De onde é que eu sou? Olha, sou do Algarve
"Do Algarve. Ao que invariávelmente é recebida com a reformulação: "Não, não mas de onde é que vens?" Ao que respondo: "Do Hospital de Faro, foi uma cesariana e a minha mãe não estava à
espera de três filhs ao mesmo tempo". Ao que me dizem já com alguma
frustração como se eu não estivesse a entender o que me estão a
perguntar. "Não, mas essa cor de pele, esse cabelo, é de onde?" Assumimos que as pessoas que não são brancas não são portuguesas,
assumimos que vêm sempre de um destino exótico e que esta não é a sua
casa, este não é o seu país. Porque é que ser Português é ser branco? O que é que
podemos fazer de forma a que possamos colmatar as diferenças até que
elas não existam? Eu vou continuar a nomear os meus antepassados, vou continuar a
contar as histórias de luta e superação de quem me antecedeu, não vou
deixar de ser Portuguesa por causa disso mas espero que a minha
existência ajude as pessoas a ver Portugal nas suas muitas existências,
classes e formas de estar, ser e ocupar diferentes."
Portugal não é um país racista
ALEXA SANTOS
Ainda o bairro da Jamaica não era notícia e eu já perguntava à minha mãe.
-Mãe, alguma vez sentiste ser vítima de racismo?
A minha mãe que hoje tem 55 anos, é originalmente de Cabo Verde. Veio
ter com a mãe dela a Lisboa mais concretamente ao Barreiro, margem sul
do rio Tejo, quando tinha 11 anos. A minha mãe é a mais nova de 5
irmãos. Todos criados durante a infância pela minha bisavó, de nome
Elvira, mais conhecida por Nha Ilda (Nha é a palavra em criolo para nos
referirmos a uma mulher mais velha. É como quem diz dona ou senhora –
Obrigada à minha mãe por me explicar estas coisas. Outra coisa
importante a saber é que é muito comum as pessoas terem dois nomes, o
oficial, que está nos documentos e o que nos chamam em casa) numa casa
com páteo de terra batida, na Assomada, Praia, Ilha de Santiago. As
crianças brincavam descalças e as portas das casas ficavam abertas para
que pudessem sempre entrar e sair. Quando entravam havia sempre um prato
de comida para todos independentemente de quem fosse a criança e de
quantas crianças fossem. Não eram tempos de grandes farturas e por isso
as histórias da minha mãe sobre a sua infância incluem sempre os
momentos em que chegavam os barcos com os contentores que traziam o que
os imigrantes mandavam para as famílias. Que grande festa que era, desde
pacotes de bolachas Maria aos pares de sapatos a estrear. Era assim que
quem estava longe muitas vezes conseguia ter-se mais perto.
A resposta mais imediata da minha mãe à pergunta sobre o racismo foi:
-“Não, nunca dei espaço às pessoas para isso.”
A minha mãe é o exemplo da pessoa que nunca desistiu, nem quando foi
impedida de continuar a estudar depois da 4ª classe, nem quando saiu de
casa da mãe dela com apenas 15 anos de idade, nem quando com apenas 23
anos de idade se viu com 3 gémeas para criar, educar, vestir, amar e
acompanhar. A minha mãe é o exemplo de trabalho árduo, de alguém que
chega sem nada e torna-se, reinventa-se e no processo deixa pelo caminho
pessoas que só têm coisas boas a dizer, que sempre que falam na Sara
denotam o seu sorriso contagiante, uma amabilidade que hoje é difícil de
encontrar, uma personalidade extrovertida, alguém que trás sempre
coisas boas consigo e que deixa isso nos outros.
É preciso mais um bocadinho de conversa até a minha mãe lembrar-se
daquela vez que entrou numa loja e pediu para ver a mala de pele que
estava na prateleira mais alta e a senhora lhe disse que podia
mostrar-lhe uma mala mais “em conta” porque aquela era muito cara.
Demora mais um bocadinho até partilharmos histórias em que somos
seguidas em lojas de roupa e das vezes em que as minhas irmãs foram
confrontadas com “sogras” que não queriam os filhos brancos a namorar
com “pretinhas”. E as pessoas sempre me respondem mas Alexandra, tu nem
és assim tão preta.
Na escola, eu e as minhas irmãs eramos conhecidas como a preta 1,
preta 2 e preta 3. Somos três gémeas e não eramos de certo brancas por
isso eramos pretas.
