem espalhado o sofrimento e a morte nos seus povos, são por eles vistos como heróis. Por isso este tribunal é odiado na Sérvia, na Bósnia, na Croácia. Nós vemos estas pessoas como heróis. E como pode um herói estar a ser julgado como criminoso? Isto mostra que nenhum regime, nenhum sistema, nenhuma ideologia pode existir sem o apoio das pessoas. A ideologia de guerra, o nacionalismo foram apoiados pelo povo. Ao verem estes líderes serem punidos, as pessoas sentem-se também punidas. Porque, de uma forma ou de outra, participaram, colaboraram. Nenhum regime pode existir sem o colaboracionismo do seu povo."

É por isto que os julgamentos não podem realizar-se nos países onde os crimes foram cometidos. É também por isto que os povos têm dificuldade em lidar com o seu passado político.
"A Croácia é um caso particularmente difícil, porque, durante a II Guerra Mundial, foi um Estado fascista. Entre 1941 e 1945 tivemos o nosso próprio regime fascista. Quando andei na escola, nunca me ensinaram esses factos - o fascismo, a revolução comunista. Durante o período comunista, era permitido escrever sobre o fascismo, mas exagerava-se. Os historiadores jugoslavos escreveram que, num campo de concentração que existiu na Croácia, morreram 600 mil pessoas. A verdade é que terão morrido 60 mil. O comunismo exagerava os crimes do Estado fascista e ocultava os seus. Lidávamos com mitos, não com História."

Enfrentar o passado com verdade é dos exercícios mais difíceis de fazer. Mas, ainda assim, necessários, acredita Draculic. "Há duas formas de lidar com o passado. A forma espanhola, que prefere esquecer, não saber dos crimes de Franco, nem quem o apoiou, e a forma alemã, em que se olha o passado nos olhos. É claro que os alemães o fizeram porque foram obrigados. Mas eu acho que devemos adoptar o modelo alemão. O espanhol não vai funcionar. Temos de lidar com a responsabilidade. Não a culpa. Os líderes, esses, são culpados e deve ser um tribunal a decidi-lo. Mas a responsabilidade é dos povos."

O objectivo é, obviamente, não repetir os erros. Mas então se a Jugoslávia, precisamente por não ter conseguido esquecer a sua História, após a queda do comunismo, entrou numa guerra sangrenta... É um paradoxo. Mais um.

Slavenka está no seu terreno. Paradoxos são a matéria-prima do seu pensamento. "Na Jugoslávia, estávamos melhor, éramos mais livres do que no resto do bloco comunista. Tínhamos um socialismo de rosto humano, em que podíamos acreditar. A minha geração acreditou. Por isso, não desenvolvemos alternativas. A Polónia tinha Lech Walensa, A Checoslováquia Vaclav Havel. Nós fomos apanhados sem alternativas. Foi por isso que tivémos a guerra. A responsabilidade é da minha geração."

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