O Êxodo Português para o Império Otomano
Segundo o
historiador Carsten Wilke, a expulsão de Espanha dos sefarditas foi um
dos acontecimentos mais traumatizantes da história judaica
até ao Holocausto do séc. XX. Beyazit II, filho de Mehmet II,
ordenou que os seus funcionários deixassem entrar os sefarditas no
Império Otomano. Cerca de duzentos mil judeus foram assim acolhidos pelo
Império, e destes, cem mil fixaram-se na Salónica e em Istambul. É
de Beyazit II a célebre frase «O Rei Fernando de Espanha não é sábio
como se diz, ele empobrece o seu Reino para enriquecer o
nosso». O sultão referia-se à cultura e aos conhecimentos médicos,
náuticos, matemáticos, filosóficos, linguísticos que muitos dos sfaradim haviam levado consigo para o império.
As comunidades judaicas eram predominantemente urbanas e dividiam-se
por países de origem em congregações (kehillah). A kehillah portuguesa
era designada por «Portakal» a palavra otomana para
Portugal. Em geral, o proselitismo não foi uma parte integrante da
política dos otomanos e como tal os judeus puderam conservar a sua fé e
rituais. Um século mais tarde, um turista inglês que
visitava Istambul, terá afirmado que a capital do Califado teria a
maior concentração de judeus do mundo.
Nos trezentos anos que se seguiram à expulsão, a prosperidade e a
criatividade dos sefarditas, agora súbditos otomanos, rivalizou com a da
Idade de Ouro do Judaísmo Hispânico.
CRISTINA DANGERFIELD-VOGT
O Fim da Idade de Ouro do Judaísmo Hispânico
Em Janeiro de 1492, a tomada de Granada foi a última etapa da
Reconquista Cristã na Península Ibérica da qual resultou a expulsão dos
últimos mouros do Al-Andalus. Com o fim do Califado na
Europa, desapareceu uma sociedade em que muçulmanos, judeus e
cristãos viviam lado a lado num espírito de tolerância relativa e
anacrónico e cujos piores tempos da intolerância ainda estavam para
vir.
O Al-Andalus foi uma sociedade multicultural, mas também a
Idade de Ouro do Judaísmo Hispânico. Deixou-nos vários legados: a
tradução dos textos clássicos gregos para árabe, evitando assim o
seu desaparecimento; a invenção de tecnologia agrícola e náutica; a
inovação artesanal, comercial e financeira; descobertas e avanços
significativos no campo da medicina e da ciência; na área da
filosofia, destaca-se o trabalho daquele que foi considerado o pai
do pensamento secular na Europa Ocidental, Abu-al-Walib Muhammad Bin
Ahmad Bin Rushd, conhecido por Ibn Rushd, latinizado para
Averróis. Nascido em Córdoba e, mais tarde, exilado em Marrocos,
deixou-nos uma vasta obra de comentário analítico sobre os textos de
Aristóteles. Maimónides foi um médico do Al-Andalus,
cuja reputação o levou a leccionar na universidade de Fez e a estar
ao serviço do filho de Saladino no Cairo, deixando tratados de teologia e
filosofia com uma marca influente de Averróis. As
grandes invenções dessa época saíram desse convívio, geralmente
pacífico, entre as três grandes religiões do Livro.
Ironicamente seria
no palácio mouro, Al-Ḥamrā', ou Alhambra, em cuja
construção trabalharam árabes, judeus e cristãos, que viria a ser
assinado o documento de perseguição aos judeus, incluindo os muçulmanos.
Este conjunto de arquitectura mourisca ficou para a
história como testemunho de uma civilização mais avançada: o palácio
tinha água canalizada, instalações sanitárias e um sistema de irrigação
próprio, ao revés dos palácios medievais europeus da
altura, habitados pelos Reis Católicos de Castela e Aragão e de
outros da Europa Medieval. O Califado na Europa, que terminava
derrotado, tinha sido uma luz de civilização durante a Idade Média
europeia.
A intensificação das perseguições aos Judeus, legitimadas
pelo Édito assinado no palácio de Alhambra em Maio de 1492, que ordenava
a expulsão de todos os judeus de Espanha, até ao fim
de Julho desse mesmo ano, e revogava as excepções previstas no
Tratado de Granada de 1491, obrigou muitos judeus a abandonar Espanha.
Segundo algumas fontes, partiram entre cem mil a duzentos mil
judeus de Espanha. Cerca de noventa mil refugiaram-se em Portugal e
juntaram-se às comunidades judaicas mais antigas que alguns
historiadores afirmam datar do séc. VI d. C.