Uma vez numa incursão ao cabeleireiro já eu estava em Lisboa fui
acompanhar uma amiga e a senhora perguntou imediatamente quem ia
precisar dos seus cuidados porque se fosse eu ela não ia atender. Não
sabia mexer em cabelos como o meu.
No dia em que ao sair do metro um homem sexagenário me perguntou de
forma muito insistente o que eu fazia da vida e de onde era para me
fazer uma proposta de sexo por dinheiro num quarto que ele tinha ali
perto. Eu vestia umas calças de ganga, uma camisola e estava de mochila
nas costas, eram seis da tarde nos Restauradores, em Lisboa.
Em questões de violência policial, vamos considerar que talvez tenham
razão os que dizem que a polícia tem de se defender quando é atacada.
Também pode ter razão quem diz que não foi uma questão de racismo.
Talvez até podem ter razão os que dizem que o problema está em quem não
quer cumprir as ordens, seguir o que é esperado de um “bom cidadão
português”. Têm razão também os moradores do bairro da Jamaica que dizem
que ali vivem pessoas boas, com vidas simples e que estão cansados de
tanto alarido porque ali não há pessoas violentas. Também é importante
dizer que as pessoas brancas nos bairros também apanham.
Estas questões são bastante mais complexas do que tentarmos encontrar mais ou menos culpados, quem tem mais ou menos razão.
No entanto, talvez se perca o ponto da discussão que é necessário
para hoje, até para ontem sobre Racismo. Dizer que um determinado caso
não foi Racismo não significa que não haja Racismo em Portugal.
Juatificar uma questão sistémica com um caso particular não significa
que essa questão desapareça. Dizer que somos todos iguais não faz
desaparecer automáticamente o facto de que existem ideas preconcebidas
sobre pessoas que têm uma determinada cor de pele, um determinado
aspecto, falam de uma determinada maneira. Não significa que mesmo que
estejas integrada na sociedade, tenhas um curso superior, um trabalho
com contrato e fales português com sotaque lisboeta que te vão deixar de
seguir nas loja de roupa ou que sejas a única pessoa a quem vão pedir
para conferir que tens o bilhete numa carruagem do metro. Não significa
ainda que quando se tenta ter uma conversa aberta e honesta sobre esta
questão o único argumento que levantem seja:
-Se não gostas porque é que não voltas para a tua terra.
Mesmo que todas as pessoas tenham razão de uma forma ou de outra
sobre o bairro Jamaica, isso não explica porque é que temos tanta
dificuldade em usar, aceitar e entender a palavra Racismo quando ela é
empregue. Não se acusa somente o branco, tu, pessoa, acusa-se um sistema
que continua a dizer que tudo o que não é branco é à partida uma
determinada coisa que não é tão boa, que não é tão digna, que não pode
habitar, existir e ocupar um determinado território de igual modo.
Uma das perguntas que mais ouves quando não és branco é:
-De onde é que és?
A minha resposta é sempre:
-Do Algarve. – Que invariávelmente é recebida com a reformulação:
-Não, não mas de onde é que vens? – Ao que respondo,
-Do Hospital de Faro, foi uma cesariana e a minha mãe não estava à
espera de três filhs ao mesmo tempo. – Ao que me dizem já com alguma
frustração como se eu não estivesse a entender o que me estão a
perguntar.
-Não, mas essa cor de pele, esse cabelo, é de onde?
Assumimos que as pessoas que não são brancas não são portuguesas,
assumimos que vêm sempre de um destino exótico e que esta não é a sua
casa, este não é o seu país.
Se um dia pedirem a qualquer criança para desenhar uma pessoa
Portugesa, essa pessoa nunca vai ser negra mesmo que a criança seja
nascida em Portugal e negra.
Porque é que ser Português é ser branco? Porque é que a classe é tão
divisória de quem é merecedor de ser tratado com dignidade? O que é que
podemos fazer de forma a que possamos colmatar as diferenças até que
elas não existam?
Eu vou continuar a nomear os meus antepassados, vou continuar a
contar as histórias de luta e superação de quem me antecedeu, não vou
deixar de ser Portuguesa por causa disso mas espero que a minha
existência ajude as pessoas a ver Portugal nas suas muitas existências,
classes e formas de estar, ser e ocupar diferentes.
FONTE: "Portugal não é um país racista", Queeringstyle.com
http://queeringstyle.com/portugal-nao-e-um-pais-racista/
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