Na Palestina, a 20 km do mar, sem nunca o ter visto



Ainda que a menos de 20 quilómetros de distância, só 9% dos palestinianos da Cisjordânia viram alguma vez o Mediterrâneo. Histórias de uma obsessão marítima - e de como ela explica o conflito com Israel

Na Palestina, a 20 km do mar, sem nunca o ter visto

 
Ricardo J. Rodrigues
Diário de Notícias


Muro atrás de muro atrás de muro atrás de muro. As oficinas da prisão de Jericó são capazes de ser o lugar mais fortificado que existe na Cisjordânia. Quem vem de Israel precisa de atravessar o grande paredão de cimento que separa o país da Palestina, sim, mas mesmo quem mora naqueles territórios tem de passar vários checkpoints militares até conseguir entrar na cidade.

A cadeia fica logo à entrada, numa estrada coberta de areia - atrás de um novo muro e de uma nova vedação. Depois há portas com grades, umas atrás das outras, até se desaguar numa sala vigiada por dois guardas e três câmaras, onde meia dúzia de homens trabalham de manhã à noite. Na sala de marcenaria de uma cadeia palestiniana, um grupo de prisioneiros esculpe cadeiras, janelas e todo um mundo de alternativas.

"Eu esculpo barcos", diz um prisioneiro na cadeia de Jericó. "Mas nunca andei de barco. Nunca vi sequer o mar."

Hassan Safi tem 81 anos, é o mais velho de todos. Condenado por homicídio qualificado há 16, não tem a certeza se o corpo aguentará os nove anos de pena que ainda tem para cumprir. O bom comportamento, ainda assim, valeu-lhe estatuto de carpinteiro-chefe - e a possibilidade de dar à madeira a forma que bem entender. "Eu esculpo barcos", e pega num casco já composto para mostrar do que fala. Mede um bom metro de comprido, ainda lhe faltam os mastros e os remos, as suas naus são réplicas atentas, minuciosas.

Na vida anterior, Hassan era alfaiate, e por isso gosta de enfeitar as tábuas com tecidos, criar relevos com algodão e texturas com panos bordados. Em média, batiza um navio por semana, e a todos dá nomes de mulheres. "Este vai ser o Fatima, um dia há de navegar até Portugal", diz com uma gargalhada. Logo a seguir atira uma ironia: "Nunca andei de barco. Nunca vi sequer o mar." As embarcações que talha com as mãos são por isso puro desejo: "Não imagino nada que mais liberte do que poder velejar o oceano. Foi uma coisa que imaginei a minha vida toda. Já que não o vou poder cumprir, posso ao menos fazer estes barcos. Depois logo invento um mar na cabeça para eles navegarem."

É espantoso ver a ondulação que corre no peito de Hassan, e no entanto ela é muito mais frequente do que seria de esperar. "Na Cisjordânia, há uma obsessão completa com o mar", conta ao DN Nour Odeh, correspondente da cadeia de televisão Al Jazeera na Palestina. "Dos mais velhos aos mais novos, o desejo de ver o Mediterrâneo tornou-se o novo discurso de protesto. Isso vê-se na pintura, no hip hop, nos graffiti, mas também nas conversas. A impossibilidade de chegarem ao Mediterrâneo serve de metáfora à ocupação israelita e, ao criarem representações marítimas, ao inventarem o seu próprio mar, é como se resistissem a essa ocupação."

Se há 1,8 milhões de palestinianos em Gaza que vivem na borda do mar, os 3,5 milhões da Cisjordânia queixam-se de o Mediterrâneo se ter tornado uma impossibilidade nas suas vidas. Não é seguramente pela distância - o ponto mais ocidental do território, em linha reta, não dista mais de 19 quilómetros da água. É a dificuldade de entrar em Israel que impede os dias de praia para os cisjordanos. Em 2017, segundo o relatório do Gabinete de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, foram concedidas autorizações de circulação a 300 mil palestinianos da Cisjordânia. A maioria para poderem trabalhar ou recorrer a cuidados de saúde.