Mas este refúgio foi
seguro por pouco tempo. Em 1496, D. Manuel I ordena a expulsão de
todos os judeus e muçulmanos de Portugal, dando cumprimento aos termos
do contrato de casamento com Isabel de Aragão impostos
pelos Reis Católicos de Espanha. Para obstar ao desastre económico
criado pela partida dos Judeus, o rei ordena a conversão geral no ano
seguinte, o encerramento das sinagogas, a destruição de
todos os livros judaicos, bem como dos cemitérios e a retirada das
crianças de catorze anos e a sua entrega a famílias cristãs.
A
integração dos judeus convertidos à força foi dificultada pelo
ódio popular contra os cristãos-novos, vistos com desconfiança, o
que conduziria ao massacre de 1506 e à instauração da Inquisição, em
1536, aprovada por bula papal. A maioria dos judeus
conversos continuou a praticar o judaísmo em segredo, sendo
designados por marranos, em hebraico, anusim (os violentados), outros conseguiram escapar para o Norte de África e para a
Europa Central, juntando-se os últimos ao grupo dos ashquenazim
(palavra hebraica que designa os judeus em Terras alemãs). Alguns
destes sediaram-se na cidade de Hamburgo formando uma
comunidade sefardita com instituições próprias incluindo uma
sinagoga, escolas talmúdicas (talmuld torah e yeshivot) e um cemitério
que ainda hoje existe, em Altona. O Holocausto destruiu este
centro da diáspora judaica portuguesa. O êxodo de Portugal durou
cerca de trezentos anos.
Terra de Acolhimento – O Império Otomano
Um número elevado destes judeus hispânicos, por isso designados sfaradim (Sfarad é Espanha em hebraico), encontraram refúgio no Império Otomano, chegando mesmo o grande Padişah
(Sultão em turco) a enviar barcos para os socorrer. Estes Judeus
falavam ladino (judeo-espanhol), uma mistura de espanhol antigo com
hebraico, e que ainda hoje é falado, com variações, pelas
comunidades sefarditas da Turquia e de Israel.
Os Judeus do Império Bizantino foram também eles perseguidos,
especialmente quando o Cristianismo foi declarado religião oficial por
Theodosius 11 (408-450) e os excluiu dos direitos básicos de
cidadania e proibiu a construção de novas sinagogas.
Assim quando os Otomanos conquistaram Bursa em 1324, encontraram uma
população judia muito oprimida que os recebeu como os seus salvadores. O
Sultão Orhan conferiu aos judeus da cidade
autorização para construírem a sinagoga de Etz Ha-Hayyim (Árvore da
Vida).
Os Judeus começaram a fugir da Europa para o Império Otomano, no
século XIV, da Hungria em 1376, de França, em 1394 e da Sicília, no
início do séc. XV.
A Idade de Ouro do Judaísmo Otomano
Fatih Mehmed conquistou Constantinopla em 1453, tendo não só
protegido os judeus que viviam no império e tinham sido minorias
oprimidas durante o Império Bizantino, mas também chamado os judeus
da Europa ao Império, enviando barcos em seu auxílio. Mandou
proclamar que «Quem estiver connosco, que o seu Deus esteja com ele,
deixêmo-lo elevar-se a Istambul, o lugar do nosso trono imperial.
Deixêmo-lo viver nas melhores terras, cada um debaixo da sua vinha e
da sua figueira, com prata e ouro, com riqueza e gado. Deixêmo-lo viver
na terra, fazer comércio e tomar a sua posse». O Rabi
Yitzhak Tsafarti enviou uma carta às comunidades judaicas da Europa,
depois da Queda do Império Bizantino, convidando os judeus a abandonar
os tormentos que sofriam às mãos da cristandade e
procurar segurança e prosperidade no Império Otomano.
Segundo o
historiador Carsten Wilke, a expulsão de Espanha dos sefarditas foi um
dos acontecimentos mais traumatizantes da história judaica
até ao Holocausto do séc. XX. Beyazit II, filho de Mehmet II,
ordenou que os seus funcionários deixassem entrar os sefarditas no
Império. Cerca de duzentos mil judeus foram assim acolhidos pelo
Império, e destes, cem mil fixaram-se na Salónica e em Istambul. É
de Beyazit II a célebre frase «O Rei Fernando de Espanha não é sábio
como se diz, ele empobrece o seu Reino para enriquecer o
nosso». O sultão referia-se à cultura e aos conhecimentos médicos,
náuticos, matemáticos, filosóficos, linguísticos que muitos dos sfaradim haviam levado consigo para o império.
