Al-Ghazali e o declínio da civilização islâmica
“Já se falou muito sobre o declínio da Idade de Ouro da ciência árabe (que teve o seu apogeu entre os anos 800 e 1100 d. C.), quando o mundo muçulmano era um farol de inovação e de conhecimento, despoletando, na Europa, o Renascimento e época das Luzes. Hoje, o contributo dos cientistas do mundo islâmico é insignificante” escreve o investigador Hassan Hassan na página alemã Qantara. “Países como a Índia ou a Espanha produzem mais inovação científica que todos os 57 países muçulmanos juntos, cujo contributo não chega a 1 por cento e é normalmente de pobre qualidade. Compreender o que falhou no mundo islâmico é hoje particularmente relevante, quando tentamos perceber o papel desempenhado pela religião no Médio Oriente, no momento em que ocorrem as revoltas populares que conhecemos como a Primavera Árabe, a par da ascensão dos movimentos islamistas”.
“Esse declínio é normalmente atribuído a um influente teólogo muçulmano chamado Abu Hamid al-Ghazali [https://pt.wikipedia.org/wiki/Al-Ghazali], que viveu entre 1055-1111 d.C., que terá afastado toda uma civilização da curiosidade científica e terá aberto as portas ao obscurantismo e ao extremismo religioso. Al-Ghazali terá difundido a ideia de que a “falsafa”, ou a filosofia - um conceito que também incluía a lógica, a matemática e a física - era totalmente incompatível com o Islão. Depois de escrever o seu livro mais influente, “A incoerência dos filósofos”, Al-Ghazali (conhecido na Europa como Algazel) teria desferido uma tal machadada na “falsafa” que esta nunca mais se reergueu. E fê-lo graças à sua mestria do próprio conhecimento filosófico-científico e de teologia islâmica, injectando um grau de repugnância pela ciência que, por fim, se deu o inexorável declínio da civilização islâmica.
Pelo menos é isto que o mundo académico e os orientalistas têm difundido no último século. Penso que estão errados. Abu Ali al-Hassan al-Tusi (1018-1092 d.C.), também conhecido por Nizam al-Mulk, o grão-vizir da dinastia seljúcida, foi o principal responsável por isto, ao promover um sistema educacional que se focava nos estudos religiosos em detrimento do conhecimento científico. Até então, curiosamente, sempre estiveram ambos interligados. As escolas Nizamitas adoptaram, também, uma interpretação restritiva da escola de jurisprudência sunita no seu currículo: a escola Shafiita. E isto não aconteceu por acaso. A escola Shafiita focava-se nos princípios mais fundamentalistas da Sharia, em oposição à perspectiva racionalista favorecida pelas dinastias Omíada e Abássida. O Islão xiita ganhava, à época, proeminência no Iraque, Síria e Egipto, e as escolas Nizamitas, onde Al-Ghazali ensinou durante algum tempo, procuravam opôr-se a essa influência. Foi assim durante quatro séculos. Quem se formasse nestas escolas tinha prioridade no acesso aos cargos administrativos mais importantes, fosse no governo, fosse no aparelho judiciário (os tribunais ou as polícias que aplicavam a Sharia), na jurisprudência (“fiqh”). As escolas Nizamitas eram as Harvard e Oxford do séc. XII, e prepararam gerações que implementariam a sua filosofia de estado, armados com o talento argumentativo para se opor a quem lhes fizesse frente.
Penso que Al-Ghazali queria, com as suas obras, apenas estimular o pensamento crítico sobre a “falsafa” na época [ficaram conhecidas as suas polémicas com Averróis]. Muitos dos seus oponentes mais ferozes notaram, nas suas crónicas, que este permaneceu leal ao conhecimento filosófico-científico até à sua morte. O mundo académico Nizamita, por seu lado, castrou o conhecimento científico, promovendo apenas os estudos religiosos. A sua herança está ainda presente nos dias de hoje."
Hassan Hassan é colunista do The National (Emiratos Árabes Unidos), The Guardian e Foreign Policy
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