"É praticamente impossível alguém da Cisjordânia poder hoje chegar ao mar sem ser travado num checkpoint", admite Nimrod Gorem, professor de Ciência Política e diretor do Mitvim, o Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Jerusalém. "Mas a questão é muito mais complexa do que parece dos dois lados." No final do ano passado, a Universidade de Ramallah apresentou um estudo em que estima que apenas 9% dos habitantes da Cisjordânia tinham estado alguma vez na praia. A estatística desce para menos de 3% quando se fala dos menores de 25 anos - o escalão etário para 57,9% da população. O diretor do Mitvim, do outro lado do muro, concorda que "estes números são sólidos".

Se a impossibilidade marítima gera concordância dos dois lados da barricada, o mesmo não se pode dizer dos motivos que levaram a região a este ponto. Primeiro os factos: depois da fundação em 1948 e de travar a Guerra dos Seis Dias em 1967, Israel admitiu a abertura das fronteiras em 1972, e durante quase duas décadas os palestinianos puderam circular livres no Médio Oriente. Mas, com o levantamento da Primeira Intifada em 1987 e o apoio palestiniano à invasão do Koweit em 1991, as regras de livre circulação tornaram-se altamente restritivas. Israel construiu uma vedação a separar Gaza e outra a Cisjordânia.

Agora as opiniões: do lado israelita, o fim da circulação de palestinianos no território foi uma questão de segurança interna. A imposição de autorizações de circulação foi imposta em 1991, dois anos depois do primeiro ataque suicida em solo israelita, que matou 29 pessoas. Com o aumento de atentados kamikaze nos anos 1990 e o levantamento da Segunda Intifada em 2000, a política passou a ser de restrição absoluta. Ainda mais porque os palestinianos tinham um slogan de combate: "A nossa terra vai do rio ao mar". Era preciso travá-la. E foi.

Na Cisjordânia, no entanto, acredita-se que Telavive pratica uma política de humilhação. Há famílias separadas, recusas de vistos inexplicáveis, ocupação ilegal com colunatos de terrenos que foram determinados palestinianos em acordos de paz assinados por ambas as partes. Pergunte-se a um palestiniano da Cisjordânia sobre injustiça que ele conta de imediato a história de uma criança morta a tiro a caminho da escola, de um orfanato bombardeado sem motivo aparente, de os soldados matarem por sadismo os rebanhos dos mais pobres. Perguntem a um palestiniano da Cisjordânia pela injustiça que ele responde com a ondulação que nunca viu. Com o mergulho, livre e salgado, a que toda a humanidade devia ter direito.

A urgência da maresia

Anuar e Qosay, que cresceram nas ruas de Ramallah, aprenderam duas coisas. Quando, no meio de um protesto, se forma um círculo de gente, é porque alguém sacou de uma faca e está prestes a acontecer um duelo. Se, ao invés, houver um núcleo na multidão que dispersa em fuga apressada, então houve alguém que puxou de uma arma de fogo. "Qualquer palestiniano sabe isto, é uma espécie de guia de sobrevivência", explica o primeiro, dois meses e três dias mais velho do que o outro. Têm ambos 16 anos, são amigos desde que se lembram de ser gente. "E é quando se vê toda a gente a fugir que se criam as melhores oportunidades."

Foi esse conhecimento que tentaram aplicar há ano e meio, ainda que as coisas não lhes tenham corrido de feição. A 16 de julho de 2017 mantiveram-se na margem de um protesto que decorria na cidade, revolta instalada para assinalar três anos desde que as tropas israelitas mataram quatro crianças palestinianas que jogavam futebol numa praia em Gaza. "A determinada altura ouvimos um estoiro e vimos uma data de gente a correr. Percebemos que era a nossa oportunidade."

Sem possibilidade de chegar ao mar, os cisjordanos inventaram o seu. É também uma forma de resistir à ocupação.