As comunidades judaicas eram predominantemente urbanas e dividiam-se
por países de origem em congregações (kehillah). A kehillah portuguesa
era designada por «Portakal» a palavra otomana para
Portugal. Em geral, o proselitismo não foi uma parte integrante da
política dos otomanos e como tal os judeus puderam conservar a sua fé e
rituais. Um século mais tarde, um turista inglês que
visitava Istambul, terá afirmado que a capital do Califado teria a
maior concentração de judeus do mundo.
Sefarditas Portugueses na Corte Otomana
Nos trezentos anos que se seguiram à expulsão, a prosperidade e a
criatividade dos sefarditas, agora súbditos otomanos, rivalizou com a da
Idade de Ouro do Judaísmo Hispânico. Quatro cidades do
Império Otomano tornaram-se centros da comunidade sefardita;
Istambul, Izmir, Safed e Salónica.
David e Samuel Ibn Nahmias introduziram a imprensa no Império
Otomano, em 1493, quando estabeleceram a primeira imprensa hebraica. A
maioria dos médicos da corte otomana eram judeus e vários
desempenharam cargos importantes, como Hekim Yacoub, que foi médico
pessoal, tesoureiro e conselheiro de Mehmed II, Efraim ben Nissim Ibn
Sanchi, português, sucedeu-lhe como médico na corte;
Hamon, português, foi médico na corte e Ishak Pasha foi médico de
Murat II. Abraham de Castro foi responsável pela Emissão da Moeda no
Egipto otomano. O marrano Daniel Fonseca, médico e
diplomata, em Istambul, nasceu no Porto. Joseph Nasi, sobrinho de
Grácia Nasi Mendes, sefardita português, foi diplomata e o conselheiro
pessoalíssimo de Selim II, sendo, mais tarde, nomeado
Duque de Naxos, ou seja governador de um grupo de ilhas no Mar Egeu
onde eram produzidos vinhos raros para exportação. O matemático e
astrónomo, Abraão Bar Samuel Zacut, nasceu em Salamanca e,
depois do Édito de Alhambra, refugiou-se em Portugal. Segundo
algumas fontes, terá sido astrónomo do Rei D. João II de Portugal e o
grande defensor da rota marítima para a Índia, no início do
reinado de D. Manuel I. Obrigado a deixar Portugal, refugiou-se na
Tunísia e, mais tarde, na Turquia. Grácia Nasi Mendes, banqueira
sefardita portuguesa, operando em toda a Europa, salvou
milhares de Judeus fretando barcos para os resgatar sob a protecção
do Sultão Soleimão. João Rodrigues de Castelo Branco, sefardita
português, que foi médico e escritor, dominava várias línguas,
e deixou Portugal rumo a Istambul, acompanhado de Grácia Nasi e
Joseph Nasi. Decidiu, no entanto, separar-se deles em Ancona, e ficar em
Ferrara, chegando a ser médico pessoal do Papa Paulo III.
Perseguido procurou refúgio no Império Otomano, na Salónica, onde
faleceu no combate à peste. Deixou-nos «As Centúrias», uma importante
obra na área da medicina.
Em 1840, o Sultão Abdulmecid ordenou por ferman, édito
imperial, a propósito da questão do «Libelo de Sangue» que «pelo amor
que temos pelos nossos súbditos, não podemos permitir que a
nação judaica, cuja inocência do crime alegado é evidente, seja
perturbada e atormentada por causa de uma acusação que não tem o mínimo
fundamento na verdade».
O Sistema das Nações no Império Otomano
Istambul foi uma Babel posicionada entre a Europa e a Ásia. Nos seus
mercados ouvia-se o otomano, o persa, o árabe, o ladino, o grego, o
arménio, o dialecto veneziano, entre muitas outras
línguas; nos seus lugares de culto o árabe, o hebraico, o latim, o
grego, o arménio e outras. E, apesar de a ordem islâmica distinguir
muçulmanos e dhimmis (não-muçulmanos), os Judeus
viveram no seio do Império uma liberdade inimaginável na Europa medieval e renascentista. Cabia-lhes o pagamento da djizia, um imposto pago por cabeça (capitação), e aplicado a todos os
homens não-muçulmanos.