Quando todos os olhares pareciam distraídos, entraram numa loja que vende um pouco de tudo - a cidade está cheia delas - e dirigiram-se à caixa registadora. "Mas o dono começou a gritar e fomos logo apanhados pela polícia. Não pela israelita, pela palestiniana. Foi uma grande vergonha." O tribunal de menores institucionalizou-os na Casa da Esperança, a antiga residência do governador britânico da Palestina que hoje serve como orfanato e centro de correção. "Queríamos ter dinheiro para subornar os guardas e poder ir a Gaza ver o mar. Queríamos jogar futebol no mesmo lugar onde tinham matado aqueles rapazes", conta o mais novo - e a conversa tanto pode ser cantiga verdadeira como desculpa de condenado.

"Estes dois só pensavam no mar e então tivemos de inventar um mar que lhes coubesse na cabeça", diz agora Malik Abu Kalil, psicólogo e diretor da instituição que recebe anualmente 70 rapazes. "Peguei no Mediterrâneo como terapêutica e dei-lhes a ler O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, e foi assim que comecei a chegar a eles." No combate literário entre um homem e um peixe podia estabelecer-se a afirmação de dois miúdos que se tinham um ao outro, e pouco mais. "Se queriam ir a Gaza ver o Mediterrâneo, expliquei-lhes, podiam optar por estudar e ser médicos. É a maneira mais certeira de entrarem."

Apesar de os acordos de paz de Oslo, celebrados em 1993, preverem a unidade dos dois territórios, os últimos anos têm marcado cada vez mais a separação entre a Cisjordânia e Gaza. Os primeiros são governados pela Fatah, que tem sofrido uma série de escândalos de corrupção. Os segundos pelo Hamas, organização catalogada como terrorista mas com a qual o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tem estabelecido uma série de acordos - muitos analistas acreditam que o seu único objetivo é dividir ainda mais as hostes palestinianas.

Há cada vez menos diálogo entre ambos. Em 2017, segundo o Gabinete de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, só 6% dos 800 mil cisjordanos que pediram autorização a Israel para entrar em Gaza viram o seu desejo concedido. "A exceção são os médicos, que entram quase imediatamente", diz Lubna Shomali, diretora da ONG Badil, que se ocupa precisamente dos diretos de mobilidade entre os dois territórios. "Há uma carência de cuidados de saúde que não interessa a ninguém. Muito menos aos israelitas, que não querem ver os seus hospitais cheios de palestinianos."

Anuar e Qosay andam por estes dias a receber explicações de Matemática, querem entrar em Medicina na universidade e exercê-la na outra Palestina marítima. O estudo em vez do roubo, para ver o mar. O diretor da Casa da Esperança está confiante: "Ah, caramba, eles vão conseguir."

Maré velha, maré nova

Ein Arik é uma aldeia agrícola de 700 almas nos arredores de Ramallah, que tem a particularidade de albergar uma igreja católica, uma mesquita islâmica e uma escola que acolhe crianças das duas confissões. Nisto há que estabelecer uma certa igualdade: tanto Israel como a Palestina acolhem comunidades francamente ecuménicas. Cristãos, budistas ou hindus (e até agnósticos ou ateus) não têm nesta parte do globo problemas de maior: é entre judeus e islâmicos que as posições se extremam.

Aqui confluem crianças dos 4 aos 14, chegam de todas as aldeias em redor. Na sala do 6.º ano decorre a aula em inglês - e hoje o tema é precisamente o mar. "The sea I"ve never been to", escreve o professor no quadro, o mar onde nunca estive. Há 23 alunos na sala e nenhum furou alguma vez as ondas. Em grupos de dois vão desenhando o Mediterrâneo, Hussan e Ramzi escangalham-se a rir quando o primeiro desenha uma rapariga na toalha - e desenha-a de biquíni, como vê nos filmes. Têm 12 anos, malandrice de sobra. Bahar, diz Ramzi, o mar.