Esta convivência e a liberdade de que gozavam os vários grupos
étnico-religiosos só foram possíveis graças a um sistema de governação
especial, nessa altura, inexistente na Europa: o sistema dos
millet, ou seja, das nações, em que era consagrada a
protecção dos direitos das minorias. Estas nações eram comunidades
religiosas não-muçulmanas entendidas no sentido que lhes é
atribuído pelo Alcorão e não no sentido europeu clássico de
«nações». Neste sistema, cada comunidade se autogovernava. As
comunidades judaicas regiam-se pela Halakhah (Lei Judaica), tinham os
seus tribunais próprios, em sede de direito da família e do direito
civil, liberdade de culto, as suas escolas e programas curriculares e
educação religiosa e a sua língua própria. O poder
administrativo e as instâncias judiciais superiores otomanas, que
tinham função tutelar ou de última instância a pedido das partes,
apoiavam-se num movimento de codificação, iniciado por Mehmet
II, que, numa constante adaptação, conciliava os princípios
derivados do direito consuetudinário e os usos e os costumes do
sultanato com o direito islâmico. A segurança do Estado e a cobrança
dos impostos era da competência da administração otomana. Contudo,
havia isenção de alguns impostos para os millet. A diversidade demográfica e populacional do Império exigira um sistema
político flexível e pragmático, tornando-se um exemplo de pluralismo religioso pré-moderno.
Em 1856 era promulgado o Édito Gülhane que estabelecia o princípio
da igualdade de todos os otomanos perante a lei e previa o início do
recrutamento militar obrigatório para todos os cidadãos do
Império, o que até à data se aplicava apenas aos muçulmanos. Este
Édito coincidiu com o desmembramento do Império e a fuga das populações
muçulmanas dos Balcãs para o centro do território
otomano, o que originou uma mudança demográfica significativa - três
quartos da população otomana passara a ser muçulmana. A chegada da
Europa de missionários protestantes para converter os
cristãos do oriente e os não-cristãos a um Império que, em geral,
não tinha forçado as suas minorias à conversão, contribuiu para o
agravamento das tensões. Os cristãos otomanos das várias
confissões começaram a olhar para os Europeus como os seus
salvadores. Um número crescente trabalhava nas concessões (capitulações)
que estavam sob jurisdição estrangeira, o que os libertava do
imposto per capita aplicado aos não-muçulmanos; o contacto
directo com os mercados estrangeiros conferia-lhes uma posição
privilegiada em termos económicos e o facto de não serem
recrutados para o serviço militar permitia às minorias uma
continuidade geracional nas suas relações comerciais com o estrangeiro.
As potências estrangeiras aproveitaram este período de
desmembramento do Império, de descontentamento da maioria por se
sentir lesada nos seus direitos e das tensões crescentes para fomentar a
discórdia entre as minorias cristãs e a maioria
muçulmana. No início do séc. XX, Istambul era uma cidade repleta de
refugiados muçulmanos dos Balcãs, da Crimeia e dos outros territórios
que o Império ia perdendo para os países europeus.
O relacionamento dos otomanos com as comunidades judaicas
caracterizou-se por uma proximidade especial. Particularmente, os judeus
sefarditas, fugidos da Inquisição e que nos séculos XVI e XVII
rapidamente excederam o número dos judeus “romanos” e dos
asquenazes, que através dos seus contactos comerciais na diáspora
sefardita e dos seus conhecimentos linguísticos, contribuíram
marcadamente para a internacionalização do Império Otomano. As
comunidades judaicas continuaram fiéis aos seus sultões e ao império que
os protegera.
Apesar de, a partir de 1948, muitos sefarditas terem partido para
Israel, vivem cerca de vinte mil turcos judeus na Turquia. Muitos deles
ocupam lugares de destaque no mundo das artes e dos
negócios. O Portugal Post foi falar com Izzet Pinto, um
turco sefardita, descendente de judeus de Toledo, possivelmente com
raízes portuguesas. Izzet Pinto é o CEO da Global Agency, com
sede em Istambul, uma empresa distribuidora de formatos e séries
televisivas, e que é um importante player no sector a nível
mundial no sector. «Em termos mundiais, somos a quinta
empresa do sector com o maior crescimento anual e distribuímos para
os mercados estrangeiros a série histórica turca «Muhteşem Yüzyıl-
(«Anos Magníficos») sobre o Sultão Solimão e o seu tempo
(1520-1566). Vendemos a série para mais de sessenta países,
incluindo a China, a Rússia, a Estónia e a Grécia, e, com trezentos
milhões de espectadores por episódio, é um sucesso entre vários
outros distribuídos pela nossa empresa» afirmou o empresário.
«Também vendemos a série «Mil e Uma Noites» para a América Latina, ao
Chile, e um formato de «Naked City» para Portugal. O nosso
sucesso internacional é uma forma de expressar gratidão ao nosso
país por ter salvo os nossos antepassados» e frisa «nenhum de nós se
converteu». Izzet Pinto conta-nos que não aprendeu ladino
porque não queria falar turco com sotaque mas que a irmã, os pais e a
avó sabem ladino. Os seus antepassados foram expulsos da Península
Ibérica no tempo de Beyazit II há mais de quinhentos anos.