"É essencial ensinar os mais novos sobre o mar", preocupa-se Beit Jebrin, 94 anos, enquanto serve um copo de água no quarto onde vive há 71 anos. Isto é o campo de refugiados de Aida, em Belém, albergue de cinco mil almas palestinianas desde 1948. O homem é um dos poucos que chegaram no início, agora vivem aqui a segunda e a terceira geração de exilados palestinianos, e às vezes a quarta. Mesmo os que nasceram ali nunca dizem que são dali, antes referem a terra dos antepassados. As tendas tornaram-se paredes de tijolo e cimento, mas toda a gente sente vive numa cidade provisória. Hão de voltar a casa. E hão de voltar ao mar.

Entre os 18 e os 23 anos, Beit foi nadador-salvador na praia da Haifa - hoje é terra israelita, está-lhe vedada. "Cresci ali e o meu pai não foi meigo quando me ensinou a manter à tona de água. Atirava-me para fora de pé e eu que me safasse. Mas foi assim que aprendi." Lá, na Galileia, o Mediterrâneo enche-se de manhas, afiança ele, às vezes a corrente muda e arrasta os incautos para longe da areia. "Se algum dia estes miúdos puderem voltar à praia, temos de garantir que não se afogam."

Há 71 anos que Beit não molha os pés na ondulação. "Não é que me tenham faltado oportunidades de ir, é que Haifa é palestiniana e dói-me que lhe chamem israelita. Voltarei quando a Palestina for um país, e acredito que isso aconteça antes de eu morrer." Mohammad, 29, o seu neto, ouve-o atentamente. É ele que vai traduzindo a conversa, aliás. E de repente começa a discutir com a ascendência, diz que a solução dos dois Estados está morta, Israel e Palestina acabarão por tornar-se um único país.

A conversa sobe de tom, para o avô a ideia é quase blasfema. A sua geração cresceu a sonhar com um país para si, e a criação de dois Estados nos terrenos que são hoje de Israel foi firmada nos Acordos de Oslo em 1993, é apoiada pela ONU e a União Europeia, como é que o neto se atreve a pensar diferente? "A minha geração perdeu a esperança nessa solução", há de contar Mohammad mais tarde, enquanto passeia pelo campo de Aida, percorrendo com os dedos o enorme muro de cimento por onde não pode passar. "Há cada vez mais gente jovem que acredita que Palestina e Israel têm de ser um único Estado, com uma só nacionalidade e direitos iguais para todos."

Os números dão lhe razão. No final do ano passado, o Centro Palestiniano de Investigação e Pesquisa concluiu que apenas 43% da população acredita agora que Israel e Palestina tenham condições para ser dois Estados separados. Do outro lado, o Mitvim fez um inquérito em que afirmava que metade dos israelitas aceitaria sentar-se à mesa das negociações para pensar nessa solução.

"Mas o problema é sempre o mesmo", diz Nimrod Gorem, diretor da instituição. "O processo está inquinado porque uns quererão sempre prevalecer sobre os outros. Tenho sérias dúvidas de que tenhamos paz sem que antes tenhamos um novo período de conflito. As perspetivas imediatas para um acordo são tudo menos animadoras."

Mohammad também tem dúvidas, mas já não acredita nos políticos palestinianos. A divisão entre Fatah e Hamas, as suspeitas constantes de corrupção e o impasse em que vive desde que nasceu não lhe dão qualquer esperança. Junto à sua casa estão duas mulheres, mãe e filha, Inshirah e Isra Abysuod, e Mohammad apresenta-as como as duas únicas representantes femininas do campo de Aida a algum dia terem visto a ondulação.

A mãe tem 53, a filha 28. Com autorizações dos maridos tomaram a estrada para a Jordânia, e de lá um voo para Barcelona. Passaram umas boas horas a ver o Mediterrâneo. "O que mais me impressionou não foi a cor nem o movimento das ondas", conta Isra. "A coisa mais bonita de todas foi perceber que o mar tinha uma voz. Nunca tinha pensado que ele fizesse tanto barulho."

Fonte:  https://www.dn.pt/edicao-do-dia/20-abr-2019/interior/o-mar-que-a-palestina-inventou-10815866.html

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