Estabeleceram-se primeiro em Edirna e, mais tarde, foram para
Istambul onde se dedicaram ao comércio dos têxteis. E, não é por acaso,
que nos últimos episódios da série, se conta a história
verídica da judia portuguesa, Grácia Nasi Mendes, que ajudada pelo
seu sobrinho Joseph Nasi, move todas as suas influências em Istambul e
aplica a sua fortuna para fretar barcos e salvar muitos
judeus sefarditas das perseguições na Europa. Ela fá-lo sem o
conhecimento inicial do sultão, que lhe perdoa aquele acto que lhe
poderia ter custado a própria vida. Através de uma alegoria,
Solimão explica ao seu grande vizir, Ruştem Paşa, que «o mundo em
que vivemos é como um jardim repleto de flores diferentes, todas criadas
por Allah, e devemos respeitar a Sua vontade».
Explicando ao grande público, numa frase simples, a “ratio legis” do
imensamente complexo sistema dos millet. Como mais um facto
histórico, assinale-se ainda que, em 1556, Solimão exigiu
ao Papa Paulo IV a libertação imediata dos marranos de Ancona,
declarando-os cidadãos do Império e salvando-os assim de morte certa.
O Velho Homem à Beira do Bósforo renasce na Turquia moderna
O pluriculturalismo-etnico-religioso dos millet caracterizou de forma marcante o quotidiano do Império Otomano, tendo também muitos judeus asquenazes, fugidos dos progroms
do
Leste da Europa, encontrado refúgio junto dos otomanos e, mais
tarde, no período do Holocausto, na República Turca. Esta tradição de
tolerância perdura na Turquia moderna e Istambul continua a
ser a cidade das várias nações, embora de forma menos acentuada do
que nos tempos gloriosos do Império por razões que se prendem com a sua
história do século passado. As tensões geradas pela
política dos países europeus, que, nos finais do século XIX e
princípios do século XX, pretendiam repartir entre si o moribundo
Império Otomano, resultaram em motins e, por fim, numa guerra para
defender a independência do país. Os direitos das minorias deram,
muitas vezes, precedência, ao ideal unificador e redutor dos seus
direitos, numa situação de força maior gerada pela necessidade
de salvar a nação turca do seu desmembramento total. O conflito foi
sangrento, dele resultando muitos mortos e muitos sem país e, tendo
terminado com a deportação de milhares de turcos muçulmanos
dos territórios perdidos e de muitos membros das nações para os
novos países. Ainda que diminuída, a Turquia salvou-se pela mão de Ata
Türk, o general que criou o país moderno e secular surgido
das ruínas do imenso Império Otomano. O xadrez colonial criado pelos
aliados, que procuravam matérias-primas e domínios estratégicos e
comerciais na região, resultou em desequilíbrios gravosos
que ainda hoje se fazem sentir. Mas a vida das comunidades judaicas
continuou na moderna Turquia. Actualmente, em Istambul, dez sinagogas
recebem os seus fiéis e o jornal Şalom publicado
em turco com alguns artigos em judeo-espanhol, informa turcos sefarditas e asquenazes sobre os mais variados assuntos.
Para a História passou uma bonita estória sobre mais um milagre na
história judaica: os judeus espanhóis e portugueses encontraram um porto
de abrigo no mais poderoso império muçulmano, dos
finais do séc. XV e no séc. XVI, que foi também o novo Califado; no
Império dos Sultões foi-lhes permitido crescer e desenvolver-se,
desempenhando todas as profissões, salvo as não permitidas
também às outras nações. Como comunidade minoritária, os judeus
otomanos gozaram da protecção dos seus direitos ao abrigo de um sistema
político que lhes permitia sobreviver enquanto, ao mesmo
tempo na Europa, eram ostracizados, perseguidos, torturados e
assassinados. Durante o holocausto do séc. XX continuaram a salvo no
país renascido do Império que fora porto de abrigo quinhentos
anos antes.
«Quem salvar uma vida, salva toda a humanidade» é uma frase comum ao
Talmude, Sanhedrin 37ª, e ao Alcorão Maide 5.32, que faz toda a justiça
aos otomanos e ilustra a aliança entre as duas
religiões do Livro.
consultoria histórica sobre Portugal – Cíntia Maurício
revisão literária – Isabel Andrade
Fonte: Portugal Post https://www.portugalpost.de/2014/05/21/o-%C3%AAxodo-portugu%C3%AAs-para-o-imp%C3%A9rio-otomano/
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